“Um diagnóstico clínico na família de hipercolesterolemia familiar implica que os descendentes estão em risco de ter uma doença cérebro-cardio-vascular precoce, como enfartes do miocárdio, AVCs, aneurismas, ou de serem vítimas de mortes súbitas”, explica, em entrevista à VISÃO, a médica Isabel Gaspar, 61 anos. Presidente da Associação Portuguesa de Hipercolesterolemia Familiar, e especialista em Genética Médica e Medicina Interna, a clínica diz que há um problema entre nós: “A maioria dos médicos trata um evento cérebro-cardio-vascular precoce sem equacionar a possibilidade de ser uma doença hereditária, não incluindo a história familiar detalhada, e sem questionar se existem na família valores elevados de colesterol e de LDL-C”, o chamado “colesterol mau”. Isabel Gaspar também apela a uma mudança de comportamento dos colegas médicos pediatras que prescrevem doses subterapêuticas de estatinas e de outros fármacos para tratamento da hipercolesterolemia. “Há crianças e adolescentes, atualmente adultos, que se não tivessem iniciado a terapêutica com estatinas aos quatro ou cinco anos de idade já não estavam cá”, defende.

D.R.
O que é a hipercolesterolemia familiar?
É uma doença metabólica hereditária dominante. Isto é: passa de pais para filhos, mas a transmissão é incompleta, porque é inferior a 50%. Tem, pois, uma transmissão dominante e incompleta.
Que características tem?
É uma doença silenciosa. As artérias podem ficar obstruídas continuamente com placas de colesterol e/ou coágulos sem provocar sintomas. E, por isso, a primeira manifestação da doença até pode ser a morte súbita, se ocorrer entupimento das coronárias, e não existir circulação colateral. Um aneurisma da aorta pode igualmente resultar de deposição de placas de colesterol, que dilatam e desencadeiam uma disseção, e que também é fatal. As doenças prematuras, por definição, diagnosticam-se antes dos 55 anos, para os homens, e antes dos 60 anos, para as mulheres.
O facto de ser hereditária implica o quê?
Um diagnóstico clínico na família de hipercolesterolemia familiar implica que os descendentes estão em risco de ter uma doença cérebro-cardio-vascular precoce, como enfartes do miocárdio, AVCs, demências multivasculares, aneurismas, ou de serem vítimas de mortes súbitas.
“As artérias podem ficar obstruídas continuamente com placas de colesterol e/ou coágulos sem provocar sintomas. E, por isso, a primeira manifestação da doença até pode ser a morte súbita”
Quando a hipercolesterolemia pode aparecer?
É uma doença que se pode iniciar na vida intrauterina. Se a mãe, durante a gravidez, tiver hipercolesterolemia, o bebé quando nascer já tem depósitos de células com gordura nas artérias. Existem estudos científicos que demonstram que em recém-nascidos que faleceram, ou em casos de perdas fetais, já se observam artérias com depósitos de gordura.
Qual é a causa desta doença?
Temos na superfície do fígado os recetores de LDL, aos quais se liga o LDL-C, que é transportado para ser degradado. Diminui, assim, o LDL-C circulante que se deposita nas artérias. Mas se o indivíduo tiver um defeito na estrutura dos recetores, ou não os produzir, o LDL-C não se liga ao fígado e mantém-se em circulação, representando uma aceleração progressiva da obstrução das artérias.
O diagnóstico é feito por testes genéticos?
Não. O diagnóstico é clínico. Os testes genéticos contribuem para perceber a causa da doença e os mecanismos fisiopatológicos. Temos mais de 50% de portadores e de doentes sem mutações genéticas e com doença arterial que varia de ligeira a moderada e grave.
Que critérios clínicos são observados?
Os critérios são: doenças cérebro-cardio-vasculares prematuras no doente e/ou na história familiar. Os lipídios elevados: colesterol superior a 300 miligramas por decilitro de sangue, quando o normal é até 190; o LDL-C, o colesterol mau, superior a 190, quando o normal é até 115, e triglicéridos normais. Os sinais clínicos são os xantelasmas – manchas amarelas nas pálpebras e na face -, que indicam depósitos de colesterol na pele. E os xantomas, que indicam depósitos nos tendões: no tendão de Aquiles, nas articulações do cotovelo, dos joelhos e nos dedos das mãos.

D.R.
Depois, há também o bom colesterol…
Sim, o HDL-C, que costumo dizer aos meus doentes que é como se fosse uma bola que transporta as gorduras atrogénicas, o colesterol não-HDL. Se não forem transportadas, estas gorduras depositam-se todos os dias nas artérias. Durante largos anos, foram lançados medicamentos para fazer subir o HDL-C. Mas não foram eficazes e seriam retirados do mercado, porque provocavam mortes súbitas. E a única solução, até à data, para elevar o HDL-C é efetuar caminhadas de, pelo menos, meia hora por dia. Não sabemos explicar que mecanismo fisiológico é este, mas, na maioria dos casos, o HDL-C começa a subir para valores ótimos, protegendo os doentes de novos eventos.
“É uma doença que se pode iniciar na vida intrauterina. Se a mãe, na gravidez, tiver a doença, o bebé quando nascer já tem depósitos de células com gordura nas artérias”
Excetuando esse fenómeno, em que se baseia a terapêutica?
Sobretudo na toma de estatinas, a que se somam novos fármacos.
Que efeitos estes medicamentos têm?
Vários. Eliminam o colesterol alimentar e o endógeno, o colesterol não-HDL-C, o LDL-C, triglicéridos e fatores oxidantes, inflamatórios e pró-trombóticos. Contribuem, por outro lado, para a elevação do HDL-C, e também atuam nas placas de colesterol nas artérias, diminuindo-as progressivamente.
Como classifica o conhecimento da hipercolesterolemia familiar em Portugal?
É uma doença subdiagnosticada, subtratada e, ao mesmo tempo, pouco conhecida.
Mesmo no Serviço Nacional de Saúde (SNS)?
Não. No SNS temos tudo para fazer o diagnóstico clínico, o seguimento, a prevenção, os tratamentos, e as intervenções invasivas e cirúrgicas adequados. Existem serviços de doenças metabólicas hereditárias, como, por exemplo, o do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, que é referência nacional e europeia, com consulta multidisciplinar, de prevenção de doenças cardiovasculares em idade pediátrica, e que funciona desde 1997. Quando um pai ou uma mãe são internados num hospital do SNS na sequência de um enfarte do miocárdio, AVC, aneurisma arterial, pancreatite ou síndrome nefrótica, ou de qualquer doença do metabolismo lipídico, os médicos têm a preocupação de saber qual é o impacto da transmissão aos descendentes. As crianças e os adolescentes são referenciados para o estudo lipídico, para confirmação ou exclusão da doença hereditária da família, e iniciam a vigilância, estilos de vida e terapêuticas adequados. Também existem centros de referência com consultas especializadas no Hospital de São João, no Porto, no Hospital Pediátrico de Coimbra, no Hospital de Egas Moniz, em Lisboa, no Hospital de Santa Cruz, em Oeiras, e no Hospital de Cascais. Qualquer indivíduo ou família em risco pode ir a uma consulta naqueles serviços. Já agora, há uma diferença entre ser portador de uma situação relacionada com hipercolesterolemia familiar e já ter tido um evento. Estes é que são os doentes. Quanto aos familiares, temos de diagnosticar se são ou não portadores em risco, e procurar a existência de doença arterial silenciosa. Podem ter ou não a doença.
Como ficamos, então, quanto à “doença subdiagnosticada, subtratada e, ao mesmo tempo, pouco conhecida”?
O problema está em que a maioria dos médicos trata um evento cérebro-cardio-vascular precoce sem equacionar a possibilidade de ser uma doença hereditária, não incluindo a história familiar detalhada, e sem questionar se existem na família valores elevados de colesterol e de LDL-C. É recomendável que se faça uma história clínica detalhada do doente e da sua história familiar, para saber quais são os valores dos lípidos, que terapêuticas foram ou não efetuadas, e com que eficácia, se existem antecedentes de doenças cérebro-cardio-vasculares precoces, porque, insisto, os descendentes podem estar em risco. Idealmente, a família deve ser referenciada para consultas especializadas multidisciplinares com médicos geneticistas, para diagnosticar os familiares diretos em risco e iniciar a prevenção primária desde a infância e a adolescência.
Mas sabe-se que há médicos que receiam prescrever as doses de estatinas tidas por adequadas. A que se deve esse receio?
“É recomendável que se faça uma história clínica detalhada do doente e da sua história familiar, para saber quais são os valores dos lípidos, que terapêuticas foram ou não efetuadas, e com que eficácia, se existem antecedentes de doenças cérebro-cardio-vasculares precoces, porque os descendentes podem estar em risco”
Não sei – não estou para ler artigos não científicos. Mas existe há bastantes anos um lobby a nível mundial contra as estatinas. São médicos que não estudam – desconhecem meta-análises com milhares de doentes que têm uma sobrevida igual à dos indivíduos não doentes. Não percebem que há crianças e adolescentes, atualmente adultos, que se não tivessem iniciado a terapêutica com estatinas aos quatro ou cinco anos de idade já não estavam cá.
Existe alguma recomendação da Direção-Geral da Saúde sobre a hipercolesterolemia familiar?
Há, e faz parte dos critérios de como uma criança deve ser seguida até à idade adulta, em que se deve fazer um rastreio do colesterol, do LDL-C, do HDL-C e dos triglicéridos, entre os dois e os quatro anos, quando existe história familiar com os eventos que referi – doenças cérebro-cardio-vasculares prematuras, ou pais ou mães com colesterol e LDL-C elevados. Devemos começar o mais cedo possível a mudar o risco aterosclerótico precoce que a criança vai ter pela vida fora. Nos centros de referência do SNS que mencionei há médicos especializados nesta área e que sabem tratar as crianças com fármacos em doses pediátricas.
Interessou-se pelo caso do nadador norueguês Alexander Oen, campeão mundial, em 2011, dos 100 m bruços, e que morreu com um enfarte fulminante, aos 26 anos, quando se preparava para os Jogos Olímpicos de Londres, de 2012, numa cidade dos EUA?
Sim, porque gosto de natação e preocupa-me a morte súbita nos atletas. Na primeira autópsia, ainda feita nos EUA, não encontraram a causa da morte. Depois foi pedida uma segunda autópsia, e aí descobriram que ele teve vários pequenos enfartes, que andavam a mascarar uma suposta lesão muscular que teria no ombro esquerdo. Oen sofreu vários enfartes, e a segunda autópsia revelou uma obstrução completa das artérias coronárias, por doença aterosclerótica prematura.
Considera a morte de Oen um exemplo paradigmático – e trágico – de falha no diagnóstico da hipercolesterolemia familiar?
Sem dúvida. Pelos artigos que depois se escreveram sobre o caso soube-se que havia história familiar: o pai tinha tido um evento, um avô morrera subitamente… Oen tinha xantomas – pequenas lesões em alto relevo na pele, constituídas por depósitos de colesterol – num local pouco frequente: na região do sangradouro num braço. Este sinal reflete uma longa exposição a elevados níveis de colesterol e de LDL-C num desportista de alta competição, com seis a oito horas de treino diário. Não sei como o diagnóstico da hipercolesterolemia familiar escapou aos médicos dele.
Participou na elaboração do documento internacional, acerca da hipercolesterolemia familiar, com novas recomendações, divulgado em 2020. Quais são os principais alertas?
As recomendações centram-se na procura dos indivíduos que estão em risco de desenvolver doenças ateroscleróticas prematuras, na realização de análises aos lípidos para saber se o colesterol, o LDL-C, os triglicéridos e o HDL-C estão em níveis normais. Também se centram em saber a história familiar, as idades dos eventos e de mortes súbitas, para avaliar quem está ou não em risco, nas doenças familiares e nas patologias cérebro-cardio-vasculares com origem no colesterol e no LDL-C. E há que mudar os estilos de vida: a obesidade e a diabetes são as epidemias da civilização ocidental, e a hipercolesterolemia será agravada se essas patologias se lhe associarem. No caso das crianças e dos adolescentes, recomenda-se a prática de, pelo menos, uma hora de exercício físico por dia, e, quanto aos adultos, um mínimo de meia hora de marcha diária. A circulação sanguínea tem de ser a mais saudável possível. Dentro das artérias circulam glóbulos vermelhos, plaquetas, proteínas, lipídios, fatores de coagulação e por aí adiante. E glóbulos brancos que participam nos processos de infeção e de inflamação. O tecido adiposo também produz fatores oxidantes, inflamatórios e pró-trombóticos. Precisamos de eliminar e de consumir tudo o que está em excesso.