Segundo a neuropsicóloga Raquel Lemos, investigadora na unidade de neuropsiquiatria do Centro Champalimaud e professora do ISPA, os órgãos sensoriais são muito auxiliadores da memória
Não é por acaso que se utiliza a célebre frase “mente sã, corpo são” para se falar na boa saúde mental e qualidade de vida. Tal como o corpo, também a mente precisa de treino e estímulos. “Tudo o que posso utilizar para exercitar e treinar a minha memória vai estimulá-la e auxiliá-la a trabalhar melhor”, começa por aconselhar a neuropsicóloga Raquel Lemos, investigadora na unidade de neuropsiquiatria do Centro Champalimaud e professora do ISPA. Por isso, sublinha: “O treino da memória é algo que todos devemos fazer, porque é normal perdermos memória ao longo dos anos. O processo de envelhecimento não é só no corpo, também ocorre na memória.” Segundo os especialistas, há vários exercícios que se podem fazer, desde repetições do que se quer memorizar a listas de compras, passando pela criação de imagens mentais através de técnicas da visualização e da associação. Uma neuropsicóloga, um psiquiatra e um neurologista apontam algumas estratégias para melhorar a capacidade de memorizar.
1. Visualizar e associar
“Quando se quiser lembrar de alguma coisa, tente visualizar e fazer uma associação através de imagens para melhor memorizar”, sugere a neuropsicóloga Raquel Lemos. “A nossa memória funciona bem por associação”, realça a investigadora na unidade de neuropsiquiatria do Centro Champalimaud. E exemplifica: “Imagine que estacionou o carro no lugar V8 do parque de estacionamento e que tem uma filha chamada Vera com 8 anos.” Pode associar o local de estacionamento ao nome da sua filha e o número oito à idade dela. Está a memorizar de uma forma diferente e, ao mesmo tempo, a estimular a memória. Este é um bom truque a utilizar se sabe, de antemão, que o mais provável é esquecer-se do local onde estacionou.
O psicoterapeuta Pedro Silva Carvalho dá outro exemplo para uma situação similar, mas recorrendo à associação com imagens mentais. “Estacionei no lugar B5 e então, mentalmemte, imagino que tenho cinco burros à minha espera quando regressar ao carro”, ilustra o psicoterapeuta do Hospital Lusíadas. O mais certo é não se esquecer do que imaginou, porque vai rir-se da situação sempre que tentar visualizá-la. Provavelmente, ainda vai lembrar-se no dia seguinte.
Agora, imaginemos outro cenário em que tem de memorizar um endereço. Suponhamos que tem de se deslocar à Rua Alberto, número 1579, diz o psiquiatra Pedro Silva Carvalho. Pode tentar decorar este endereço, mas o mais certo é que a memória de curta duração – aquela que temos no imediato – lhe falhe e o deixe ficar mal depois, esquecendo. Um truque que pode utilizar é fazer associações. “Por exemplo, associo Alberto ao nome do meu amigo e, para o número da porta, relaciono o 15 com a idade da minha filha e o 79 com os anos do meu pai”, sugere. A estratégia passa por dividir o número da porta e associar a coisas que nos são familiares, para mais facilmente nos lembrarmos de tudo.
Estudo com taxistas em Londres
Um estudo feito em Londres com um grupo de taxistas concluiu que eles tinham o hipocampo, ou seja, a zona do cérebro para a orientação espacial, mais ativado, porque tinham de saber os percursos todos de cor, conta a neurocientista Luísa Lopes, do Instituto de Medicina Molecular. “A zona do cérebro, que está relacionada com a aprendizagem, aumentava de volume”, acrescenta, por seu lado, a neurologista Sofia Nunes Oliveira, responsável pela consulta de memória do Hospital da Luz. O que prova que se treina o cérebro.
2. Organizar por categorias
Se precisar de ir supermercado, uma das ferramentas a utilizar é fazer uma lista de forma organizada por categorias, como por exemplo reunir as frutas todas num grupo, depois os legumes para a sopa noutro, e assim consecutivamente. “É desta forma que os artigos estão dispostos nas prateleiras do supermercado e, assim, vai ser mais fácil de me lembrar quando lá estiver”, propõe a neuropsicóloga Raquel Lemos. Também pode fazer o exercício, em casa, de imaginar os corredores e prateleiras onde estão esses artigos que quer trazer para casa. “E organizo assim a lista na minha cabeça, como se estivesse lá.” Estas são algumas estratégias internas que pode utilizar para conseguir decorar.
3. Método de loci
Outra técnica para estimular a memória passa por fazer uma associação visual a um espaço. O ideal é escolher um local que lhe seja familiar, como a sua casa, aconselha a neuropsicóloga Raquel Lemos. Voltemos à lista de compras. Esta técnica, conhecida como de loci, é mais trabalhosa, mas vai estimular ainda mais a sua memória. Concentre-se e comece a distribuir os produtos que quer comprar pelas divisões da sua casa, imaginando por exemplo a fruta e os legumes na cozinha, o gel de banho e o champô na casa de banho, as fragrâncias no hall de entrada. Quando estiver no supermercado, pense na planta da sua casa e vai ver que vai lembrar-se dos artigos da lista de compras que memorizou.
O neurologista João Cerqueira, do Hospital de Braga, e professor de Neurologia e Neuroanatomia na Universidade do Minho, sugere, por seu lado, outra situação: “Penso na minha casa e vou distribuir pelos vários espaços palavras ou itens que preciso, depois, de recordar.” Imagina uma palavra no sofá, outra na cozinha e depois, quando estiver, por exemplo, a dar uma aula ou palestra, pensa nesse cenário. “À medida que percorro essa casa imaginativa, as palavras vão surgir na minha mente”, descreve o neurologista, que fez um doutoramento sobre os efeitos do stresse crónico na memória.
4. Musicalizar
“Desde que vamos para a escola que aprendemos a fazer mnemónicas” como, por exemplo, “cantarolar um vez um dois, dois vez dois quatro”, e assim consecutivamente, de modo a decorar pela repetição e mais facilmente, refere o psicoterapeuta Pedro Silva Carvalho. Este método cria uma espécie de melodia simples e repetitiva que fica no ouvido. É uma estratégia mais utilizada no contexto escolar para as crianças que estão, por exemplo, a aprender a tabuada ou o abecedário de uma língua estrangeira. “A musicalidade tem de ser para coisas pequenas. Os órgãos sensoriais são muito auxiliadores da memória”, afirma a investigadora Raquel Lemos. Mas, no dia a dia, adverte, as pessoas não costumam recorrer à musicalidade para memorizar as listas do supermercado, por exemplo.
Desde que vamos para a escola que aprendemos a fazer mnemónicas
Pedro Silva Carvalho
Psicoterapeuta, Hospital Lusíadas
Outro truque para estimular a memória através da música, propõe o psiquiatra Pedro Silva Carvalho, é adaptar um texto que se queria decorar a uma música de que se goste para memorizá-lo mais facilmente.
6. Chunking
Na psicologia, o chunking é um processo que ajuda o cérebro a dividir um número de telemóvel, que inclui muitos dígitos, agrupando-o em unidades menores. Pode-se, assim, mais facilmente e rapidamente memorizar o número de telemóvel agrupando os números de dois em dois. Esta é outra forma de estimular a memória. “Muitos de nós já fazemos isto sem nos apercebermos, em vez de decorar o número todo de uma vez só”, afirma a neuropsicóloga Raquel Lemos.
Curiosidades da memória
Como funciona a memória
“A memória está distribuída por várias zonas do cérebro, que é muito complexo”, nota o neurocientista Miguel Remondes, do Instituto de Medicina Molecular (IMM). Por exemplo, descreve, “a memória declarativa, que é aquela que nos permite presenciar acontecimentos e conseguir relatá-los dias mais tarde, depende da estrutura do córtex temporal que é o hipocampo”. Contudo, avisa, “isso não significa que essa memória esteja armazenada no hipocampo”. A memória é, assim, resume, “a nossa capacidade de armazenar e recuperar a informação. Existem vários circuitos – neurónios ligados entre si – responsáveis por esse armazenamento de memória e pela sua recuperação”. Sofia Nunes Oliveira, responsável pela consulta de memória do Hospital da Luz, explica, por sua vez, que “o cérebro funciona em rede. São muitos circuitos e todos eles interferem uns com os outros para que funcione bem”. Segundo a neurologista, “a memória não está separada da atenção, da concentração e da capacidade de, depois, utilizarmos a informação que temos nos circuitos”. Até porque, acrescenta a neuropsicóloga Raquel Lemos, investigadora na unidade de neuropsiquiatria do Centro Champalimaud e professora do ISPA, primeiro aprendemos a informação que capta a nossa atenção, e o nosso cérebro vai trabalhar no sentido de a armazenar. Essa informação é retida em memória de curto prazo e aprendemos, dessa forma, a associá-la a outras coisas que já temos no cérebro. “A partir desse momento, estamos a consolidar a informação que já tínhamos e a armazenar coisas novas”, resume.
Os vários tipos
Existem várias classificações da memória. Segundo a neuropsicóloga Raquel Lemos, a psicologia divide em memória a curto prazo – tudo o que é memória imediata que vou reter por pouco tempo – e a longo prazo – a informação que vou armazenar por muito tempo. No âmbito desta última, existe a “memória declarativa – que se subdivide em episódica e semântica –, e ainda a não declarativa ou implícita”, descreve. A memória episódica é, por exemplo, aquela que nos permite contar o que almoçámos ontem, enquanto a semântica é a memória de factos e está mais relacionada com a nossa capacidade de sabermos de cor, por exemplo, as capitais dos países.
Já a memória implícita, que nem precisa de ser consciente, é sabermos pôr as mudanças no carro ou andar de bicicleta. Atividades que fazemos quase de forma automática e nem sabemos bem como as aprendemos, nota o neurocientista Miguel Remondes.
João Cerqueira, neurologista no Hospital de Braga e professor de Neurologia e Neuroanatomia na Universidade do Minho, acrescenta ainda a memória de futuro, que é por exemplo “quando se toma nota de que, num futuro próximo, se precisa de comprar determinados produtos”.
Os mistérios
Há ainda muito por descobrir sobre o cérebro, nomeadamente em relação às áreas da atenção, da consciência e da concentração. Um dos mistérios por resolver, nota o neurocientista Miguel Remondes, consiste na “não explicação dos mecanismos neuronais da atenção, ou seja, não se sabe o que causa a atenção e como surge”. Também se “desconhece como temos consciência do que está a acontecer no dia a dia e como conseguimos ter consciência dos nossos próprios pensamentos”, resume. “Não se sabe como é que o cérebro faz isso. É um mistério completo.” Assim como “ainda é muito nebulosa a doença neurológica, como a de Alzheimer, apesar de haver muita investigação nessa área”.
O cientista considera, por isso, que existem “tantas questões básicas sobre o cérebro por conhecer, porque quanto mais se desenvolvem instrumentos para estudar a atividade dos neurónios e estudar o comportamento, mais se percebe que o sistema é muito mais complexo do que se pensava”.