Sempre que alguém é incorporado no Exército norte-americano, é-lhe feito um teste de rastreio ao vírus da sida. Enquanto a pessoa se mantém no serviço militar, essa análise tem de ser repetida de dois em dois anos e – nota importante – todas as amostras são arquivadas.
Foi graças a esse arquivo gigante que uma equipa de investigadores da Escola de Saúde Pública T.H. Chan, da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, pôde analisar dados de dez milhões de militares que foram sendo armazenados ao longo de duas décadas.Liderados pelo epidemiologista italiano Alberto Ascherio, os cientistas tinham como objetivo tentar provar uma relação de causalidade entre o vírus de Epstein-Barr, que provoca a mononucleose infecciosa, e a esclerose múltipla. E o resultado foi claro, acreditam.
“O vírus de Epstein-Barr provoca a esclerose múltipla”, afirmou, perentório, o epidemiologista italiano, citado pela revista Science, onde o estudo foi agora publicado.
Recorde-se que o vírus que causa a chamada doença do beijo (por se transmitir através da saliva) é detetável em cerca de 94% das pessoas, sem que muitas delas alguma vez apresentem sintomas da doença. Mas em estudos anteriores realizados pela mesma equipa liderada por Alberto Ascherio, o vírus foi detetado em quase 100% dos pacientes com esclerose múltipla.
Foi esse o ponto de partida para o macro-estudo agora apresentado.
Entre as quase mil pessoas diagnosticadas com esclerose durante o serviço militar, 801 tinham amostras boas para serem reanalisadas. Destas, 800 tinham estado em contacto com o vírus de Epstein-Barr.
Os investigadores pegaram então em amostras de 801 militares sãos com as mesmas características (sexo, idade e grupo racial), começando por verificar se, no momento da incorporação, já apresentavam o vírus. Enquanto apenas 35 dos doentes com esclerose tinham entrado limpos, no grupo de controlo havia 107 originalmente limpos.
Ao longo do tempo, 97% dos militares que vieram a ter esclerose infetaram-se com a doença do beijo, contra apenas 57% dos sãos. O risco de esclerose multiplicou-se, assim, por 32 após contraírem mononucleose, concluíram os cientistas.
A esclerose múltipla, que envolve um ataque pelo sistema imunológico contra os próprios tecidos do corpo, danificando ou destruindo a substância que cobre a maioria das fibras nervosas, afeta 2,8 milhões no mundo. Em Portugal, esta doença inflamatória crónica, de causa até agora desconhecida, afeta 5 787 pessoas, ou seja, 56 em cada 100 mil.
A mononucleose infecciosa caracteriza-se por febre, faringite e uma fadiga que pode persistir por semanas ou mesmo meses. A esmagadora dos adultos é portadora do vírus e assintomática.
Se o vírus da doença do beijo for realmente a causa principal da esclerose múltipla, como acredita Alberto Ascherio, as terapias dirigidas diretamente ao vírus, com fármacos antivirais, poderão proporcionar um tratamento “melhor e mais radical”, nota. “E sem os riscos associados à destruição dos linfócitos B, que são glóbulos brancos importantes para a proteção face a outras infeções”, lembra.
“Este é um grande passo, porque sugere que a maioria dos casos de esclerose múltipla pode ser evitada interrompendo a infeção pelo vírus de Epstein-Barr, e que direcionar [os estudos] para este vírus pode levar à descoberta de uma cura”, concluiu o epidemiologista.