Ao contrário da forma convencional da doença crónica renal – a deterioração progressiva do funcionamento dos rins, observada em pessoas idosas, diabéticas ou hipertensas -, os médicos alertam agora para um tipo de doença renal que está associada à exposição ao calor, e tem surgido em diversas áreas rurais afetadas por altas temperaturas. El Salvador e Nicarágua são dois dos países mais afetados por esta epidemia, que também já se faz sentir em partes da América do Norte, América do Sul, África, Índia e Médio Oriente.
O jornal britânico The Guardian, na sua série Harmed by heat, falou com médicos que alertam para a influência que a subida das temperaturas pode vir a ter no aumento dos casos de doença renal crónica de causa incerta nas próximas décadas. Para compreender a escala total do problema, serão precisos mais estudos – mas várias ligações já têm sido estabelecidas entre a exposição a altas temperaturas e desidratação e doença renal.
Em Chichigalpa, o centro da indústria da cana de açúcar do Nicarágua, cerca de metade das mortes masculinas são causadas pela ‘doença misteriosa’. Os homens que trabalham nas plantações, suportando altas temperaturas todos os dias, começam a sofrer de náuseas, dores musculares e exaustão, apesar de terem começado o trabalho fortes e saudáveis. Eventualmente a sua condição muscular deteriora-se tanto que deixam de poder trabalhar, e muitos morrem de insuficiência renal – apesar de terem, na sua maioria, entre os 20 e 30 anos.
A progressão da doença pode ser rápida, e por vezes os trabalhadores não apresentam sintomas até chegarem a uma fase avançada da doença, e ser tarde demais, explica Cecilia Sorensen, diretora do Consórcio Global do Clima e da Saúde na Universidade de Columbia. Neraldo Carrero, por exemplo, tem 30 anos e precisa de receber tratamentos constantes de diálise. Trabalhou nas plantações de cana de açúcar durante apenas dois anos.
Estima-se que pelo menos 40 mil pessoas morram por ano devido à doença crónica renal de causa incerta. A maioria é natural de zonas rurais e comunidades agrícolas de países em volta da zona do equador. São pessoas, na sua maioria homens, que trabalham ao ar livre, expostos a altas temperaturas, e, em regra, com acesso a poucos cuidados e infra-estruturas de saúde. Embora a exposição ao calor e desidratação sejam os principais causadores da doença, alguns médicos acreditam que outros fatores como a exposição a agentes químicos da agricultura e riscos relacionados com a pobreza e mal-nutrição possam estar também relacionados.
Estas pessoas “trabalham nos climas e condições mais quentes possíveis e ao mesmo tempo o seu gasto energético é comparável a corredores de maratonas, ou a pessoas envolvidas em operações militares, só que eles fazem este trabalho todos os dias”, refere Catharina Wesseling, uma epidemiologista no Instituto Karolinska da Suécia. “A combinação destes dois factores causa uma exposição excessiva ao calor externo e interno, provoca desidratação e alterações em todo o sistema renal, e conduz, no final, à doença renal crónica”.
Sorensen acredita que o problema vá muito além da saúde: afeta a subsistência e o modo de vida destas populações, dificultando ainda mais a sua saída de situações de pobreza. “Eles estão a ficar doentes com o trabalho que estão a fazer, mas não têm outras opções, e há muito pouco controlo regulamentar no ambiente de trabalho que impeça que isto aconteça. É uma questão de direitos humanos”, diz.
Com as alterações climáticas, a doença pode tornar-se mais comum a nível global
Ramón García Trabanino é um médico nefrologista e diretor do Centro de Hemodiálise de El Salvador, e conhece bem as consequências da doença. “Se olharmos para os mapas de temperatura máxima na região da América Central, vemos que correspondem às regiões onde estão os hotspots da doença”, nota. “El Salvador e Nicarágua – todos os anos temos uma luta pelo primeiro lugar para o país com a maior mortalidade devido à doença crónica renal. As nossas taxas de mortalidade são cerca de 10 vezes mais elevadas do que o que deveríamos esperar. O número de novos pacientes é esmagador”.
Mas com as alterações climáticas e a subida iminente das temperaturas globais, o fenómeno pode passar à escala mundial. Richard Johnson, da Faculdade de Medicina da Universidade do Colorado, alerta: “O que é menos claro é o facto de o stress térmico recorrente não ser apenas um problema nos campos de cana de açúcar do Nicarágua. Mesmo nas nossas próprias sociedades, a possibilidade de o stress térmico e a desidratação poderem estar a desempenhar um papel na doença renal não é tão apreciada como devia ser”.
Tord Kjellstrom, do Centro de Epidemiologia e Saúde Pública da Universidade Nacional da Austrália, é da mesma opinião, afirmando que o stress térmico não está a receber a atenção devida nas conversas sobre os efeitos das alterações climáticas.
“À medida que o número e a intensidade dos dias quentes aumentam, cada vez mais pessoas enfrentarão desafios ainda maiores para evitar o stress térmico, particularmente os dois terços da população mundial que vivem em áreas tropicais e subtropicais. A exaustão provocada pelo calor ameaça a subsistência de milhões de pessoas e compromete os esforços para reduzir a pobreza”, afirma Kjellstrom, que é também um antigo membro do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas da ONU.
“O aquecimento global é uma ameaça séria, tanto para a vida dos trabalhadores como para a subsistência de milhões de pessoas. As políticas emergentes sobre o clima devem ter isto em conta se quisermos ter alguma hipótese de enfrentar o que está à nossa frente”, acrescenta.
Os rins são responsáveis pela filtragem das toxinas presentes na corrente sanguínea, mantendo os níveis de fluidos corporais normalizados. Estes órgãos são particularmente sensíveis ao calor, e constituem essencialmente a “interface imediata entre nós e a crise climática”, de acordo com Johnson, porque quando as temperaturas começam a subir, perdemos muita água e sal através do suor, explica. Os rins, para fazerem o seu trabalho, dependem ainda de hormonas produzidas no cérebro – e aumentos extremos de temperatura podem afetar o nível normal dessas hormonas, levando os rins e outros órgãos internos a sofrer consequências.