Num feito inédito, cirurgiões transplantaram um rim de um porco geneticamente modificado para um paciente humano. Os médicos verificaram que o órgão funcionava normalmente, e agora estão esperançosos de que, um dia, pacientes gravemente doentes possam receber órgãos da mesma maneira.
O órgão foi agregado aos vasos sanguíneos da parte superior da perna de um paciente que se encontrava em estado de morte cerebral. Fora do abdómen, o órgão começou a funcionar “quase de imediato”, segundo Robert Montgomery, diretor do Instituto de Transplantação do Hospital N.Y.U. Langone Health.
Montgomery acredita que o facto de o órgão ter funcionado tão bem fora do corpo, começando a produzir creatinina quase imediatamente, é um indicador forte de que também poderá funcionar uma vez transplantado por completo. “Foi melhor do que aquilo que esperávamos”, disse. “Parecia qualquer outro transplante que alguma vez fiz de dadores vivos. Muitos rins de pessoas falecidas não funcionam imediatamente, e demoram dias ou semanas a começar. Este funcionou imediatamente”.
O sucesso da operação marca um novo rumo para a xenotransplantação – a prática médica de transplantar órgãos ou tecidos entre diferentes espécies, que já tem vários anos de história.
Nos anos 60, rins de chimpanzé já tinham sido transplantados para pacientes humanos, embora todos tivessem morrido pouco tempo depois – o máximo que um destes pacientes viveu após a cirurgia foi nove meses. Em 1983, uma bebé recém-nascida com uma condição que afeta o fluxo normal de sangue para o coração recebeu um coração de um babuíno, mas morreu após 20 dias – embora tenha sobrevivido durante mais tempo do que qualquer outro recipiente de um coração não humano.
Ao contrário dos primatas, os porcos parecem ser uma ‘fonte’ mais viável de órgãos, uma vez que partilham mais semelhanças com os dos seres humanos: os seus órgãos atingem a maturação mais depressa, chegando ao tamanho normal de um adulto em cerca de seis meses. Além de serem mais fáceis de criar. Vários pacientes já receberam válvulas cardíacas ou células do pâncreas provenientes destes animais.
Agora, a combinação de tecnologias de edição genética e clonagem permitiu o surgimento de órgãos de suínos geneticamente alterados. Corações e rins de porco originados com esta tecnologia já foram transplantados com sucesso em macacos e babuínos. “De momento, o campo está preso na fase pré-clínica dos primatas, porque passar de primatas para seres humanos vivos é visto como um grande salto”, explica Montgomery.
O paciente também recebeu o timo de um porco. O timo é uma glândula que tem funções importantes no sistema imunitário, responsável por combater agentes externos ao organismo. Os cientistas fizeram isto para diminuir o risco de o corpo do paciente ter uma reação imune adversa ao novo rim.
Após a intervenção, o paciente foi observado por um período de 54 horas, em que o rim funcionou normalmente e os níveis de urina e creatinina pareceram estar normais.
“Não parecia haver qualquer tipo de incompatibilidade entre o rim do porco e o paciente, que fizesse a operação não funcionar. Não houve rejeição imediata do rim”, garante Montgomery, que reconhece no entanto que os efeitos a longo prazo ainda são desconhecidos.
As reações dividem-se
Montgomery mostra-se positivo, e acredita que os porcos geneticamente modificados “podem vir a ser potencialmente uma fonte sustentável e renovável de órgãos”. Mas outros profissionais da área foram mais cautelosos nas suas reações.
“Não há dúvida de que isto é um tour de force, na medida em que é difícil de fazer e têm de ser ultrapassados muitos obstáculos”, reconheceu Jay A. Fishman, director associado do Centro de Transplantação do Massachusetts General Hospital. “Se este estudo em particular trará avanços para o campo, dependerá dos dados que recolheram e se os partilharão, ou se é um passo apenas para mostrar que o podem fazer”, continua.
David Klassen, médico-chefe da Rede Unida de Partilha de Órgãos, concorda, afirmando que, apesar de a cirurgia ser um “momento crítico”, ainda há um longo caminho a percorrer até que os órgãos de porcos geneticamente modificados possam ser transplantados em seres humanos vivos. A rejeição do órgão a longo prazo ainda é um perigo, e pode ocorrer quando o dador e recipiente são compatíveis, e “mesmo quando não se está a tentar ultrapassar a barreira das espécies”.
“Esta é realmente uma cirurgia de vanguarda, e estamos muito perto de ser capazes de o fazer em seres humanos vivos”, diz Amy Friedman, uma antiga cirurgiã de transplantes e médica chefe da LiveOnNY, uma organização de doação de órgãos na área de Nova Iorque. “É verdadeiramente espantoso pensar em quantos transplantes poderíamos ser capazes de oferecer”. “Mas teríamos de criar os porcos, claro”, acrescenta.
De facto, a criação de animais geneticamente modificados para servirem o propósito de fornecer órgãos pode sem dúvida levantar questões éticas. Os suínos teriam de ser geneticamente alterados de modo a eliminar um gene que codifica uma molécula específica, que desencadeia uma rejeição agressiva dos órgãos no seres humanos.
Mas se a operação provar ser um sucesso a longo prazo, os cirurgiões de transplantação podem estar perante uma fonte sustentável de órgãos viáveis – incluindo corações, pulmões ou fígados – com o potencial de salvar milhares de vidas. Atualmente, cerca de 100 mil norte-americanos estão em listas de espera para receber órgãos – sendo que cada dia morrem em média doze dessas pessoas. A grande maioria está à espera de um rim.
Um número ainda maior de norte-americanos sofre de insuficiência renal, e depende de tratamentos de diálise para sobreviver. Os rins dos suínos podem ser uma solução particularmente eficaz para essas pessoas que, muitas vezes, perante a escassez de órgãos disponíveis, não são elegíveis para transplantes pois há poucas hipóteses de prosperarem após a operação.
Em Portugal, o número de órgãos transplantados atingiu os 711 – menos 168 órgãos transplantados do que em 2019, uma diminuição que reflete o impacto da pandemia Covid-19. Do total de transplantações, 393 foram renais.