Ao longo do último ano, relatos têm chegado de diversos países de vírus que circulam nos aviários de produção intensiva, com potenciais consequências graves para os seres humanos. Em dezembro do ano passado, foi na Rússia: 101 mil galinhas num aviário na cidade de Astrakhan começaram a adoecer e a morrer. Testes revelaram que se tratava de uma estirpe relativamente recente do vírus da gripe aviária. Dentro de dias, 900 mil aves tiveram de ser abatidas para evitar uma epidemia.
No entanto, o vírus conseguiu contagiar cinco mulheres e dois homens que trabalhavam no aviário, embora tivessem sofrido apenas sintomas ligeiros. Esta situação era relativamente nova, uma vez que era a primeira vez que aquele vírus – altamente contagioso, e fatal para as aves – fazia a transição de espécies animais para seres humanos.
O vírus em questão é denominado H5N8 – e não é a primeira vez que surgem relatos de este vírus se estar a espalhar entre aves de aviário, como galinhas, patos e perus. Nos últimos anos, o vírus foi identificado em mais de 50 países. Mas o caso de contágio de seres humanos na Rússia foi o primeiro.
As autoridades russas alertaram a Organização Mundial de Saúde (OMS), tendo mesmo a conselheira principal dos consumidores da Federação Russa, Anna Popova, afirmado que exista a probabilidade de o vírus se começar a espalhar entre seres humanos e que deviam ser iniciados de imediato trabalhos para desenvolver uma vacina.
“A descoberta destas mutações, enquanto o vírus ainda não adquiriu capacidades para se transmitir entre seres humanos, dá-nos a todos – em todo o Mundo – tempo para nos prepararmos para as eventuais possíveis mutações e reagir em tempo adequado”, alertou.
Segundo Gwenael Vourc’h, chefe de investigação no Instituto Nacional para a Agricultura, Alimentação e Ambiente da França, os vírus da gripe são conhecidos por evoluírem “muito rapidamente”, e a responsável acredita que pode ter havido outros casos para além dos reportados na Rússia. “Isto é provavelmente a ponta do iceberg”, afirmou, em declarações à Agence France-Presse.
Da China também têm chegado notícias semelhantes. Um outro tipo de vírus da gripe aviária, desta vez o H5N6, infetou 48 pessoas desde a primeira vez que foi identificado, em 2014. Os casos aumentaram na última semana, e mais de metade das pessoas que contraíram o vírus morreram na sequência da infeção – o que sugere que o vírus está a assumir mutações potencialmente perigosas.
O Centro de Controlo de Doenças da China (CDC) já identificou, de facto, diversas mutações nos recentes casos de infeção pelo vírus H5N6. Gao Fu, Diretor do CDC, já veio dizer que este novo vírus é uma “séria ameaça” à saúde humana e à indústria aviária.
As atenções de todo o mundo estão agora viradas para a Covid-19 e para a crise de enormes dimensões que a pandemia deixou para trás. Mas estes novos vírus – pelo menos oito já foram identificados – podem ter consequências ainda mais severas do que a Covid-19, e estão a circular em aviários a nível global. “Estamos a assistir a uma explosão sem precedentes de surtos de novos vírus da gripe das aves, que historicamente têm apresentado o maior risco pandémico e têm certamente o potencial de ser piores do que a Covid-19”, explica Michael Greger, médico e autor do livro “Bird Flu: A Virus of Our Own Hatching”.
O perigo das doenças zoonóticas
As últimas descobertas têm levado muitos especialistas em saúde pública a estabelecer uma relação entre a criação intensiva de gado e as grandes epidemias.
“A infiltração da gripe no gado industrial e nas aves de capoeira é tão completa que estas explorações funcionam agora como os seus próprios reservatórios [de doença]”, explica Rob Wallace, um virologista americano que acredita que as novas estirpes de gripe estão a adaptar-se à indústria aviária. “Elas são a sua própria fonte”.
Múltiplas pesquisas mostram que as condições intensivas em que são criados os animais para consumo humano não só são negativas para os animais, como contribuem para a proliferação de inúmeros vírus e doenças, que podem apresentar um risco de transmissão aos seres humanos.
Os exemplos são inúmeros: as epidemias da gripe suína (causada pelo vírus H1N1), a síndrome respiratória do Médio Oriente (MERS-CoV), a gripe das aves (H7N7), e a síndrome respiratória aguda grave (Sars), entre outras, são todas doenças zoonóticas – o que significa que foram transmitidas aos humanos através do contacto com estes animais. Todas elas tiveram origem na indústria animal. E não falamos só de galinhas, vacas ou porcos – algumas destas doenças tiveram origem em grandes criações de camelos, no Médio Oriente, ou de civetas, na China.
“Sem surpresa, a grande maioria dos animais envolvidos em eventos zoonóticos históricos ou zoonoses atuais são animais domésticos (gado, animais selvagens domesticados e animais de estimação) o que é lógico, uma vez que as taxas de contacto [entre estes animais e os seres humanos] são elevadas”, explica o biólogo Nathan Wolfe.
Mas as indústrias avícola e pecuária – com o uso de antibióticos, sobreotação e as semelhanças genéticas entre animais – são, para outro biólogo, Sam Sheppard, da Universidade de Bath, condições ideais para o surgimento e disseminação de vírus e bactérias.
O futuro das pandemias
Os cientistas argumentam que conhecer a história de pandemias anteriores pode ajudar-nos a antever as próximas. De acordo com Michael Greger, as grandes doenças humanas podem dividir-se em três eras. A primeira ocorreu quando os humanos começaram a domesticar os primeiros animais, há cerca de dez mil anos, e foram infetados com as suas doenças, como varicela e sarampo. Devido à Revolução Industrial e à modernização da sociedade, surgiram doenças como os diabetes, obesidade, problemas cardíacos e cancro. Agora, devido à intensificação das produções agrícola e pecuária, estamos a assistir a uma onda de doenças zoonóticas – como as já mencionadas gripe suína, gripe aviária, Sars, Mers, a salmonella ou o vírus Nipah e, claro, a Covid-19.
Greger acredita que “em termos evolutivos, a criação de aves de capoeira, bovinos e suínos, confinados em condições de alta intensidade e totalmente anti-naturais é provavelmente a alteração mais profunda da relação entre o homem e os animais em dez mil anos”. E, claro, isso tem consequências.