Os esquecimentos
O esquecimento é a dificuldade ou mesmo a impossibilidade de recrutar uma informação, quando necessitamos dela ou simplesmente a queremos recordar. Com frequência, nem damos conta da falha, que pode ser-nos evocada por colegas, familiares ou até pelas autoridades. O esquecimento pode ser total ou parcial, definitivo ou transitório, de recuperação espontânea, com recurso a pistas ou a mnemónicas. Uma informação esquecida por longos períodos, mas não definitivamente perdida, pode ser despertada por truques simples ou técnicas refinadas de evocação (psicanálise, por exemplo).
Os esquecimentos estão associados aos processos biológicos de envelhecimento do sistema nervoso, mas não escolhem idades. As crianças perdem frequentemente os brinquedos e as saídas matinais são atrasadas pelo esquecimento do caderno, das sapatilhas, do lanche ou da calculadora. Os recados dos professores podem ficar perdidos na mochila. As escolas têm arrecadações repletas de “perdidos e achados” não reivindicados, onde há de tudo. “As brancas” são bem conhecidas, habitualmente em provas ou interrogatórios: “Bem… Eu preparei essa matéria, a sério, mas agora não me lembro”, o que no passado despertava ironias como: “Esquece muito quem não sabe!”.
Os esquecimentos estão associados aos processos biológicos de envelhecimento do sistema nervoso, mas não escolhem idades. As crianças perdem frequentemente os brinquedos
Ao longo da vida familiar, social ou profissional, as experiências vão-se avolumando, tornando-se menos toleradas, embora com perfil temporal caprichoso e intermitências variáveis. Podem ser desprovidas de consequências, mas também causar incómodos, transtornos, riscos, embaraços ou mesmo problemas: “Abro a porta do frigorífico, olho para tudo, mas nunca sei o que ia lá buscar”; “Virei a casa do avesso à procura dos brincos que poli esta manhã e só encontrei um”; “Quando saio à noite, esqueço-me quase sempre de tomar a pílula”; “Pensei no aniversário da minha sogra todo o dia, mas acabou por ser a filha a passar-me o telefone, tardia e asperamente”; “Troquei o relógio para o punho direito, e ainda assim esqueci-me de liquidar umas custas judiciais, e logo pela segunda vez”.
Os esquecimentos ocasionais são fisiológicos e normais, atingindo mais algumas pessoas. No entanto, todos poderemos experimentar esquecimentos, bastando para isso que se reúnam características intrínsecas a estados biológicos (febre, dor, ansiedade, depressão) ou a estímulos ambientais (azáfamas laborais, festividades, agitações sociais ou desportivas, intempéries climáticas, privação de sono, abuso ou abstinência de medicamentos, drogas ou álcool). Na maioria das vezes, nenhum fator é identificado. Um mesmo lapso de memória poderá ter significados muito diferentes, consoante o indivíduo e as circunstâncias. Provavelmente, um repórter sabe sempre o dia da semana e do mês, mas pode hesitar quando se encontra de férias, não distinguindo entre um domingo e outro dia qualquer. Esta probabilidade pode esbater-se se for católico ou se houver jornada de futebol. Alguns aposentados são atingidos por uma aparente desorientação temporal nas férias escolares, corrigindo-a com o retorno à azáfama de atividades dos netos logo no início do ano letivo.
A memória
Os esquecimentos são perturbações da memória, função nobre da Humanidade, que permite a transmissão, a manutenção e o melhoramento de conhecimentos. A memória depende de sistemas complexos, de interações entre redes neuronais, com diferentes níveis de sofisticação e refinamento, de unimodais a supramodais. A atenção é uma condição sine qua non para a construção da memória, cuja sequência podemos simplificar em colheita e receção de informações, codificação ou processamento, retenção (momentânea ou definitiva) e evocação (sem ou com ajuda). As perturbações da memória são muito variadas, com predomínio das amnésias para factos recentes ou para acontecimentos passados, podendo encontrar-se isoladamente ou associadas a perturbações de funções que andam intimamente interligadas: orientação, iniciativa, alternância de tarefas, abstração, linguagem, cálculo, habilidade construtiva, reprodução automática de gestos aprendidos e identificação de signos.
As informações ou estímulos, ambientais ou internos, chegam ao sistema nervoso através de múltiplas fontes: olhos, ouvidos, células olfativas, língua, pele, articulações e vísceras. Os fluxos de informações sensoriais, permanentes, simultâneos ou descontínuos, podem passar a memória de trabalho ou nem sequer ser acolhidos, designadamente por desatenção. A memória de trabalho pode passar a definitiva, manter-se durante algum tempo ou desvanecer-se de imediato, sendo muito dependente das condições ambientais, da motivação e do interesse do recetor, da utilidade apercebida e do reuso. Muitos esquecimentos quotidianos dos adultos jovens provavelmente têm a sua génese na desatenção e na memória de trabalho, que também está comprometida em fases iniciais das demências. A memória de longo prazo implica a incorporação de memórias recentes e antigas. Singelamente, dividimos a memória de longo prazo em explícita, que pode descrever-se, e implícita, sem um acesso consciente. A memória explícita pode ainda dividir-se em episódica, para experiências pessoais datadas e localizadas, sensível ao envelhecimento e às demências, e semântica, para conceitos, símbolos e conhecimento global, relativamente resistente ao envelhecimento, mas comprometida nas demências. A memória implícita está associada à aquisição gradual de competências na execução de procedimentos. Podemos dizer que a memória explícita nos permite enumerar as regras e exceções do jogo de futebol e que a memória implícita nos permite jogar.
Demência?
A maioria das pessoas que apresenta esquecimentos impressiona-se muito mais com o significado presumido do que com os transtornos reais. A pergunta mais popular é: “Pode ser um princípio de uma demência, de doença de Alzheimer?”
As demências não são doenças, mas síndromes clínicas, formas de apresentação de diversas patologias neurológicas ou sistémicas, reversíveis com tratamento ou inexoravelmente progressivas. A doença de Alzheimer é a mais frequente das demências e a sua prevalência aumenta fortemente a partir dos 80 anos. As perturbações da memória, mesmo as permanentes e progressivas, não bastam para afirmar um diagnóstico de demência. Uma perturbação isolada de memória denomina-se défice cognitivo ligeiro, sendo um fator de risco para doença de Alzheimer. Para o diagnóstico de demência é necessário documentar a progressão sustentada da deterioração da memória, de pelo menos mais uma função neurológica superior, sendo obrigatório excluir uma pseudodemência (depressão grave, por exemplo) e tendo o conjunto uma interferência nas atividades da vida quotidiana.
Preocupação?
As perturbações de perfil temporal rapidamente progressivo, as de início recente ou com agravamentos abruptos, bem como a sua interferência na autodeterminação, na gestão económica ou de compromissos, na comunicação, na interação social e na segurança do próprio ou de terceiros, devem preocupar-nos. Naturalmente, também deverão encaminhar-se para um médico as pessoas que apresentam outros sintomas neurológicos, como compromissos da cognição ou do juízo crítico, da capacidade de abstração, da linguagem ou de outras funções superiores, convulsões, cefaleias progressivas, quedas inexplicáveis, perturbações dos órgãos dos sentidos, motoras, da marcha, dos esfíncteres ou do ciclo vigília-sono, os sujeitos com sintomas psíquicos, como depressão, ansiedade, alucinações, delírios ou agressividade e ainda os que têm sintomatologia geral, como febre, emagrecimento, abuso de medicamentos, álcool ou drogas ou uma história familiar de demência precoce (início antes dos 65 anos).
À parte isto, esqueçamos os esquecimentos. Pelo menos, por enquanto.