Madalena Plácido chega a ter enxaquecas ao longo de 17 dias por mês. Sente dores de cabeça a meio de uma reunião de trabalho, em casa, nas férias e até nos momentos mais especiais, como o casamento. “Foi um dia muito feliz, mas estive o tempo todo desconfortável. Consegui suportar a dor, mas é difícil perceber que não pude desfrutar a 100%”, conta a farmacêutica, que naquela ocasião procurou minimizar os fatores que pudessem agravar a crise. “Tive cuidado com as bebidas que ingeri, com o sal da comida e com a luz dos espaços. Num dia como aquele, a última coisa em que queria pensar era numa enxaqueca, mas aconteceu.” Não foi a única vez que a doença perturbou o seu quotidiano. “Já houve vários Natais em que não pude estar com a minha família.”
Tal como Madalena, estima-se que cerca de 15% da população portuguesa sofra de enxaqueca. “É uma patologia que se caracteriza por episódios de dor de cabeça que duram entre um e três dias. Além de dor intensa, pode provocar náuseas, vómitos, dificuldade de raciocínio e de concentração e intolerância a alguns estímulos, como a luz e o ruído”, explica a neurologista Elsa Parreira, presidente da Sociedade Portuguesa de Cefaleias, acrescentando: “Muitas vezes, os sintomas são tão intensos que obrigam as pessoas a ficar em casa, a descansar em casa, no escuro. Podem prolongar-se durante horas ou até mesmo dias.” Pode ocorrer em qualquer faixa etária, mas é mais frequente entre os 15 e os 40 anos, e afeta maioritariamente mulheres em idade fértil.
Em algumas situações, manifesta-se na infância. Madalena tinha apenas 10 anos quando sentiu a cabeça a latejar pela primeira vez. “Estava a brincar, em casa de uma amiga. Disse à mãe dela que estava aflita e ela deu-me um Ben-u-ron, mas não senti melhorias. Quando foram buscar-me, estava de rastos”, recorda a farmacêutica, de 26 anos. “Como a minha mãe também sofre da doença, percebeu do que se tratava. Acalmou-me e explicou-me o que era”, diz, contando que o pai também partilha consigo a doença. “Foi muito importante, na altura, ter alguém que me tranquilizasse. Há muitas pessoas que passam anos sem saber o que têm.”
Nos primeiros tempos, Madalena tinha enxaquecas episódicas (sentia dor menos de 15 dias por mês), mas, aos 17 anos, passou a sofrer da forma crónica da doença – regista crises ao longo de mais de metade do mês, num calendário específico criado para o efeito. “Fui ao neurologista e passei a tomar medicação preventiva. Até então, apenas controlava as crises com medicação SOS”, conta a farmacêutica.
Como explica a médica Elsa Parreira, o tratamento profilático – recomendado para quem tem mais de uma ou duas crises mensais – inclui alterações do estilo de vida, mas também a toma de alguns fármacos que, não sendo específicos para a enxaqueca, contribuem para a controlar. É o caso de alguns antidepressivos, antiepiléticos e anti-hipertensos. Mais recentemente surgiram medicamentos específicos para esta patologia, mas “são ainda muito caros”, considera a neurologista.
Nova associação para combater preconceitos
Para sensibilizar a população e combater o estigma associado a esta patologia, um grupo de doentes empenhou-se na criação da Migra Portugal – Associação Portuguesa de Doentes com Enxaqueca e Cefaleias, lançada em setembro deste ano. “Há muita gente que desvaloriza as dores de cabeça”, considera a neurologista Elsa Parreira. “Uma pessoa que tem mais de uma por mês deve procurar um médico”, recomenda.
Os preconceitos multiplicam-se um pouco por todo o lado. “Há quem encare a dor de cabeça como uma desculpa para faltar ao trabalho, por exemplo. Não é verdade. Trata-se de uma patologia incapacitante”, afirma Madalena Plácido, agora presidente da nova organização. “Na maioria das vezes, os doentes fazem um grande esforço para manter as atividades diárias, seja as profissionais seja as pessoais”, sublinha.
É o caso de Filipe Secca, 35 anos. “É um desafio constante. Muitas vezes, estou com enxaqueca e mantenho a minha agenda de trabalho. Estou numa reunião importante e tenho dor de cabeça”, conta o arquiteto que sofre de um tipo de enxaqueca que provoca alterações visuais – a chamada enxaqueca com aura. “Fico com a visão distorcida. As cores ficam desfocadas. É como se estivesse a ver por um canudo. Depois, vem a dor de cabeça, forte e latejante, e as náuseas”, explica Filipe, contando que, da primeira vez em que lhe apareceram os sintomas, procurou um oftalmologista por não saber do que se tratava. “Fiquei muito assustado. Achei que estava com problemas nos olhos. Foi o médico quem me encaminhou para a devida especialidade.”
Como explica a neurologista Sara Machado, do Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, na Amadora, é possível classificar a enxaqueca de 20 maneiras diferentes. “A enxaqueca mais frequente não se faz acompanhar de sintomas neurológicos, mas, em alguns casos, pode provocar alterações na visão e na sensibilidade.” Sabe-se que tem causas genéticas. “Quem tem pais com enxaqueca tem mais probabilidade de ter, sobretudo se for a mãe a afetada pela doença.”
Filipe Secca cresceu com os relatos da avó materna e da mãe acerca da doença. “Lembro-me de ter dores de cabeça na escola e na faculdade, mas só aos 25 anos é que tive os sintomas mais fortes, com a enxaqueca com aura”, relata. Para controlar as crises, procura minimizar os fatores que as potenciam. Sabe que se beber vinho tinto, há grande probabilidade de ter um novo episódio. O mesmo acontece se estiver muito cansado ou stressado.
“Depois de se fazer o diagnóstico, analisa-se individualmente cada caso para se perceber o estilo e os hábitos de vida de cada paciente. Os fatores que desencadeiam uma crise podem variar muito de pessoa para pessoa”, explica a médica Sara Machado. Em causa poderão estar alterações de luminosidade, horários de sono irregulares, jejuns prolongados ou refeições fartas, strese emocional, bebidas alcoólicas e alguns alimentos como o chocolate, os laticínios e os citrinos.
Joana Ferreira, de 31 anos, percebeu que o álcool lhe provoca novas crises e por isso deixou de beber. Também evita sair à noite para não alterar os ritmos de sono. Neste momento, a terapeuta da fala sofre de enxaqueca 12 dias por mês, mas já houve fases em que chegou aos 14. “Sinto dor sobre os olhos. Tenho sensibilidade à luz, aos cheiros intensos e ao ruído. Fico impaciente, perco o equilíbrio. O meu raciocínio torna-se lento e às vezes troco palavras”, conta. “Em vez de dizer jantar, por exemplo, digo almoço, ou falo em cadeiras quando me refiro ao sofá.” Da primeira vez que aconteceu, achou que estava a ter um AVC. “Fiquei muito preocupada. Sofri a primeira enxaqueca aos 6 anos, mas a doença só me foi diagnosticada aos 26.”
Durante anos foi lidando com a doença com analgésicos e outros medicamentos comuns. Muitas vezes, omitia a dor aos colegas de trabalho. “Sentia-me culpada por estar naquela situação”, confessa, revelando que as faltas ao trabalho – tinha de se fechar em casa, no escuro – se repercutiam na diminuição do vencimento. Com o tempo, as crises foram-se tornando mais frequentes e, aos 25 anos, Joana procurou um especialista. “Passei a tomar medicação preventiva e de três em três meses levo injeções de botox.” No caso da enxaqueca, esta neurotoxina – com aplicações noutras patologias – provoca alterações na transmissão dos impulsos nervosos, minimizando a dor. A sua aplicação neste contexto é recente: foi aprovada em Portugal no ano passado.
A juntar a este tratamento preventivo, toma medicação SOS sempre que surge um novo episódio. Deita-se e espera que passe. “Uma vez, tive de ir para o hospital, porque não consegui controlar a dor. Puseram-me a oxigénio e a soro”, recorda Joana, que diariamente toma quatro medicamentos profiláticos. “Não posso fazer planos a longo prazo com receio de não poder ir.” Desistiu de marcar fins de semana fora que impliquem pagamento adiantado, por exemplo. Para tentar minimizar o impacto da doença, mudou de alimentação, recorreu à acupunctura, à reflexologia, à osteopatia e à naturopatia. “Experimentei várias soluções, mas sei que as crises, ainda que em menor número, continuarão”, lamenta
Lidar com uma crise
Quando uma enxaqueca se instala, há algumas medidas que podem ajudar a controlar a situação
MEDICAÇÃO
Tomar a medicação o mais cedo possível. Quanto mais cedo se tratar a crise, tanto maior é a eficácia dos medicamentos. Há doentes que adiam o tratamento e depois já não conseguem interromper a crise. Entre os fármacos, encontram-se analgésicos, anti-inflamatórios, antieméticos e triptanos. Estão para surgir novos medicamentos.
FRIO
A aplicação de frio, no local da dor de cabeça, também alivia. Pode ser um gel, um pano frio ou gelo – aquilo com que a pessoa se sentir mais confortável.
NO ESCURO E SEM BARULHO
Muitos doentes melhoram se conseguirem deitar-se e isolar-se. Ou seja, ficar em silêncio e no escuro. Ou então, se conseguirem, dormir meia hora.
PRESSÃO
Pode aplicar-se alguma pressão no local. Basta pressionar com a mão ou deitar-se sobre o lado da dor.
ALIMENTOS
Se se conseguir comer, deve-se fazer uma refeição leve. Isto é, alimentos de digestão fácil, sem muitas gorduras nem cheiro intenso. Deve-se ainda beber água, para hidratar.
CAFEÍNA
Há pessoas que melhoram se beberem café. Basta uma chávena.