Enfrentar uma pandemia num arquipélago obriga a medidas extraordinárias, dentro do próprio estado de emergência. Claúdia Rodrigues, 39 anos, internista no principal hospital, da maior ilha dos Açores – o Hospital do Divino Espírito Santo, em Ponta Delgada, São Miguel, fala das angústias de quem se encontra na último reduto do combate.
Como é tratar a Covid-19 numa região com as particularidades geográficas dos Açores?
Os desafios aos profissionais de saúde são comuns, quer se esteja nos Açores, quer se esteja em Portugal continental onde as assimetrias entre regiões são enormes. Cada hospital, cada centro de saúde, teve rapidamente de se organizar fazendo o seu próprio plano de contingência, que, no meu hospital, é ajustado e alterado com frequência, à medida que vão aparecendo os casos positivos, a afluência de casos suspeitos… O plano feito antes de começarmos a ter casos suspeitos, em nada tem que ver com o que vigora hoje. Como em muitos sítios, os recursos são finitos, e não haverá capacidade de transferir para outros hospitais. Estamos numa Ilha …
Ficar em casa também é a solução adotada nas ilhas, com a particularidade de haver um isolamento imposto a cada concelho. Como encara esta medida?
A questão transversal que deve mesmo ser incentivada a todas as pessoas é mesmo “fiquem em casa”. No entanto eu, como médica, habituada a tratar grande parte de população idosa com multicomorbilidades, também fico angustiada com este pedido, pois tenho plena noção que as outras doenças crónicas, ou doenças agudas (enfarte, AVC, …) continuam a existir e se a população quiser cumprir “à risca” o ficar em casa, vai sofrer também o reverso, que é descompensação de doenças crónicas, não procurando ajuda atempada e depois sofrendo consequências mais graves. É um “pau de dois bicos”.
As unidades de saúde regionais estão bem preparadas em termos de Equipamentos de Proteção Individual?
O nosso hospital é considerado um “hospital central” – temos todas as valências, com exceção de cirurgia cardiotorácica e cirurgia pediátrica. De certa forma, somos autónomos, digamos, em 90% das situações. Em relação à pandemia, o estar “bem preparado” é utópico. Vamo-nos preparando diariamente, adaptando aos recursos (e à falta deles!), com capacidade de improviso, tentando controlar o nosso próprio medo (pelos motivos facilmente percetíveis: somos humanos, não imunes, temos família…).
E em termos de recursos humanos?
Na linha da frente desta luta não estão todos. Há colegas que se amedrontam, de especialidades que não a Medicina Interna, e que, chamados a colaborar, alegam que “já não sabem ver doentes”, (tornaram-se “super-especilistas da unha grande do pé”. E que inclusivamente, no consultório privado, já se aventuram a tratar patologias que não são da sua área. Assim sendo, a carga de trabalho está a ser elevada para alguns e leve para outros – que viram a maior parte das suas consultas canceladas/ ou passaram para telefónicas. Assim, como se pode entender, o ambiente entre profissionais também não é o melhor. Todos precisamos uns dos outros e nesta altura excecional o Juramento de Hipócrates está esquecido por vários colegas. É verdade que também há alguns colegas, poucos, que se voluntariaram para esta luta e que estão a reaprender a “ver doentes” com os internistas.
Como tem sido gerida a realização de testes?
Em S. Miguel há 3 locais onde podem ser colhidas as zaragatoas da nasofaringe: no domicílio (os técnicos de colheita deslocam-se lá, para aquelas pessoas que ligaram para a Linha de Saúde Açores e foram dados como casos suspeitos, sem critérios clínicos de gravidade); no hospital (aos doentes suspeitos que lá recorreram – quer por sua iniciativa, e na pre-triagem são dados como suspeitos, quer referenciados pela linha, e a quem tenham sido apurados critérios de maior gravidade clínica, ou por se perceber que não terão condições de isolamento adequado no domicílio); ou na USISM, espécie de “drive-thru”, em que o utente se desloca na sua viatura, é testado dentro do carro e regressa a casa com indicação para quarentena obrigatória até sair o resultado (+- 24h, uma vez que apesar de se testar já em S. Miguel, juntam-se várias amostras para rentabilizar o teste). Para além da referenciação pela linha saúde açores, em alternativa, pode haver um contato espontâneo com os utentes, pela autoridade de saúde/ saúde pública, na sequência destas pessoas terem sido referidos como contatos de doentes Covid+. O rastreio sistemático aos profissionais de saúde, embora fosse o ideal, penso não ser, de todo, exequível, por questões económicas e por limitação de recursos.