James Monsees e Adam Bowen eram apenas mais dois estudantes na Universidade de Stanford, bem no coração do habitat tecnológico de Silicon Valley, nos Estados Unidos da América. Em comum, além de estudarem Design de Produto, aliavam o facto de serem fumadores. E foi durante as pausas para fumar que se tornaram amigos e pensaram em criar um dispositivo que desse aos fumadores a nicotina a que estavam habituados, mas sem as substâncias cancerígenas presentes no fumo do tabaco. A tese de final de curso, intitulada The Rational Future of Smoking (Fumar de forma racional no futuro), foi o protótipo de um cigarro eletrónico a que chamaram Ploom – precursor do Juul de que vamos falar nestas páginas.
Assim nasceu o negócio que os iria tornar bilionários, mas, também, recentemente, alvo de acusações devido ao aumento exponencial de estudantes do Ensino Secundário que passaram a vapear. Explique-se, já, que os cigarros eletrónicos são um dispositivo que produz um aerossol, vapor, através do sistema de aquecimento de um líquido por meio de uma bateria.
A 5 de novembro, a Food and Drug Administration (FDA, entidade norte-americana que regula a segurança alimentar, os produtos de tabaco e os medicamentos farmacêuticos) chocou os norte-americanos com um relatório que fez soar as campainhas: 27,5% dos estudantes do Ensino Secundário e 10,5% dos do 3º Ciclo utilizam o cigarro eletrónico e a maioria respondeu que o Juul é a sua marca preferida. A subida em flecha do consumo destes produtos, de 3,6 milhões de alunos em 2018 para mais de cinco milhões este ano, levou a FDA a falar de “níveis alarmantes”. O Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) chamou-lhe “epidemia” e o “maior desafio de saúde pública que a FDA enfrenta neste momento”, num estudo que justifica esse aumento com “a popularidade recente de alguns produtos, como o Juul”.
Cigarros eletrónicos
Vantagens
- O aerossol (vapor) produzido é quimicamente menos complexo e potencialmente menos nocivo do que o fumo do tabaco embora não esteja isento de riscos
- Podem ajudar algumas pessoas a deixar de fumar, mas a sua eficácia na cessação tabágica ainda é inconclusiva
- Não têm as quatro mil substâncias nocivas que fazem parte do fumo do tabaco, 70 das quais podem provocar cancro
Desvantagens
- Têm nicotina (substância responsável pela dependência)
- São prejudiciais à saúde
- Não há, ainda, estudos científicos suficientes sobre os efeitos dos cigarros eletrónicos no corpo humano
- A utilização de dispositivos comprados fora do comércio regulado é perigosa, assim como a sua utilização modificada ou a adição de líquidos com derivados da canábis
- Os adolescentes que os usam – muitos deles atraídos pelos aromas dos líquidos como chocolate, baunilha ou frutos – têm maior probabilidade de vir a fumar tabaco
O “iPhone” dos cigarros eletrónicos
E o que é o Juul? É o cigarro eletrónico mais popular dos EUA, que, nos primeiros seis meses deste ano, faturou 1,27 mil milhões de dólares (cerca de 1,15 mil milhões de euros).
O seu design original – achatado, em forma de pen drive –, que cabe na palma da mão, revolucionou um mercado que estava habituado aos cigarros cilíndricos, valendo-lhe a alcunha de iPhone dos cigarros eletrónicos. Os aromas a manga, menta e salada de fruta dos pods (cápsulas de líquido para vapear que se inserem no aparelho) fizeram o resto. E esse resto é agora a grande preocupação de milhões de pais e centenas de escolas. Tanto que muitos dos diretores tiveram de instalar detetores de vapor nas casas de banho – chamam-lhe “salas Juul” e são o local de eleição para os miúdos vapearem às escondidas – dos estabelecimentos de ensino e, até, de retirar algumas portas.
James Monsees e Adam Bowen, agora com 39 e 44 anos respetivamente, estavam longe de imaginar que as pausas para fumar na faculdade, em 2007, iriam dar origem àquela que a revista Time diz ser a “startup mais odiada dos EUA”.
O que os distingue:
Cigarro de tabaco
Composto de folhas de tabaco cortadas de forma fina que são enroladas em papel (mortalha). Contém mais de quatro mil substâncias (está provado que 70 delas são potencialmente cancerígenas), como alcatrão, monóxido de carbono, acetona, butano, amoníaco e nicotina.
Cigarro eletrónico
Aparelho que produz um aerossol, vapor, através de uma bateria que aquece um líquido, normalmente com nicotina. Não tem tabaco.
Tabaco aquecido
Produz um aerossol que não é fumo, já que o tabaco não é queimado como num cigarro convencional, mas aquecido. Tem tabaco e nicotina.
O Juul não é o único cigarro eletrónico à venda, mas tem quase 50% de quota de mercado nos Estados Unidos da América, além do facto de o gigantesco aumento de adolescentes que passaram a vapear coincidir com os números estratosféricos de vendas do Juul. Senão vejamos: a marca estreou-se em 2015 sem grandes conquistas; teve, aliás, alguns problemas na rede de distribuição. No ano seguinte, depois de algumas mudanças na direção da empresa e de uma forte aposta de divulgação nas redes sociais, começou a trepar na escala. Se nesse ano de 2016 vendeu 2,2 milhões de cigarros eletrónicos, em 2017 os números chegaram aos 16,2 milhões. As estatísticas da FDA mostram que a percentagem de adolescentes que usavam estes aparelhos estava abaixo dos 15% em 2016.
As proezas financeiras da Juul despertaram o interesse de um dos gigantes da indústria do tabaco. No final do ano passado, a Altria – que comercializa, entre outras marcas, a Marlboro – pagou 12,8 mil milhões de dólares (cerca de 11,5 mil milhões de euros) por 35% da empresa, passando esta a valer uns estonteantes 38 mil milhões de dólares (34 mil milhões de euros).
Líquidos ilegais relacionados com 47 mortes
A batalha norte-americana contra estes aparelhos tomou nova forma quando, a meio deste ano, começaram a surgir notícias de mortes relacionadas com o consumo de cigarros eletrónicos. O CDC tem reportado os resultados através de boletins informativos. Até agora, morreram 47 pessoas e 2 290 têm doenças nos pulmões relacionadas com estes cigarros.
Esta agência nacional, após investigação científica a amostras do fluido pulmonar de 29 pacientes (dois deles falecidos), encontrou acetato de vitamina E em todas. “Pela primeira vez, detetámos uma substância química potencialmente preocupante, acetato de vitamina E, que foi encontrada em amostras biológicas de pacientes com danos nos pulmões”, explicou Anne Schuchat, vice-diretora do CDC. Este óleo é utilizado no fabrico de líquidos ilegais que contêm THC (tetra-hidrocanabinol) – o princípio ativo com efeito psicotrópico da canábis. Segundo o mesmo relatório, o THC foi encontrado em 82% das amostras e a nicotina em 62 por cento. As autoridades continuam a investigar e não descartam que possa haver outros componentes químicos, alertando os consumidores para não aceitarem líquidos de vapear não licenciados oferecidos por amigos, familiares ou através de compras no mercado negro online.
Pensa-se que os casos estarão relacionados com substâncias adulteradas, muitas delas ligadas à inalação de líquidos contendo canábis. Mesmo em alguns dos doentes que disseram apenas ter inalado nicotina foi encontrado THC na urina.
O caso está longe de ficar esclarecido, assim como estão distantes as conclusões sobre os efeitos dos componentes dos cigarros eletrónicos no corpo humano. A Organização Mundial da Saúde (OMS) avisa que os estudos ainda são poucos e inconclusivos.
“Não conhecemos bem as substâncias que resultam do aquecimento dos líquidos inalados”, nota Paula Rosa, pneumologista e coordenadora da Comissão de Trabalho de Tabagismo da Sociedade Portuguesa de Pneumologia.E se a indústria destes produtos os vende como uma alternativa ao tabaco convencional, a médica é perentória na resposta: “Não são alternativa. Têm nicotina, que é uma substância altamente aditiva. Além disso, às vezes as pessoas pensam que é na combustão [queima] do cigarro convencional que está o mal e isso não é verdade; é claro que tem malefícios, mas a nicotina também os tem ao nível cardiovascular. E as doenças cardiovasculares são responsáveis pelo maior número de mortos.”
A OMS refere que estes cigarros “podem ajudar algumas pessoas” a deixarem de fumar, embora a opinião não seja consensual. O serviço de saúde público inglês (NHS) recomenda aos fumadores que não consigam mesmo largar o tabaco que passem a usar os aparelhos eletrónicos, embora esta não seja, como refere a pneumologista, “a opinião de todos os cientistas”.
Vendidos em Portugal
A startup Juul Labs entrou com tudo quando lançou o Juul em 2015. Fez festas e iniciativas em várias cidades norte-americanas, pôs anúncios em revistas e usou as redes sociais para difundir o produto. Sob o lema “Vaporized”, aparecia a fotografia de uma rapariga jovem vestida com calças justas, top e blusão e o Juul na mão direita. Apresentava-se com oito pods (cápsulas de líquido) de diferentes sabores: menta, mentol, salada de fruta, manga, leite-creme, pepino e dois aromas a tabaco. O eleito entre os alunos do oitavo ano é manga e os do Secundário preferem a menta, segundo um estudo publicado no mês passado no Journal of the American Medical Association.
O produto continha nicotina, mas esta estava apenas mencionada na lista de ingredientes. Só no verão de 2018, e por aviso da FDA, é que as embalagens passaram a ter a menção “contém nicotina” de forma mais visível. Aliás, a fórmula química que lhes permitiu ter uma substância com 5% de nicotina em cada cápsula (o equivalente a 20 cigarros) é um dos segredos do sucesso. As marcas concorrentes vendem produtos com 1%, 2% ou 3%, mas as experiências fizeram com que a Juul conseguisse ter um líquido mais forte que é suave e não arranha na garganta.
Caleb Mintz, agora com 17 anos, testemunhou numa audiência do Congresso norte-americano a propósito do papel da Juul na epidemia de vapers, em julho, que, quando a empresa foi à sua escola para uma palestra sobre hábitos de vida saudáveis e adição à nicotina, lhe foi dito que, embora a empresa não quisesse propriamente tê-los como clientes, aquele produto “era totalmente seguro”. O rapaz, na altura no 9º ano, declarou que os colegas saíram da sala com a ideia de que “aquele era apenas um dispositivo para vapear aromas e que não tinha substâncias que fizessem mal”.
A mãe de Caleb, Meredith Berkman, fundadora de um grupo de pais contra os cigarros eletrónicos, disse, na mesma audiência, segundo a revista Time, que os miúdos de hoje formam “uma geração inteira de viciados em nicotina”. A médica Paula Rosa concorda. “São novos consumidores que vão permanecer muitos anos agarrados à nicotina.”
O Juul começou a sua internacionalização em 2018. Em meados do mês passado chegou a Portugal e está em 600 pontos de venda (espera estar em mil até ao fim deste mês), disponibilizando os aromas de menta, manga, baunilha e tabaco vendidos em kits – duas cápsulas custam €6,99 e quatro €11,99.
À VISÃO, por email, a Juul Portugal diz que tem como missão “melhorar a vida de mil milhões de fumadores adultos em todo o mundo e eliminar os cigarros de combustão”. A empresa refere que os seus produtos se destinam “apenas a fumadores adultos e não são, sob qualquer circunstância, adequados para não fumadores, especialmente jovens”. Essa é também a garantia que o novo CEO (Kevin Burns foi substituído em setembro por K.C. Crosthwaite) não se cansa de repetir, tentando conter os danos à imagem da empresa.
Por cá, segundo a Direção-Geral da Saúde, temos 1,8 milhões de fumadores. A taxa de 20% da população, embora alta, está abaixo da de 28% da União Europeia. Os números não estão desagregados, não sendo possível saber quantos fumam cigarros convencionais, tabaco aquecido ou cigarros eletrónicos.
Dilemas nos tribunais
Quando o número de consumidores adolescentes norte-americanos começou a disparar, a Juul reorganizou a sua estratégia para refrear o aumento. Há cerca de um ano, os aromas com sabores a manga, salada de frutas ou leite-creme saíram das lojas e passaram a ser vendidos exclusivamente através da internet a maiores de 21 anos – mais tarde foi, também, suspensa a venda no site norte-americano até nova avaliação da FDA. Também apagou as suas contas do Facebook e do Instagram. Mas Juul já se tinha transformado em verbo corrente. “Juuling” passou a ser o termo usado entre os jovens para vapear.
A subida em flecha de estudantes com este cigarro nas mãos começou a levantar polémica e até a administração de Donald Trump disse, em setembro, que iria travar a venda de produtos com aromas. “Não podemos permitir que as pessoas fiquem doentes e não podemos ter a nossa juventude tão afetada por isto”, notou o Presidente, na Casa Branca.
A Juul Labs anunciou, entretanto, que vai deixar de vender o sabor a menta tanto nas lojas como no seu site (nos EUA). No entanto, há poucas semanas, Donald Trump deu indícios de ter voltado atrás ao afirmar (no Twitter, como sempre) que se vai “reunir com a indústria do vaping e com vários médicos para, juntos, chegarem a uma solução aceitável para o dilema do vaping”.
Os processos judiciais, esses, começaram a chegar aos tribunais. Além de pais e escolas, os estados de Nova Iorque, Carolina do Norte, Califórnia e Columbia entraram com ações contra a empresa por marketing dirigido a adolescentes.
O procurador-geral Karl Racine referiu à Imprensa norte-americana, no dia em que entregou os documentos judiciais, que “há uma epidemia de adolescentes a vapear e as taxas de utilização de cigarros eletrónicos atingiram níveis sem precedentes”.
A discussão à volta do Juul não fugiu ao olhar atento da Netflix. No passado dia 27, incluído na série documental Broken, estreou um programa com foco no Juul. Em Big Vape desfilam adolescentes de cigarro na mão.