No filme Knives Out: Todos são Suspeitos (em exibição nos cinemas) há uma personagem que tem uma característica especial: se mentir, vomita. Esta estranha condição da enfermeira Marta Cabrera (interpretada por Ana de Armas) acaba por ser bastante útil ao polícia que investiga o homicídio do patriarca de uma família em que todos parecem ter um motivo para querer que o homem tivesse morrido. Mas será real esta associação entre a mentira e o vómito ou apenas serve o propósito do filme?
Em primeiro lugar fica desde já esclarecido: todos mentimos. Todos. Sejam as chamadas mentiras piedosas que nos permitem viver em sociedade, as omissões ou, de forma mais grave, por maldade. E, de facto, a mentira tem as costas muito largas. Há quem minta com intenção, outros constantemente, quem o faça a si próprio (quando se está em estado de negação) ou como forma de não magoar. Entre o “este arroz está bom” que dizemos enquanto convidados na casa de alguém mesmo que, afinal, não esteja assim tão bom, e o “foi ele/ela quem roubou” com intenção de prejudicar vai alguma distância.
Agora, vamos ao caso específico da enfermeira do filme.
Mentir provoca ansiedade que, em algumas pessoas, pode ser extrema. Fizemos quatros perguntas a Eduardo Cardoso Pires, gastrenterologista e presidente do Núcleo de Neurogastrenterologia da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia sobre estes “sintomas” e se é possível que mentir provoque vómitos.
Alguma vez teve conhecimento de um caso deste género? Teve algum paciente com este tipo de sintomas?
Situações de grande stress e ansiedade podem de facto originar sintomas digestivos com náuseas e vómitos. Não me lembro de nenhum doente que ao mentir vomitasse, mas já acompanhei múltiplos doentes com situações de vómitos associados a “crises de pânico” e ansiedade acentuada.
É possível isto acontecer?
A mentira, proferida por variadas razões como ato de interação social, desencadeia, em cada pessoa, diferentes tipos de emoção, entre as quais se destaca a ansiedade. A intensidade desta ansiedade pode mesmo ser avaliada por escalas psicológicas já validadas.
Mentir põe o cérebro em alerta. Esse stress e/ou ansiedade pode levar a problemas gastrointestinais? De que forma?
A mentira pode condicionar um estado de excitação emocional (stress) que perturba o equilíbrio interno, desencadeando respostas adaptativas que produzem diversas alterações sistémicas fisiológicas e psicológicas. A resposta a este stress vai resultar da interação das características da própria pessoa (genética, cultura, experiências precoces) e fatores ambientais, ilustrando o modelo biopsicossocial de suscetibilidade a distúrbios gastrointestinais.
A extrema ansiedade pode levar a desordens intestinais? O cérebro “comunica” com o intestino?
O stress psicológico ou a resposta emocional individual ao stress pode exacerbar sintomas gastrointestinais ou contribuir para o desenvolvimento de perturbações gastrointestinais como as náuseas e os vómitos. Existe de facto uma comunicação bidirecional entre o Sistema Nervoso Central (Cérebro) e o Tubo Digestivo, chamado “Eixo Cérebro-Intestino”. Este é formado por um circuito integrado complexo, de neurónios (células nervosas), células endócrinas (produtoras de hormonas) e sistema imune-inflamatório, que comunica, nos dois sentidos, informação entre centros emocionais e cognitivos do cérebro e o trato gastrointestinal periférico. Desta forma as perturbações gastrointestinais atribuídas a distúrbios na comunicação do Eixo Cérebro-Intestino, como os vómitos induzidos pelo stress, surgem da combinação de vários fatores como sejam as alterações da motilidade e da sensibilidade, disfunção da resposta imune/inflamatória, alteração da microbioma e fatores psicológicos.