Um dia, percebi que a minha vida não tinha sentido e fui ao médico.” Assim começa o testemunho do paciente inglês da campanha contra a solidão, lançada no Reino Unido, há dois anos. A partir de quando é que o corpo começa a sentir-se num deserto, como se fosse invisível? A solidão é uma epidemia que os cientistas definem como “discrepância entre o nível desejado de conexão social e aquele que efetivamente se tem”. A sensação de isolamento aumenta em função dessa discrepância, aloja-se no corpo e, com o tempo, ganha a forma de sintomas e pode acabar em doença. Confirmam-no os trabalhos da psicóloga e neurocientista americana Julianne Holt-Lunstad: a solidão percebida e a falta de laços sociais têm efeitos negativos no estado de saúde, agravando problemas já existentes e aumentando em 30% o risco de depressão e de morte prematura.
Desde a II Guerra Mundial que se sabe que, se as condições ambientais forem percebidas como ameaçadoras, o organismo ativa a resposta de stresse: o ritmo cardíaco acelera, a pressão arterial aumenta e os níveis de cortisol, adrenalina e norepinefrina são libertados em doses generosas na corrente sanguínea. As hormonas responsáveis pela reação de “ataque-ou-fuga” até seriam bem-vindas, não fosse o facto de estarem sempre “a bombar”, colocando o corpo em estado de alerta contínuo, sem baixar a guarda. Daí aos processos inflamatórios e às alterações no sistema de defesas vai um passo, criando-se condições para que a doença se instale.
Pouco contacto, mais doença
Uma pesquisa divulgada no início do milénio pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), nos Estados Unidos da América, já tinha evidenciado a ligação entre o défice crónico de sono e os problemas associados à fraca regulação das funções orgânicas, traduzindo-se num estado de fraqueza generalizado e em doenças crónicas, como a diabetes tipo II e outras complicações, em idades mais tardias, como as doenças autoimunes, cardiovasculares, oncológicas e neurológicas, mais comuns em quem se sente muitas vezes só.
A génese destes estudos está na Universidade da Califórnia, em Los Angeles (UCLA). Quando a equipa de investigadores coordenada pelo psicólogo Daniel Russell desenvolveu a escala da solidão, há quatro décadas, estava longe de imaginar que os adolescentes e jovens adultos eram mais propensos a sentir stresse quando a necessidade de se relacionarem não era satisfeita. Hoje, verifica-se o mesmo, e de forma ainda mais evidente. Os resultados da aplicação da escala a um grupo etário dos 21 aos 30 anos, em Berkeley, apontam para duas vezes mais relatos de sentimentos de solidão comparativamente com o grupo com idades entre 50 e 70 anos. O que se passa com os nativos digitais e milenares? O estudo longitudinal do King’s College, divulgado no ano passado, sob a coordenação do britânico Timothy Matthews, mostra que o aumento de sintomas de mal-estar e perturbações mentais estava relacionado com sentimentos de rejeição e falta de companhia.
Numa amostra com mais de 2 000 gémeos nascidos entre 1884 e 1995 e avaliados até aos 18 anos, 7% sentiu rejeição, isolamento e falta de companhia “com frequência” e 30% responderam “às vezes”. O problema atinge um em cada quatro cidadãos (nove milhões) no Reino Unido, condição suficiente para levar a conservadora parlamentar e ex-ministra do desporto Tracey Crouch a anunciar a criação do Ministério da Solidão para combater os efeitos do isolamento social (mortalidade precoce, demência), com custos a rondar os €3 mil milhões anuais.
O sentimento de solidão, com os consequentes riscos para a saúde, depende da qualidade dos contactos que se tem e não tanto do facto de se viver só (a menos que não seja uma escolha). Neste campo, aliás, estaremos melhor do que os britânicos: o Reino Unido ocupa o 3º lugar da lista dos países europeus com mais gente a viver só, Portugal ocupa o 17º. São 939 mil portugueses a viverem sós, o que corresponde a 9% da população, sendo a média da União Europeia de 15 por cento. Na Europa a 28, um terço das pessoas com 65 anos ou mais vivem sozinhas, enquanto em Portugal ficamos pelos 22 por cento. Contudo, tendo em conta os elevados níveis de problemas de saúde associados à solidão (ver caixa O que a solidão faz ao corpo), apetece perguntar, como os Beatles: “De onde vêm todas as pessoas sós? Aonde pertencem elas?”
Contar, ou não, com alguém
Até recentemente, a academia pressupunha que ter apoio social era a chave para uma melhor perceção de bem-estar e um meio de amortecer a resposta de stresse. Pessoas socialmente ativas, com amigos e grupos de interesses em comum, teriam mais saúde, vitalidade, resiliência e longevidade. Porém, sabe-se agora, “a solidão subjetiva pode coexistir com o contacto social e ser fator de risco para problemas de saúde, que culminam em menor esperança de vida”. O investigador Rui Miguel Costa, do William James Center for Research, do ISPA – Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida, lembra que somos seres sociais que evoluíram graças à companhia de outros. As pesquisas realizadas com a colega Ivone Patrão, publicadas no artigo científico Uso Problemático da Internet e Sentimentos de Solidão, sugerem que o cérebro continua a dizer ao corpo que está sozinho quando está online, pela pobreza da informação sensorial recebida.
O psicólogo usa uma metáfora: “Imagine uma tribo pré-histórica que sabe que outra a visitou porque já deixou uma pedra a dizer ‘like’ – de pouca companhia lhe serve.” Na prática, “o nosso cérebro precisa de feedback corporal para se sentir acompanhado, o que não chega a acontecer só por via digital”. Além dos cinco sentidos, é preciso considerar o movimento, a posição e o que ocorre nos órgãos internos do corpo, gerando sensações de conexão. A pesquisa, publicada no International Journal of Psychiatry in Clinical Practice, centrou-se numa amostra de 500 estudantes de liceu e da universidade, e confirmou que “o uso problemático de internet (redes sociais) se correlaciona com depressão, ansiedade, problemas de sono e sentimentos de solidão”. Estes “quatro cavaleiros do apocalipse” foram encontrados num estudo longitudinal dos anos 90.
A solidão pode provocar alterações no sistema imunológico, criando condições para que a doença se instale
A procura de companhia real no registo online gera no cérebro a sensação de continuar só, ou ainda mais só, “por não satisfazer a expectativa de estar na presença de um outro” que seja sensorialmente rica: “A correlação negativa entre uso de redes sociais e solidão mantém-se, mesmo tendo namorado(a), bom ambiente familiar e tempo face a face com amigos”, esclarece Rui Miguel Costa, cuja equipa está a replicar o estudo americano, que mostrou que a comunicação online aumenta a solidão. A ideia é testar se esse uso se associa à menor consciência dos estados internos do organismo.
Confinamento e castigo
As proporções epidémicas da solidão nos Estados Unidos, mais graves do que as da obesidade, levaram a Associação Americana de Psicologia a considerá-la um problema de saúde pública, tal como no Reino Unido. Em Portugal, os resultados do inquérito feito há três anos pelo Observatório da Sociedade Portuguesa da Universidade Católica mostraram que, em quase mil inquiridos, a maioria não referiu falta de companhia ou sentimentos frequentes de solidão. Porém, outro estudo sugere que o cenário de quem envelhece em zonas desertificadas e vive em situação de pobreza se afigura mais sombrio. Adalberto Dias de Carvalho, presidente do Observatório da Solidão, do Instituto Superior de Ciências Empresariais e de Turismo (ISCET), no Porto, recorda um caso paradigmático do trabalho de campo, feito há quase uma década: “Uma senhora dizia-me ‘entro em casa e sei que o telefone nunca tocará’.” Ao drama de precisar da presença de alguém junta-se a desconfiança face ao estranho. O filósofo refere ainda procedimentos que as instituições deveriam, há muito, repensar: “Por exemplo, levar utentes de um lar a uma visita e impor uso de fralda, até a quem não precisa, atinge a dignidade e a autonomia e não fomenta a criação de novos laços sociais.”
O psiquiatra António Sampaio identificou a solidão como fator de risco para se adoecer, e que se manifesta em alterações químicas nos eixos neuroendócrinos mediadores da depressão: “Verifica-se a atrofia do hipocampo e o embotamento emocional, próprios da escassez de emoções e de vínculos que nos fazem querer viver.” O médico que dirige a Egoclinic, em Lisboa, sublinha que as doenças do isolamento não escolhem idades. Ser excluído na escola, na comunidade ou na rede social é uma espécie de castigo social, tal como o é o confinamento numa prisão. Privar-se de ter uma vida extralaboral, por exemplo, é outra forma de adoecer: “Colmata-se a falta de companhia através de copos e outras gratificações imediatas, mas fica-se vazio, sem saber quem se é.”
Receita? Companhia
Anabela Mota Pinto, diretora do Instituto de Patologia Geral, na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, há bons anos que se dedica a estudar o perfil de envelhecimento da população portuguesa, tendo verificado, num estudo em parceria com a Universidade Nova, há nove anos, que “o isolamento social, ou estar mais de oito horas sozinho, aumenta com a idade”, e não é igual para ambos os sexos: “As mulheres com 75 ou mais anos estão mais horas sem falar com ninguém (47%) comparativamente com os homens (27%).” Sabendo que o sentimento de solidão se alimenta dos receios de quem se sente só e das dificuldades de adaptação, e que “está diretamente relacionado com a baixa condição socioeconómica e o sedentarismo”, a médica e investigadora sugere que se previna o declínio funcional e o aumento da mortalidade no envelhecimento através de soluções concretas, a saber: “Identificar idosos que vivem isolados e com sentimento de solidão e criar rede que lhes permita autonomia e motivação para as suas atividades e desenvolver sentimentos de felicidade.”
O que a solidão faz ao corpo
- Doença cardíaca Estudo da Universidade Brigham Young revelou que pessoas que se sentem sós veem o ambiente como não seguro e aumentam a resposta de stresse, fator de risco para o coração
- Redução da imunidade Pesquisa com 83 jovens saudáveis feita em 2005 mostrou que os que se sentiam sós e tinham poucos amigos aderiam menos à vacina antigripal e produziam menos anticorpos
- Doenças inflamatórias Investigadores da UCLA mostraram que pessoas que costumam sentir-se sozinhas são mais propensas a desenvolver artrite reumatoide, periodontite, Alzheimer e cancro
- Perturbações do sono Estudo americano do National Institutes of Health mostrou que dormir menos e mal agravava-se em pessoas com solidão, alterando níveis de glicemia com mais risco de ter diabetes tipo 2
- Demência Estudo holandês do University Medical Center, em Amesterdão, mostrou que seniores que se sentiam sós tinham mais de 60% de risco de ter a doença (e, mostraram outros estudos, menos tempo de vida)
No ensaio Nós e os outros, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, a psicóloga social Maria Luísa Pedroso Lima explica como a experiência de relações sociais promove a saúde. O Inquérito Social Europeu (2014), aplicado regularmente a uma amostra representativa de portugueses, permitiu concluir que as práticas de sociabilidade são preditores da felicidade. Entre os que se consideravam felizes, 78% conviviam com amigos, colegas e familiares mais de uma vez por semana, 34% achavam que podiam confiar noutras pessoas e apenas 7% assumia não ter com quem falar de assuntos íntimos (no grupo dos infelizes, as respostas a estes itens foram, respetivamente, 50%, 9% e 20%). Estar envolvido em atividades coletivas permite “desfrutar do tempo em conjunto, sentir-se ligado e partilhar bons momentos”. Uma vitamina para a saúde.
“O que recomendo às pessoas quando se sentem vazias, tristes e sós é que vão ao encontro de pessoas com interesses comuns, tenham uma atitude proativa, ao menos uma vez por semana. Elas estão cá, mas temos de procurá-las”, acrescenta o psiquiatra António Sampaio. Não sendo sempre fácil, é certamente possível. Como o paciente inglês que queria um remédio para a perda do sentido da vida e veio da consulta sem fármacos: “O médico não me deu comprimidos e falou-me de uma coisa chamada ‘prescrição social’. Agora, tenho amigos e saio de casa para comer.”
TESTE
Até que ponto está sozinho?
Para cada item, assinale uma das quatro opções:
1 = Nunca
2 = Raramente
3 = Algumas vezes
4 = Frequentemente
Sente-se infeliz por fazer muitas coisas sozinho(a)? □
Sente que não tem alguém com quem falar? □
Sente que é insuportável estar só? □
Sente-se como se ninguém o compreendesse? □
Já não conta que alguém o(a) visite, telefone ou escreva? □
Quantas vezes se sente completamente só? □
Sente-se incapaz de estabelecer contacto com quem o rodeia? □
Sente muita vontade de ter companhia? □
É-lhe difícil fazer amigos? □
Sente-se à margem e excluído(a) pelos outros? □
Resultados: Some a pontuação assinalada para cada um dos itens para obter o valor total.
20 ou menos
A solidão não é um problema para si nem um risco para a saúde
25 ou mais
Sinais de solidão (vazio, isolamento); alguns sintomas de mal-estar
30 ou mais
Solidão com sentimentos de desamparo, elevado risco de doença
Adaptado de UCLA Loneliness Scale, Dr Daniel Russell