Podia ter sido uma consulta como tantas outras, mas não foi. O paciente, homem de 33 anos, com sinais evidentes de ansiedade generalizada, pedia ajuda. Economista, casado, quadro de uma grande empresa em Lisboa, havia sido promovido há cerca de nove meses. Responsabilidades crescentes, tal como a insónia e o sofrimento por antecipação. Na observação, o clínico João Nogueira – que no Royal London Hospital estagiou em Psicodermatologia (especialidade que se debruça sobre patologias na fronteira entre a psiquiatria e a dermatologia, inexistente em Portugal) – viu além da ansiedade extrema: “Ao falar, o paciente ia arrancando pelos da barba.” A pelada, já visível, era consequência da tricotilomania, doença psiquiátrica que leva a arrancar cabelos, sobrancelhas, pelos das axilas, do peito, da barba ou púbicos. Fazia-o desde os 15 anos e piorava sempre “com os nervos”. Receava, já, deixar de controlar o impulso nas reuniões de trabalho. “Estes doentes controlam-se muito à frente das outras pessoas, este doente só não o fez na consulta dado o nível de ansiedade”, explica o médico interno do departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar de Setúbal. “Ele tinha tricotilomania antes de a ansiedade se tornar patológica, só que o agravar da ansiedade agravou a doença.” Ansiedade e tricotilomania são duas entidades distintas, porém, andam sempre de mãos dadas. No entanto, se a primeira todos sabem o que é, a segunda é um problema ainda desconhecido da maioria das pessoas. Em julho, na véspera de comemorar o seu 27º aniversário, e quando uma seguidora no Instagram lhe perguntou o que fazia nas sobrancelhas, Sara Sampaio decidiu fazer uma revelação e contou que sofre desta doença. “Bem tento não tocar, mas infelizmente tenho tricotilomania e puxo-as. Tenho várias falhas nelas. Apenas uso um lápis para preencher as falhas”, disse. Tendo em conta as muitas mensagens que recebe, acabou por confessar, uns dias depois, que o seu problema começou quando tinha cerca de 15 anos. “Eu tirava pelos das pestanas e imediatamente depois passei para as sobrancelhas. Já não puxo as pestanas e tenho tirado das sobrancelhas desde então! Os episódios são piores quando estou sob muito stresse ou quando não estou a fazer nada, como a ver televisão ou a ler um livro.”
Arrancar pelos não é tique
Mas o que se passa, afinal, com estes doentes? “Surge-lhes a ideia de tirar o pelo. Lutam muito contra essa vontade (que sabem ser anormal e esquisita), mas acabam por ceder e arrancar”, sintetiza o psiquiatra do Hospital de Santa Maria, João Miguel Pereira. “A ansiedade deles acalma temporariamente, mas, em poucos segundos, vêm o arrependimento e a culpa”, sintetiza. Até terem um diagnóstico, desconhecem sofrer de uma doença do espectro das POC (perturbações obsessivo-compulsivas), “acham que é uma ‘panca’ sua”, diz João Nogueira, membro da Sociedade Europeia de Psicodermatologia.
A tricotilomania afetará 1% a 4% da população mundial, ombreando com a esquizofrenia. Só que, comparativamente com esta, “está muito mal estudada” dado o impacto, bem mais modesto, na vida das pessoas. Na verdade, quem tem tricotilomania “pode viver anos neste sofrimento”, explica o psiquiatra do Hospital de Santa Maria. E só quando há sinais exteriores da doença – peladas na cabeça, nas sobrancelhas, ou quando pessoas próximas criticam ou questionam o estranho ritual –, o doente procura ajuda.
Se o efeito da compulsão assumir contornos graves, impacta na vida do doente. Em Londres, João Nogueira lembra uma rapariga que “andava sempre de boina (mesmo nas consultas era difícil tirá-la), não ia à escola, tinha vergonha das enormes peladas no coro cabeludo”.
No entanto, na maioria das vezes, sem um gatilho (ansiedade, stresse, depressão) que agudize os sintomas, o doente gere o ato, no dia a dia, interpretando-o como um tique. Na verdade, não o é. O tique é involuntário. Aqui, “o ato é consciente e voluntário”. Esse desconhecimento do próprio doente sobre a sua doença, será a razão de a tricotilomania estar tão subdiagnosticada – deduzem os psiquiatras.
Carga genética
A origem da tricotilomania é, ainda, misteriosa. Multifatorial, terá uma carga genética importante: “Quando se objetiva, conclui-se que na família há outros casos, embora sempre desvalorizados”, diz João Nogueira. Já o psiquiatra e professor da Faculdade de Medicina de Lisboa, Diogo Telles Correia, lembra que esta doença depende, “como todas as perturbações psiquiátricas, de fatores biológicos (o nosso cérebro e os nossos genes) e ambientais (aquilo que vamos experienciando, nomeadamente situações traumáticas na infância)”. A doença tende a iniciar-se cedo (na adolescência) e a prolongar-se ao longo da vida.
Mas “como está mal estudada, não há grandes armas terapêuticas”, lamenta o médico João Miguel Pereira, enfatizando as melhorias permitidas pela terapia cognitivo-comportamental. “Coisa que em Portugal há pouco” – ou é cara no privado ou nos hospitais públicos quase não é oferecida –, “então nestas áreas muito específicas é um mito”, diz João Nogueira.
Hoje, dois anos após o início do tratamento – com antidepressivos (que atuam na seratonina) – e já consciente da sua doença, o economista de 33 anos já controla mais o seu impulso de arrancar pelos. Só que “o pensamento não desapareceu”, conta o médico que o acompanha.
Homem com tricotilomania foi paciente nunca visto na consulta de João Miguel Pereira, que ao longo de 15 anos tratou de sete casos de jovens adultas: “Só tratei mulheres, são elas as mais afetadas por esta doença, aliás, como acontece com as perturbações de ansiedade.” Porquê? Não se sabe ao certo.
Sinais de alerta
É na adolescência que se inicia, mas só quando se prolonga até à idade adulta é considerada doença
Um dado comum, nos casos tratados pelos clínicos, é que um adulto com tricotilomania começou com a perturbação na adolescência. Não há registo de um doente ter aos 40 anos os primeiros sintomas.
Os sintomas começam na transição da infância para a idade adulta, mas podem desaparecer ainda no decurso da adolescência
Caso repare que o seu filho arranca os pelos, observe-o durante dois anos e só fique em alerta se o ritual permanecer. A tricotilomania “só deve ser considerada doença e preocupar se se estender à idade adulta”
A falta de cabelo e de pelos noutras regiões, pode ser um sinal de alerta
A irritabilidade e o mau humor podem estar associados a quem sofre desta doença. Isto por a pessoa viver numa luta permanente
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