“O elevado número de perturbações mentais é um problema sociopolítico” – 5 perguntas a Philippe Even, Médico urologista e coautor do livro Dépressions, Antidépresseurs: Le Guide
O dia até pode estar bonito e as pessoas parecerem simpáticas com os seus olás matinais. Porém, há alguma coisa de errado, dentro ou fora de nós: a costumeira dor de cabeça ou de costas, a falta de apetite crónica, o estado de abatimento e de angústia; outras vezes, são as noites mal dormidas, os esquecimentos e a dispersão, os suores, as palpitações, o receio de morrer a qualquer momento; ou ainda as explosões no trânsito, as discussões frequentes, lesões, acidentes, sensação de incompreensão e falta de sentido.
Os psicofármacos, remédios para aliviar o sofrimento mental e tratar desequilíbrios químicos, têm um papel decisivo nessas alturas críticas: aliviam o sofrimento mental, tratam desequilíbrios químicos e funcionam como alavancas de bem-estar, capazes de devolver a normalidade e trazer algum consolo, o que quer que tal signifique para cada um de nós.
O problema é que o consumo destes comprimidos se mantém em níveis perigosamente elevados. Segundo o INFARMED – Autoridade Nacional do Medicamento, entre 2012 e 2017 registou-se um aumento do consumo de embalagens de medicação para perturbações psicológicas em praticamente todas as classes terapêuticas.
Os números mais recentes permitem afirmar que as vendas de medicamentos para acalmar e dormir superam os 10 milhões e meio. Ou seja, por ano, cada português consome cerca de 1,05 embalagens.
Quanto aos antidepressivos, se em 2012 eram muitos e não chegavam aos 6 milhões, que dizer dos quase 8 milhões e meio em 2017? No tratamento dos casos mais graves, os números revelam que, pelo menos, um terço dos portugueses toma medicação antipsicótica.
No caso dos estimulantes, estudos sobre o padrão de consumo sugerem que ele aumenta em períodos de crise social ou económica, sendo de assinalar que no ano passado se venderam mais de 250 mil embalagens, o que representa uma ligeira descida desde 2015.
Receitas e questões
É com algum embaraço que olhamos para os números da Estratégia Nacional do Medicamento e dos Produtos de Saúde: em 2016, quase 2 milhões de portugueses adquiriram, pelo menos, uma embalagem de fármacos para ansiedade e insónia, a maioria mulheres (70%).
As idades em que mais se consome situam-se entre os 55 e os 79 anos, sobretudo na região dos Açores. Na análise realizada pela Health Market Research (HMR), baseada num painel de 2 440 farmácias, que correspondem a 84% da cobertura nacional, estes dados ganham mais expressão por considerarem a venda de medicamentos não comparticipados através do Serviço Nacional de Saúde.
Assim, por exemplo, no grupo dos ansiolíticos, sedativos e hipnóticos, verifica-se um acréscimo de quase seis milhões de embalagens face às contabilizadas pelo Ministério da Saúde.
Nos antidepressivos, os 8,5 milhões contabilizados pelo INFARMED, ficam aquém dos nove milhões vendidos nas farmácias. Números alarmantes, apenas compensados pelo decréscimo sustentado do consumo de calmantes em seis anos: menos 3,5 milhões.
Os comprimidos antipsicóticos, indicados no trata mento de esquizofrenia, perturbação bipolar e outras perturbações psiquiátricas com estados delirantes, registaram um aumento das vendas com uma subida de quase um milhão de embalagens, sobretudo comprimidos de marca.
A preferência pelos não genéricos verifica-se também, embora menos, nos psicoestimulantes, prescritos para a perturbação de hiperatividade e défice de atenção. É notório um recuo no consumo, que diminuiu em perto de um milhão de unidades em seis anos.
Menos fármacos, melhores serviços
No ano passado, o relatório do Observatório Português dos Sistemas de Saúde permitiu saber que Portugal é o país da Europa em que as famílias gastam mais em medicamentos, pagando 40% do preço. Apesar disso, o consumo permanece excessivo: tomar comprimidos para não estar mal ou para ficar bem é, ainda, a tendência dominante valorizada na sociedade atual.
No final do ano passado, as autoridades de saúde lançaram a campanha “Dormir e relaxar sem depender de benzodiazepinas (calmantes)”, com folhetos distribuídos nas farmácias e em centros de saúde e, contudo, registou-se um ligeiro aumento nas vendas no ano passado.
José Aranda da Silva, que foi o primeiro presidente do Infarmed e é atualmente o dirigente da Fundação para a Saúde (http://fsns.pt), conhece bem esta realidade.
“Há vários anos que os dados nacionais (Infarmed) e internacionais (OCDE) registam um elevado consumo de psicofármacos em Portugal, particularmente alarmante no caso das benzodiazepinas (ansiolíticos, sedativos e hipnóticos)”, como refere estudo do Infarmed de 2016.
Este cenário tende a agravar-se “quando os sistemas de saúde não dão a adequada resposta às situações de crise, como aconteceu recentemente em Portugal”. O aumento do consumo de antidepressivos pode também estar relacionado com “um melhor diagnóstico da depressão”, mas é preciso lembrar que “a abordagem terapêutica das patologias não pode ser feita só com a prescrição de medicamentos”.
No entender do especialista, as insuficiências das políticas de saúde mental e as dificuldades de acesso dos doentes a outras abordagens terapêuticas refletem-se no consumo de psicofármacos, com “custos sociais e financeiros elevados que é necessário reverter”.
Ir além do que é costume
A dupla de médicos franceses Philippe Even e Bernard Debré, que ganhou fama pelas obras que questionam o statu quo das doenças e a psiquiatrização da sociedade, acaba de lançar Dépressions, Antidépresseurs: Le Guide (Cherche-Midi). O tema foi capa da revista francesa Le Point, na edição de agosto, e tem merecido críticas, mas também elogios.
Os autores não temem sanções, apesar de terem sido alvo de uma, há seis anos, pelo conselho disciplinar da Ordem dos Médicos de Paris, que os proibiu de exercerem durante um ano, na sequência da publicação de um livro semelhante, alegadamente por delito de opinião. Em 2014, Even e Debré interpuseram recurso e ganharam.
A primeira reação às suas ideias foi emocional mas, “perante os dados que fundamentavam o nosso recurso e tendo pela frente a ameaça de intervenção do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), o julgamento foi anulado”. E com ele a medida de suspensão e de interdição do exercício de medicina.
Desta vez, o escrutínio recaiu sobre os medicamentos para as perturbações mentais, indústria que movimenta globalmente mais de 100 mil milhões de euros, e não poupa críticas aos laboratórios, que reciclam fórmulas com um grau de eficácia discutível, lembrando que a resolução dos problemas não se esgota na toma de comprimidos (ver entrevista ao coautor).
A dar-lhes legitimidade – os metaestudos em que se apoiaram sobre a eficácia dos antidepressivos, que mostram que funcionam nas patologias graves mas nem tanto nas perturbações de adaptação – parecem levar vantagem nos dados epidemiológicos.
O caso português é paradigmático, dada a escassez de respostas além das farmacológicas. Este estado de coisas só pode ser alterado com o retomar do plano de saúde mental que esteve parado durante anos e pela reforma do sistema e do aumento da visibilidade desta área junto da população, à semelhança do que acontece com as questões cardiovasculares, por exemplo.
A mensagem consta num texto conjunto assinalado pelo diretor nacional do Programa para a Saúde Mental, do secretário de Estado-adjunto e da Saúde e do presidente do Conselho Nacional de Saúde Mental, António Leuschner.
O psiquiatra reconhece que as alterações de consumo registadas nos últimos anos podem estar ligadas à “maior capacidade de reconhecer e diagnosticar, nomeadamente nos cuidados primários”.
Depois, não podemos esquecer-nos de que os medicamentos “modificam a atividade psíquica, com efeitos no sistema nervoso” e que “se a maioria deles consegue reduzir ou mesmo reverter sintomas, não atua de forma igualmente eficaz na eliminação das causas, geralmente múltiplas e que ultrapassam a capacidade individual para as resolver”.
Conclusão: as soluções farmacológicas têm um lugar essencial no tratamento de problemas psiquiátricos mas não são as únicas. As práticas de promoção de bem-estar contribuem para prevenir a doença e reduzir encargos ao Estado e aos utentes, cada vez mais conscientes do seu papel ativo na promoção da qualidade de vida.