Por cada dez litros de gasolina ou gasóleo que põe no seu carro, mais de um litro é combustível feito a partir de matérias-primas e resíduos agrícolas. Isto no papel; na prática, há uma dupla contagem da incorporação desses biocombustíveis no produto final, com incentivos fiscais, para fomentar esta forma de energia, neutra em carbono. Ou seja, uma vez que a percentagem prevista na lei é de 11%, 5,5% é o valor real, em média. Ainda assim, por cada dez litros de gasolina, um pouco mais de meio litro é biocombustível.
Além desta dupla contagem, os biocombustíveis avançados, aqueles que são produzidos apenas a partir de matérias-primas de origem residual, beneficiam ainda de isenção do ISP. Um “bónus” que decorre do facto de este tipo de biocombustível ser mais sustentável (são resíduos que não seriam aproveitados de outra forma, não competindo, por exemplo, com a indústria alimentar).
Esta isenção do imposto sobre os produtos petrolíferos, implementada em Portugal e em mais alguns países da União Europeia, tem propósitos ambientais, mas pode ser um incentivo para a fraude. No caso das importações, não há um controlo efetivo sobre a composição do biocombustível avançado, mais valioso, uma vez que a verificação se baseia em documentação e não exige análises ao produto.
“Não acredito no controlo feito por documentos. Exige-se um controlo suplementar para dar direito a isenção do ISP, com comprovativos credíveis, como amostras e indicação do circuito económico”, diz Jaime Braga, secretário-geral da APPB – Associação Portuguesa de Produtores de Biocombustíveis.
O representante do setor sublinha que um dos problemas é o duplo uso do mesmo documento a certificar um determinado lote de biocombustíveis avançados, lembrando que essa situação já foi detetada na Polónia. “O mesmo documento pode ser usado para dois clientes diferentes, que não cruzam os dados. Deveria haver uma base de dados europeia para evitar isso, para dificultar a fraude, mas não há. A vulnerabilidade é evidente.” Ao contrário dos importadores, os produtores nacionais são obrigados a entregar amostras e são fiscalizados de três em três meses.
Importações disparam
Os benefícios fiscais tornam os biocombustíveis avançados especialmente atrativos, o que já é visível no aumento das importações: de 11% em 2021, no bolo total dos biocombustíveis, passou para uma fatia de 74,5% no primeiro trimestre deste ano. Por outro lado, é visível a dificuldade de os produtores nacionais competirem neste mercado. Entre janeiro e março, as importações de biocombustíveis avançados foram de 44 732 metros cúbicos; a produção portuguesa ficou-se pelos 11 553 m3. “Este crescimento abrupto e em quantidades significativas deveria merecer um controlo acrescido, porque está a ser dado um benefício fiscal importante”, pede Jaime Braga. “É uma distorção do sistema que tem de ser verificada numa malha fina pelas autoridades.”
Para Nuno Forner, da associação Zero, há efetivamente dúvidas sobre a proveniência e constituição dos biocombustíveis avançados importados. “Sem um sistema que faça a rastreabilidade, é difícil perceber se são ou não avançados. Já questionámos isso no passado e defendemos, como outras ONG europeias defendem, que deve ser implementado esse sistema para controlar as transações e garantir que não há fraudes, até porque muitos destes biocombustíveis são importados de fora da Europa.” O ambientalista critica ainda o atraso na transposição da Diretiva das Energias Renováveis, introduzida em 2010, que estabeleceu para cada Estado-Membro uma meta de 10% de energias renováveis para o setor dos transportes até 2020. Em abril, o secretário de Estado da Energia, João Galamba, prometeu que a proposta ia entrar em breve em consulta pública.
Óleo de palma: motor da desflorestação
Além de poderem estar a entrar no mercado português biocombustíveis de primeira geração (menos sustentáveis, produzidos com milho, cevada, soja ou palma) com o selo de avançados, a legislação permite certos resíduos que acabam por estimular práticas muito pouco recomendáveis. Por exemplo, o óleo de palma foi já considerado matéria-prima insustentável pela Comissão Europeia, em 2018, que determinou o abandono da sua utilização na produção de biocombustíveis, a acontecer de modo progressivo entre 2023 e 2030.
Mas os resíduos associados à produção de óleo de palma mantêm-se na lista de biocombustíveis avançados, beneficiando das tais isenções fiscais e servindo como mais um incentivo à produção de óleo de palma (que está por trás da desflorestação em vários países, como a Indonésia, pondo em risco a sobrevivência do orangotango, uma espécie em perigo de extinção). Isso acontece no caso de cachos de palma, efluentes de palma e óleo recuperado das terras de branquear. É verdade que são um resíduo, que de outro modo iria para aterro, mas a sua utilização ajuda a rentabilizar uma produção altamente problemática, do ponto de vista ambiental.
Portugal, aliás, incluiu o ano passado na lista de matérias-primas para biocombustíveis avançados, com direito a benefícios fiscais, o POME (palm oil mill effluent, uma água residual decorrente do processo de produção de óleo de palma). Mas o óleo de palma em si foi proibido na produção de biocombustíveis, também o ano passado, com entrada em vigor este ano – o País mostrou-se, até, mais ambicioso do que a Comissão Europeia, que só exige o seu fim ao longo desta década.
Segundo a Comissão Europeia, o óleo de palma é responsável por 5% da destruição de florestas tropicais (sobretudo na Indonésia, na Malásia e na Papua-Nova Guiné) e 2,6% da desflorestação total.