Um brinde que deu em fava – assim se pode resumir o caso dos terrenos do Vale da Rosa, em Setúbal, que o Millennium BCP herdou na sequência da insolvência da holding Pluripar, em 2017. Em vez de uma propriedade com enorme valor potencial – 1,1 milhões de m2 de área e projeto aprovado para 7400 fogos -, o banco tem agora um presente envenenado, na forma de 80 mil toneladas de resíduos perigosos, depositados no local há duas décadas, um problema que vai custar uma pequena fortuna a resolver.
Mas o caso ultrapassa os custos financeiros: a VISÃO soube que as análises entretanto feitas pelas autoridades revelaram a presença de arsénio, uma substância tóxica e cancerígena. A proximidade do rio Sado e de propriedades agrícolas, que podem estar a usar águas contaminadas para rega, e do próprio Sado tornam a situação simultaneamente um problema ambiental e de saúde pública.
Quatro amostras positivas
Até aqui, julgava-se que os resíduos eram escórias de alumínio da antiga Metalimex, empresa que, no início dos anos 90, importou resíduos da Suíça para reciclar, numa fábrica a erguer no local. O projeto não avançou e as escórias foram, então, exportadas para a Alemanha. Mas a investigação das autoridades concluiu que “os resíduos tiveram origem na empresa Eurominas Electro-Metalurgia, SA”, diz à VISÃO, por escrito, a CCDR-LVT (Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo).
Em resposta a outra pergunta, a entidade informa que foi feito um estudo de avaliação da contaminação dos solos e água subterrâneas, que identificou “ligeiras excedências aos valores de referência do arsénio em três amostras”, a que se junta outra amostra das águas com “um valor de arsénio tangencialmente acima dos respetivos valores limite”.

Apesar de a CCDR-LVT admitir “também a influência do fundo geoquímico natural” nestas análises positivas, há poucas dúvidas sobre a principal origem destas contaminações. “De acordo com o relatório, as amostras recolhidas das pilhas de resíduos apresentaram concentrações de arsénio muito semelhantes aos valores obtidos nas amostras recolhidas nos solos, pelo que o depósito pode ser considerado como a fonte da contaminação identificada.”
O arsénio é um problema de saúde grave em algumas regiões do globo, nomeadamente no Bangladesh, onde milhões de pessoas consomem água com concentrações de arsénio acima dos limites considerados seguros. Entre outras coisas, o contacto com esta substância pode causar diversos tipos de cancro, nomeadamente do pulmão, do fígado, dos rins e da pele.
A associação ZERO foi a primeira a alertar para o problemas dos resíduos no Vale da Rosa. Em junho, divulgou os resultados de análises, que revelaram tratar-se de resíduos perigosos, com “uma grande composição em alumínio e outros metais”. Rui Berkemeier, especialista em resíduos da ZERO, diz que a descoberta de arsénio no solo e na água é “muito preocupante”. “É uma substância venenosa, e naquele local a água dos aquíferos pode estar a ser captada em poços, por exemplo.”
Berkemeier, que diz já ter pedido esclarecimentos ao Ministério do Ambiente e da Ação Climática, sem obter resposta, acrescenta que na zona, em locais onde já tinha estado pilhas de resíduos, a vegetação nunca mais voltou a crescer, o que diz ser uma evidência do grau de contaminação do depósito.
Um problema de €10 milhões
O Millennium BCP não tinha conhecimento da existência destes resíduos nos terrenos da Pluripar, mas, enquanto entidade para quem reverteu o património, terá agora a obrigação legal de resolver o problema, segundo o entendimento das autoridades. Em junho, depois de uma fiscalização, a CCDR-LVT calculou estarem ali 20 mil m3 de materiais (36 mil toneladas) e notificou o proprietário para retirar os resíduos no prazo de 120 dias úteis.
O banco pediu então um estudo geoambiental, que revelou um problema ainda maior: em vez de 20 mil m3, o depósito tem perto de 50 mil m3. As novas estimativas apontam para uma massa total de cerca de 80 mil toneladas de resíduos perigosos.
Esta quantidade representa um gasto significativo. Encaminhar uma tonelada de resíduos para um CIRVER (Centro Integrado de Recuperação, Valorização e Eliminação de Resíduos perigosos) custa entre €100 e €120; multiplicando pelas 80 mil toneladas, resulta num gasto de €8 milhões a €9,6 milhões. A este valor há que somar as taxas de gestão de resíduos (TGR), a pagar à Agência Portuguesa do Ambiente, o que, a €11 a tonelada, corresponde a um acréscimo de €880 mil. E isto se o banco conseguir resolver tudo a tempo: em janeiro de 2021, as taxas passam para o dobro – €22 a tonelada.
Feitas as contas, e se tudo se resolver no prazo indicado, o banco terá uma fatura para pagar entre €8,88 milhões e €10,48 milhões. Para se ter uma ideia do rombo que este valor constitui, diga-se que corresponde a 25% do custo de todo o (entretanto extinto) projeto de urbanização do Vale da Rosa e Zona Oriental de Setúbal, estimado em €40 milhões.
Se o banco não paga, quem paga?
À VISÃO, fonte do banco garante que a instituição não vai pagar os custos de um problema que não é da sua responsabilidade. “O banco desconhecia por completo a presença e origem dos resíduos referidos, que tudo indica foram depositados, por terceiros, no local há mais de duas décadas. Desde o momento em que adquiriu a propriedade, o banco nunca exerceu qualquer atividade económica, nem autorizou por terceiros qualquer atividade nesses terrenos. Ademais, ignora o Banco, como sempre ignorou, a identidade dos agentes poluidores.”
A mesma fonte acrescenta que o Millennium BCP tem estado em diálogo com a CCDR-LVT e já requereu “adoção das medidas adequadas para a reparação da situação, assim como para a identificação e a responsabilização dos infratores”. O banco acredita que, se chegar a esse ponto, a Justiça lhe dará razão. “Como tem sido entendimento dos nossos Tribunais, nomeadamente, de Tribunais superiores, o abandono de resíduos, com desconhecimento dos pertinentes proprietários dos imóveis, não acarreta qualquer responsabilidade para tais proprietários.”
O Millennium BCP já deduziu a queixa-crime contra desconhecidos, que corre agora no Departamento de Investigação e Ação Penal de Setúbal.
Se não for encontrado o culpado pelo depósito, poderá vir a ser o Estado a pagar a remoção e o tratamento dos resíduos. O próprio ministro do Ambiente já o confirmou em junho. ” “Obviamente, se for considerado um passivo ambiental, se não se souber quem ali o colocou e não houver forma de o responsabilizar, essa responsabilidade cai sobre o Estado”, disse João Pedro Matos Fernandes.
Na altura, no entanto, ainda não estava confirmado que os resíduos eram perigosos (o tratamento de solos contaminados mas não perigosos é muito mais barato). E julgava-se que seriam “apenas” 30 mil toneladas, o que é pouco mais de um terço do que a avaliação posterior viria a demonstrar.