“Querem ver? Então estacionem aí o mini e saltem para o jipe”, diz-nos Hugo Pita, 44 anos, o engenheiro zootécnico que toma conta de uma herdade perto de Beja, como quem diz que não é num carrinho assim de cidade que se conhece a nova paisagem alentejana. Segue-se o momento em que testemunhamos a profunda transformação territorial, a prometer um Alentejo alagado de pujança, de turismo endinheirado e cheio de futuro por oposição à região imóvel e de desemprego, do passado. O mosaico de várias tonalidades de verde, que inundou o campo até ao horizonte, não engana e até sabemos que há vizinhos, no Alto Alentejo, a invejar as promessas que a água leva no bico. “Quem dera que o Alqueva aqui chegasse!”, desabafa José Amorim Falcão, engenheiro agrícola numa cooperativa de Monforte, a 40 quilómetros de Elvas.
Mas um detalhe aqui e outro ali, no meio de uma conversa entrecortada pelos solavancos do terreno, vai revelando desequilíbrios mais ou menos escondidos. Como quem diz, tudo o que era porção de terra, fosse sequeiro ou mato, passou a ser usado como lugar de cultivo. Nem as zonas de caça associativa escaparam. “O pior para os animais são as máquinas, que entram a matar pelos terrenos dentro”, diz Hugo Pita, caçador nos tempos livres, a reconhecer que essa não é, de todo, uma preocupação das pessoas, que querem produzir muito e o mais depressa possível, a deixar implícito que o tempo que ficou para trás ajuda a explicar isso: “Quando cheguei para trabalhar nesta propriedade, em 2009, não havia nada. Isto era um deserto.”
INTENSIVO A PERDER DE VISTA
Esta é a primeira imagem que passa deste novo Alentejo. Olival até ao horizonte, cruzado com plantação de nogueiras e de amendoeiras, culturas com um retorno entusiasmante desde que a seca persistente se instalou na Califórnia. Ali à volta há ainda umas grandes manchas brancas, a apresentar outro cultivo impensável até há pouco tempo, como o da papoila, usada pela indústria farmacêutica para produzir morfina. E às primeiras interrogações sobre os habitat que tinham adotado a área estepária, a mensagem que nos devolvem é que nem tudo será negativo para os ecossistemas ali em volta.
Veja-se a águia-pesqueira: foi quase dada como extinta, nos anos 90, até que na primavera do verão passado, um casal fez ninho na zona e nasceram duas crias. Ou o morcego-rato, para o qual foi escavado um túnel que lhe servisse de habitat, depois de o antigo ter sido inundado. Havia apenas 50 exemplares. Agora, são perto de dois mil. Estão até a estudar uma forma de alargar o espaço. O crescimento da cultura intensiva aumentou ainda a oferta de alimento para as lebres, que se reproduzem como… coelhos. Enfim, a presença de água, em geral, é favorável à existência de vida. É depois nos pormenores que tudo se transforma.
“Claro que ter ali uma reserva estratégica de água é bom e sempre fomos favoráveis à existência de uma albufeira naquela zona”, começa por dizer Paulo Lucas, da associação ambientalista Zero, para logo acrescentar: “A diferença é que defendíamos uma cota de água mais baixa.” E outro tipo de gestão e utilização da área, insiste o ambientalista: “Com o incremento de adubo e pesticida, associado ao regime intensivo, há um perigo de incorporação de sais no solo, que pode degradar-se rapidamente.” Há ainda a questão do transvase para o Sado, que pode levar à comunicação entre peixes com características genéticas diferentes, e que pode conduzir a uma redução da diversidade. E houve ainda destruição de galerias ribeirinhas, linhas de água que serviam de filtros biológicos, e que a desaparecerem também ajudaram à erosão dos solos.
AS OUTRAS AMEAÇAS
Nada será, por enquanto, irreversível. Mas, para aquela associação ambientalista, fica a ideia de que a EDIA (Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva) nunca avançou com todas as medidas de compensação que estavam no projeto. A opinião é partilhada por Domingos Leitão, da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA). Havia espécies ameaçadas, como a cegonha-preta, o bufo-real ou a águia-de-bonelli, que cruzavam o troço do Guadiana e que deixaram de o fazer. Em geral, as que viviam na estepe cerealífera são as mais prejudicadas. “É uma alteração que se sente em toda a Europa: ao optar-se por sistemas agrícolas intensivos, beneficiam-se as aves que se dão bem em zonas húmidas. As outras ficam sob grande ameaça”, segue o representante da SPEA. Veja-se o caso do sisão. A espécie conheceu um decréscimo, na Europa, de 47% nos últimos dez anos. No Alqueva, a redução foi da ordem dos 62 por cento. Nem as Zonas de Proteção Especial, aparentemente criadas para dar resposta a estas ameaças, estão a responder como deviam.
“Castro Verde é o bom exemplo. Mas nas outras Cuba, Reguengos de Monsaraz e Évora os agricultores não estão a receber apoios para optarem por culturas compatíveis com as espécies que dependiam da estepe”, remata o especialista em aves.
Árvores abatidas, corredores ecológicos descontinuados, perda significativa de habitat críticos, e ainda inundação parcial da Juromenha, local de conservação por excelência, são alguns dos impactos ecológicos apontados pelos ambientalistas e que também estão listados no trabalho de João Rocha, professor de arquitetura da Universidade de Évora, que coordena um estudo sobre as alterações ocorridas naquela paisagem de montado, em parceria com a Universidade de Berkeley, na Califórnia. “O nosso objetivo é compreender o que mudou e o que a arquitetura pode fazer para ajudar à sua sustentabilidade.” Ao levantamento cartográfico, há de seguir-se o estudo dos sistemas de cultivo anteriores potencialmente recuperáveis, por exemplo em herdades de turismo. “Há lagares e outros equipamentos que podem ser usados a favor da biodiversidade.”
PELA VALORIZAÇÃO DO INTERIOR
Helena Freitas, bióloga e coordenadora da Unidade de Missão para a Valorização do Interior, gosta de se dizer ambientalista, mas reconhece que há mais fatores a ter em conta nesta equação. “O Alqueva existe, e é inegável que é um projeto âncora para a região. Trouxe já uma valorização da atividade agrícola. Mas é preciso olhar para a sustentabilidade dos recursos e fazer uma economia circular.” A querer ser um desses negócios para o futuro, encontramos o Canteiro da Luz, perto da nova aldeia com o mesmo nome, um terreno da família de Filipe Lopes, que ele e o irmão recuperaram para o cultivo de plantas aromáticas e medicinais. “Era da minha avó, e há anos que não dava nada a não ser uma aveia de vez em quando”, conta, sobre aqueles cinco hectares de exploração, toda biológica, onde plantaram lúcia-lima, hortelã-pimenta, sálvia, estragão e segurelha. Graças à abundância de água, conseguem fazer quatro a cinco hortas como quem diz, colheitas por ano.
“Vendemos para o mercado farmacêutico, para a cosmética e para infusões, para várias partes do mundo.” José Pedro Salema, o engenheiro agrónomo que há quatro anos tomou as rédeas da EDIA, a empresa responsável pelo projeto da barragem, não pode deixar de ver toda esta alteração com bons olhos. “O nosso objetivo não é construir infraestruturas, mas com elas promover o desenvolvimento.” Para já, congratula-se que este mar de oliveiras tenham transformado por completo o setor do azeite afinal, o País quadruplicou a produção, passando de deficitário a excedentário. De mil quilos produzidos por hectare passámos a ter dez mil. “O regadio põe um zero nas contas”, sublinha, “nos custos mas também nos resultados.” A crer na sua visão otimista, em breve espera-se que as empresas tenham produção contínua para ocupar mão de obra durante o ano todo – e devolver algo mais à região. “A fruta apanha-se em maio e até junho; depois começa a época da amêndoa; no fim do verão, a da azeitona; e por fim as podas…”, elenca.
À procura de mercados diferenciados, adianta que também há quem esteja a apostar tudo nas romãs ou nos alperces. Diz ainda o presidente da EDIA que até a Linaria ricardoi, planta endémica, muito rara e que cresce sobretudo naquela zona, está a florescer “Parece que também não desgosta dos olivais de regadio…” Neste cenário, falta dizer que os 120 mil hectares de utilização, previstos nos estudos iniciais, vão em breve passar a fazer parte da primeira parte do projeto. “Estamos a preparar a expansão. Em sete anos, aquela zona vai ter mais 50 mil novos hectares com acesso a água. É uma vitória deste projeto porque vamos usar a capacidade de extração excedentária, para a qual temos licença mas cuja água não é usada.” Há outros sinais positivos, provocados por toda aquela transformação. Os cursos de agricultura estão cheios, confirmam-nos da Universidade de Évora. A nova paisagem e suas razões interessou também ao grupo de dinamarqueses que encheram o paredão da barragem e terrenos ali em volta, há um par de semanas, para estudar como o sistema funciona e saber de que forma o podem adaptar ao seu território. Miguel Potes, investigador do Instituto de Ciências da Terra, na universidade em Évora, adianta mais boas notícias: do estudo que desenvolveu ao longo de quatro meses, a avaliar o comportamento do grande lago, comprovou que se comporta como um oceano. “Verificámos que está a funcionar como um sumidouro, absorvendo uma grande capacidade de dióxido de carbono, algo não expectável mas desejável”, assinala. Afinal, por regra, os ambientes aquáticos continentais são responsáveis por 70% do dióxido de carbono emitido de forma natural para a atmosfera.
Na nova aldeia da Luz, para já, sente-se mais vento, com noites mais frescas e, claro, mais mosquitos. Mas Sara Correia, a presidente da junta, que traz o filho bebé a tiracolo, não podia estar mais feliz com os efeitos daquele mar de água ali ao lado que veio interromper de vez a aridez da paisagem que sempre conheceu.
O GRANDE LAGO EM NÚMEROS
30 Anos que o plano, desenhado no final da década de 60, demorou a arrancar
5 Concelhos abrangidos pela alteração: Portel, Moura, Reguengos de Monsaraz, Mourão e Alandroal
250 km/2 A área da albufeira
68 Pequenos reservatórios, criados para levar a água mais longe
69 mil Hectares com produção agrícola
120 mil Hectares totais que, estima-se, virão a ser usados para cultivo
1 500 Árvores abatidas para assegurar a qualidade da água no reservatório
5 mil milhões De euros de investimento, público e privado
250 mil Pessoas recebem água da barragem
Artigo publicado na VISÃO 1264 de 25 de maio