No fim dos anos noventa, um dos meus primeiros trabalhos como biólogo foi participar na missão quixotesca de calcorrear montes e vales da região do Algarve, em busca de sinais da presença do lince-ibérico (Lynx pardinus). Desengane-se quem pense que isto significa ver linces a toda a hora, como se estivéssemos na savana africana a estudar leões. De facto, andámos longos meses à procura de dejetos e pegadas destes esquivos predadores, e a deixar máquinas fotográficas estrategicamente colocadas próximas de paus em que deitávamos urina de lince. E o único sinal confirmado da sua presença foi um rasto com vários pegadas, que encontrámos junto a uma barragem na zona de Silves (Algarve).
Mas comecemos mais atrás. O lince-ibérico é um predador que ficou restrito à Península Ibérica pelo seu congénere mais corpulento, o lince euro-asiático, e que se especializou numa única presa: o coelho-bravo. Prefere áreas de bosque e matagal Mediterrânico, ou seja, com árvores como sobreiros e azinheiras, vegetação arbustiva densa e zonas abertas de vegetação herbácea. Este predador também pode consumir outros animais tais como lebres, aves ou ratos, mas tendo evoluído ao longo de milhares de anos como caçador de coelhos, agora é tarde para mudar de dieta. E isto é um problema, uma vez que esta sua presa principal teve um declínio acentuado no sudoeste da Europa. Junte a isto perda de habitat e linces atropelados e abatidos a tiro, e tem a tempestade perfeita para a sua quase extinção.
Por isso, o lince-ibérico é considerado o felídeo mais ameaçado do mundo, estimando-se a sua população atual em menos de 200 adultos, confinados a apenas duas populações reprodutoras do sul de Espanha (Serra Morena e Doñana). Portanto, a explicação proposta para a escassez de sinais de presença encontrados no Algarve na ação acima descrita não foi que os biólogos estariam a precisar de óculos, mas antes que esta espécie já estaria praticamente extinta nessa região.
Avançando cerca de dez anos, temos a inauguração do Centro Nacional de Reprodução em Cativeiro de Lince-Ibérico, por coincidência não muito longe das pegadas encontradas na zona de Silves. Este centro recebeu 16 animais oriundos de Espanha e integra a rede de 4 centros de reprodução desta espécie na Península Ibérica. Até ao final de 2013, foram aqui criados 34 linces (17 em 2012 e 17 em 2013), mas que não foram reintroduzidos em Portugal. Explicando melhor, como o plano de reprodução é ibérico, os linces nascidos em cativeiro só são reintroduzidos em áreas com caraterísticas que incluem boas condições de habitat, abundância de coelho-bravo e boa aceitação da reintrodução por parte das populações locais (até agora, sempre em Espanha).Caso contrário, os linces libertados iriam gastar muito dinheiro a comprar coelhos no supermercado, e também em armaduras que os protegessem dos tiros dos caçadores…
Apesar de não haver populações de linces em estado selvagem a viver em Portugal, há histórias curiosas de animais que estão de passagem pelo nosso país. Por exemplo, um lince chamado “Caribu” proveniente da Serra Morena, foi capturado já adulto e levado para Doñana, para que acasalasse por lá e assim contribuísse para aumentar a diversidade genética dessa população. Depois de algum tempo a viver num cercado em Doñana, foi libertado em plena época de reprodução junto ao território de duas fêmeas, com um colar-emissor colocado no pescoço que revelava todos os seus movimentos aos investigadores. Só que, em vez de se reproduzir, optou por percorrer dezenas e dezenas de quilómetros rumo a noroeste, atravessando depois a fronteira entre Espanha e Portugal em Barrancos (Alentejo) no início de 2010. E como o seu colar-emissor estava prestes a ficar sem bateria, biólogos portugueses e espanhóis uniram esforços para localizar o animal de ambos os lados da fronteira. O “Caribu” foi finalmente recapturado em Espanha, tendo recebido outro colar que permitiu acompanhar a restante odisseia deste lince, até que se fixasse no lado espanhol.
De qualquer forma, estão em curso em Portugal algumas ações de recuperação do habitat e do coelho-bravo e também programas de educação ambiental em zonas potenciais de reintrodução, para que este predador possa regressar ao lado de cá da fronteira. Para além do papel que desempenha no controlo do coelho-bravo e de outros predadores, a sua presença no nosso país também é importante para justificar o uso do termo “ibérico” no seu nome.
Referências bibliográficas:
- Cabral, M. J., Almeida, J., Almeida, P. R., Dellinger, T., Ferrand de Almeida, N., Oliveira, M. E., Palmeirim, J. M., Queiroz, A. I., Rogado, L., Santos-Reis, M. (eds). 2005. Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal. Instituto da Conservação da Natureza, Lisboa.
- Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) 2013. Lince-ibérico. http://linceiberico.icnf.pt/homepage.aspx. Download a 9/12/2013.
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- Vargas, A. et al. 2008. The Iberian lynx Lynx pardinus Conservation Breeding Program. International Zoo Yearbook 42: 190-198.