Aceite um desafio, caro leitor: pense num qualquer ponto central de Lisboa. Já está? Saiba então que há, pelo menos, um edifício parcial ou totalmente deserto e degradado, num raio de 300 metros a partir desse local ou apenas cem metros, se o sítio escolhido ficar numa zona histórica, como a Baixa, o Rossio, o Chiado, a Mouraria ou Alfama.
Escolheu o Marquês de Pombal? Espreite os números 5, 7, 9 e 11 da Rua Joaquim Augusto de Aguiar e o 247 da Avenida da Liberdade, todos a menos de 50 metros da rotunda. Saldanha? Há cinco prédios devolutos, na própria praça. Campo de Ourique? Dezanove, e isto só na rua que dá nome ao bairro. Belém? A menos de 300 metros da residência oficial do Presidente da República, 30 trinta, três-zero imóveis encontramse na mesma situação.
Não há aqui nada de surpreendente. Afinal, Lisboa tem 2 812 prédios na categoria de “parcialmente devoluto” (degradado e com frações desabitadas) e 1 877 na de “totalmente devoluto” (abandonado e sem licença de recuperação), segundo um levantamento da Câmara Municipal de Lisboa (CML), datado de 2009. Estes 4 689 edifícios decadentes equivalem a 8% do total de 60 mil prédios existentes na capital. Ou seja, praticamente um em cada dez imóveis é considerado devoluto.
O mais surpreendente, no entanto, é a naturalidade com que os lisboetas encaram (ou não encaram) o problema. Como se fosse normal uma das mais históricas e visitadas cidades do mundo estar pejada de edifícios arruinados, que podem cair a qualquer momento, como aconteceu, na semana passada, na Avenida Elias Garcia.
“É uma paisagem vergonhosa”, insurge-se João Belo Rodeia, presidente da Ordem dos Arquitetos. “Não conheço nenhuma outra capital europeia com uma dimensão de guerra civil como Lisboa.” Comecemos, então, uma viagem a uma cidade arruinada por gananciosas especulações e burocracias surrealistas mesmo para os parâmetros portugueses.
A ESPECULAÇÃO
Campo Grande, portas 176 a 184. Um belo prédio de quatro andares, erguido no início do século XX, é lenta e impiedosamente esboroado pelo tempo e pelo clima. Abandonado há mais de 15 anos, serve hoje de casa de luxo aos pombos da cidade. Os intrincados varandins de ferro sucumbem à ferrugem, as portadas de madeira de estilo colonial estão podres e o estuque cai, pouco a pouco, revelando o esqueleto do edifício, em tijolo vermelho.
“Uma vez, encontrámos operários a tirar ‘entulhos’ lá de dentro. O prédio está destelhado, de portas e janelas abertas, para se degradar mais depressa e forçar a Câmara Municipal a aceitar a demolição”, acusa Paulo Ferrero, fundador do Movimento Fórum Cidadania Lisboa. O grupo denunciou esta situação à autarquia, recordando que o edifício está incluído num megaempreendimento, com os lotes vizinhos, mas não obteve resposta (tal como a VISÃO, aliás, que pediu repetidamente, durante dois meses, uma entrevista com o vereador do Urbanismo, a que o gabinete de comunicação retorquiu que Manuel Salgado se encontra “com uma agenda bastante preenchida, sendo-lhe impossível comprometer-se com uma data”). Por seu lado, o registo dos últimos 20 anos mostra que o prédio já mudou várias vezes de mãos, entre empresas, sem que tivesse sido feito mais do que novas hipotecas (a última, por 10 milhões de euros).
Esperar que os edifícios fiquem demasiado arruinados e deixem de ter recuperação possível é uma estratégia habitual em casos como este. Há duas boas razões para essa inatividade: restaurar fica caro e o retorno financeiro é mais baixo do que o de um imóvel novo -sobretudo porque os proprietários têm a expectativa de aumentar a construção em altura (mais pisos, mais fogos, maior rendimento). Os prédios de finais do século XIX e princípios do século XX revelam-se particularmente apetitosos, diz Paulo Ferrero, “porque são baixos, suscetíveis de ampliação para cima e para os lados, e com logradouros, que dão para esventrar para estacionamento.” Não admira, conclui, que de vez em quando arda um edifício, “estranhamente “, o que acelera a degradação.
A CRISE
Durante muitos anos, o mercado imobiliário não parou de crescer. Tornou-se comum comprar imóveis devolutos como investimento com retorno garantido, para os vender um, dois, ou três anos mais tarde, com lucros apreciáveis e sem que se tivesse de investir um cêntimo, durante esse período. Nem sequer em obras de conservação, obrigatórias de oito em oito anos, por força de uma lei que quase ninguém cumpre.
Se, pelo meio, fosse possível aprovar um novo projeto com maior volumetria, os ganhos disparavam. “A melhor aplicação de dinheiro era deixar como estava: um prédio podia valorizar dois milhões em dois meses. Não há ações que deem isto”, explica Sidónio Pardal, arquiteto paisagista e professor da Universidade Técnica de Lisboa.
Por causa dessa “ilusão especulativa”, o metro quadrado de solo em Lisboa custa, em média, o dobro do metro quadrado de construção, quando a proporção devia ser ao contrário e “andar pelos 15% ou 20% desse valor”, diz o arquiteto. Hoje, com o mercado a hibernar, os proprietários limitamse a esperar “que surja um árabe cheio de dinheiro numa noite de nevoeiro”, ironiza Sidónio Pardal. Mas os árabes não dão à costa e os edifícios abandonados multiplicam-se.
A recessão veio acrescentar miséria à já abjeta situação dos imóveis devolutos em Lisboa. E há histórias de puro azar no timing da crise, como o caso do número 91 da Avenida da República. “O prédio caiu-me no colo”, justifica Manuel Fezas Vital. “Pertencia ao marido da minha mãe, que até conseguiu fazer aprovar um projeto para construir um edifício novo. Mas o senhor morreu em 2008, deixou aquilo em herança e eu não percebo nada de construção. Decidi vendê-lo, mas já a crise tinha estalado…” Há sete ou oito anos, formar-se-ia uma fila de investidores à porta de Manuel para lhe darem os 2,7 milhões de euros que pede pelo prédio, com projeto incluído; nos tempos que correm, nem propostas insultuosas lhe chegam ao escritório. E o edifício lá continua, imponente na sua absoluta inutilidade, numa das ruas mais caras do País.
A responsabilidade pelo caos urbanístico em Lisboa não é apenas dos proprietários e da crise: a câmara municipal tem a sua porção de culpa. “Muda regulamentos, altera o PDM [Plano Diretor Municipal], um departamento quer uma coisa, outro quer outra, um técnico concorda, outro discorda. O projeto já foi alterado três vezes”, queixa-se José Gonçalves, administrador da Alfradias, empresa detentora de parte de um terreno para um empreendimento conjunto na Alameda das Linhas de Torres, que inclui dois palacetes devolutos (um dos quais foi prémio Valmor, o mais importante galardão de arquitetura na cidade). “A burocracia e a subjetividade são demais. Comprámos as quotas na sociedade há cinco ou seis anos, para construir alguns prédios de habitação e reabilitar o edifício Valmor, mas a novela já vem de trás. O Grupo Pestana, entretanto, cansou-se e abandonou o projeto”, conta.
A autarquia é parte importante do problema. Além das barreiras burocráticas, a câmara é dona de 314 prédios devolutos (outros 60 pertencem ao Estado e 63 à Santa Casa da Misericórdia). Se não consegue dar o exemplo e tratar do seu próprio património, menos legitimidade terá para obrigar os privados a fazê-lo. “A lei dá-lhe muitas armas. A câmara pode forçar a venda, impor a realização de obras, expropriar”, exemplifica Ivan Roque Duarte, do blogue Pensar Lisboa.
“Em vez disso, prefere pagar para fazerem graffiti, como na Avenida Fontes Pereira de Melo [três enormes edifícios abandonados cobertos com pinturas de dois conhecidos artistas brasileiros], com o objetivo de tapar o problema e fazer as pessoas esqueceremse “, acusa o advogado.
O REMÉDIO
A situação pode ser complexa, mas tem solução. Ou melhor, soluções. “A lei devia facilitar a reconstrução ao mesmo tempo que dificultava a construção, como na Suíça e em França”, sugere José Lopes, engenheiro informático do CERN (o famoso laboratório de física nuclear, perto de Genebra) e autor de uma análise da situação dos prédios devolutos, no blogue Tretas.org. “Pelo contrário, hoje em dia, é mais difícil reabilitar, do ponto de vista burocrático, do que construir de raiz.” Outras hipóteses, acrescenta, passam pelo agravamento do IMI para imóveis em ruína e pela expropriação e venda em hasta pública para posterior arrendamento.
Mercado não faltará, comenta Beatriz Rubio, diretora-geral da RE/MAX Portugal. “Em Lisboa, tudo o que se põe a arrendar, arrenda-se logo. Há uma procura imensa.” É verdade que, atualmente, o dinheiro não abunda, mas a reabilitação urbana até é uma alternativa low cost, assegura João Carvalho, da Melom, uma empresa de serviços de recuperação de imóveis. Só falta incentivar os proprietários mesmo que à força. “Proíba-se o aumento do número de fogos: quando um prédio cai, só se deixa erguer um igual.” Matar a especulação através da lei é também a opção defendida pelo arquiteto Sidónio Pardal. E nem sequer é preciso inventar nada, afirma. “Basta aprender com uma lei de 1864, de João Crisóstomo [antigo ministro das Obras Públicas]: se os proprietários não dão uso à propriedade, se não a disponibilizam para a sua função social, o Estado expropria e vende a preço justo, sem dumping; e quem compra só pode arrendar ou vender por um valor ajustado à inflação.”
Mesmo com o guião perfeito, a novela vai demorar a ter um final feliz quanto mais não seja porque não há gente para encher tanta casa vazia. “Construiu-se demais e agora há demasiadas casas para a população que temos”, diz João Belo Rodeia, da Ordem dos Arquitetos. Começando hoje, acrescenta, só daqui a 20 ou 30 anos o problema estaria resolvido. “Mas é preciso começar!”
AS CAUSAS DA COISA
- As principais razões para a profusão de edifícios abandonados na capital;
- Êxodo da cidade para os subúrbios, principalmente nas décadas de 80 e 90;
- Problemas de partilhas, em que os herdeiros não se entendem quanto ao destino do imóvel;
- Exigências complexas e burocracias por parte da câmara, no que diz respeito aos projetos de construção ou reconstrução;
- Rendas controladas, o que não incentivava os senhorios a fazerem obras (a Lei das Rendas atenua este problema);
- Especulação imobiliária;
- Preferência pela construção nova, mais rentável, em vez de reabilitar o património existente (esperando-se pela derrocada do prédio);