Era uma vez uma espécie de peixe chamado esturjão (Acipenser sturio), que costumava tatear o fundo do mar com as suas quatro bárbulas, para detetar e depois aspirar moluscos, crustáceos e pequenos peixes. Este método de predação, que é comum a outras espécies de esturjões que ocorrem na Eurásia e América do Norte, pode não parecer muito ameaçador, mas foi eficaz durante cerca de 100 milhões de anos. Isto significa que este aspirador aquático ambulante do tempo dos dinossauros resistiu durante um longo período a todos os desafios que foram sendo postos à sua sobrevivência. Como são espécies muito antigas e que pouco se modificaram em relação aos seus ancestrais, os esturjões são considerados “fósseis vivos”. Por analogia, o equivalente português de um fóssil vivo seria o Manoel de Oliveira: ultrapassou todas as expectativas de longevidade, mantendo-se fiel ao que era originalmente até na grafia do seu primeiro nome.
Só que mais recentemente surgiram alguns desafios com que o esturjão não estava de todo a contar e para os quais não foi preparado durante a sua evolução. Por exemplo, se soubesse que a sua carne e ovas (das quais se fazem caviar) seriam pitéus tão apreciados, teria provavelmente experimentado ingerir lixo radioativo, para evitar ser comido. Da mesma maneira, também não previu que se erguessem barragens nos rios a impedir-lhe o caminho até aos seus locais de desova, caso contrário, teria tido milhões de anos para aprender a voar por cima dessas barreiras. A extração de sedimentos dos rios, a destruição da vegetação das margens, a poluição e escassez de água também são fatores que contribuíram para a sua regressão, sobretudo no último século. Estima-se, portanto, que a população adulta desta espécie de esturjão (Acipenser sturio) seja hoje de apenas 20 a 750 indivíduos, que se encontram algures no sul de França. Apesar de se terem feito várias ações de repovoamento, é difícil perceber se foram bem-sucedidas até que os indivíduos introduzidos se tornem adultos e se reproduzam. Uma vez que um quilo de ovas para fazer caviar custa entre mil e cinco mil euros, podemos dizer que existe um forte incentivo económico para que o resultado deste esforço acabe servido em pão torrado com colher de madrepérola, acompanhado de champanhe.
O esturjão também existiu em Portugal, mas é considerado extinto no nosso país desde que se pescaram os últimos exemplares no rio Guadiana no início dos anos 1980s. Portanto, se alguém lhe disser que comeu recentemente um estrugido de esturjão pescado em águas nacionais, está provavelmente a intrujá-lo. Depois de uma fase inicial a viver no rio e no estuário, os esturjões vão viver para o mar por volta dos três ou quatro anos, o que certamente dará mais sabor às suas vidas. Quando atingem a maturidade sexual, sobem os rios para se reproduzirem entre maio e junho, podendo percorrer distâncias consideráveis. Por exemplo, no início dos anos 1970s, foi pescado um esturjão juvenil em Freixo de Espada à Cinta, a quase 200 quilómetros do estuário do rio Douro.
Outra incursão em água doce digna de nota em Portugal ocorreu em 1321, e foi mandada publicar pelo Rei D. Dinis. Depois de ter recebido um esturjão capturado em Valada (Ribatejo) que media uns impressionantes 3.75 metros e pesava 275 quilos, o rei ordenou que fosse feito o registo “para que outros mais tarde pudessem ler o documento publicado”. Uma vez que esturjões com 100 anos de idade atingem estas dimensões, assume-se que estas medidas são verdadeiras, e não apenas conversa de pescadores. Só ficou por saber qual foi o destino dado ao peixe. Com tanta comida disponível, o rei podia até ter decidido abrir um pequeno restaurante, que teria esturjão fumado suficiente para um ou dois anos de atividade.
Apesar do desaparecimento do esturjão no nosso país não ter sido motivado pela procura de caviar, talvez seja esta iguaria que o traga de volta. Isto porque está a decorrer o projeto “Caviar Portugal” para produção de esturjões em aquacultura no Algarve e posterior comercialização das suas ovas. Como um dos objetivos deste projeto é repovoar os rios portugueses, talvez possamos ter o esturjão de volta daqui a uns anos. A questão é se conseguirá resistir, se será poupado pelos pescadores, se serão construídas passagens para peixes nos locais dos rios onde existem barreiras intransponíveis. Se tal não acontecer, resta-lhe aprender rapidamente a comer lixo radioativo e a voar por cima das barragens…
Referências bibliográficas:
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