Quem leu o livro Histórias da Terra e do Mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen, guardará certamente na memória o conto Saga. Nele se narra a viagem do jovem Hans que, atraído pelo mar, embarca num veleiro contra a vontade do pai. Das águas gélidas do Norte da Europa parte rumo ao Sul e a cidade onde desembarca, de “respiração rouca”, “colorido intenso e sombrio” Sophia nunca diz o nome, mas adivinha-se pela descrição é o Porto. Hans virá a tornar-se um importante homem de negócios e comprará “uma quinta que do alto de uma pequena colina descia até ao cais de saída da Barra”, escreve Sophia.
A ficção toca a realidade…
A quinta que a autora descreve é a mesma onde durante a infância tantas vezes brincou livremente, ela e o primo, o escritor Ruben A., e a que ambos aludem com frequência nas suas obras literárias. No interior da quinta (reduzida para construir os acessos à Ponte da Arrábida, onde desde 1951 funciona o Jardim Botânico do Porto), existia já então um palacete de estilo quase neoclássico. Até há um ano apesar do acentuado estado de degradação funcionou aí o departamento de botânica da Universidade do Porto (UP). É esse palacete, restaurado, que na passada terça-feira, dia 1, depois de seis meses de obras, abriu ao público com a nobreza de outros tempos. Até julho, acolhe uma grande exposição sobre Darwin, que já esteve na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, com algumas novidades (ver caixa).
Mas voltemos a Saga, porque, sem o conto, talvez a remodelação da casa não tivesse acontecido. A história é inspirada na saga do bisavó de Sophia, Jann Hinrich Andresen (que veio para Portugal em meados do século XIX, deixando para trás a ilha de Förh, no arquipélago das Frísias) e do seu filho, João Henrique Andresen Júnior. O biólogo Nuno Ferrand leu o conto, identificou a quinta e em particular a casa, como aquela onde estudou. Uma passagem ficou-lhe gravada na memória: “Tudo na casa era desmedidamente grande desde os quartos de dormir onde as crianças andavam de bicicleta até ao enorme átrio para o qual davam todas as salas e no qual, como Hans dizia, se poderia armar o esqueleto da baleia que há anos repousava, empacotado em numerosos volumes, nas caves da Faculdade de Ciências por não haver lugar onde coubesse armado”. A passagem é importante. Quando perguntamos de quem partiu a ideia de restaurar a Casa e transformá-la em Galeria da Biodiversidade, Nuno Ferrand surpreende: “É uma ideia de Sophia, não é minha. E lembra a história de Saga.
O desejo de Sophia passou por ele. Há dois anos, pediu ao irmão, o fotógrafo João Ferrand, que fizesse uma imagem virtual do imenso átrio da casa com o esqueleto da baleia. “Mostrei-a ao reitor e ele ficou maravilhado.” Sophia estava certa. A dimensão do pátio permitiria montar ali o esqueleto da baleia. Entretanto, porém, outro espaço se encontrou para o fóssil (está no Museu de História Natural da UP). Mas, a partir do mote de Sophia, Ferrand lembrou-se de transformar a casa (e as estufas do jardim, algumas já recuperadas) numa Galeria da Biodiversidade: “Mostrar a diversidade biológica, relacioná-la com a História (foi Portugal que mostrou ao mundo essa diversidade, trazendo durante os Descobrimentos diferentes espécies, como rinocerontes ou elefantes), com a Literatura”, explica. Sem as dimensões dos Museus de História Natural de Londres e Paris será, prossegue, “um projeto único em termos culturais em que toda a Academia se irá rever”, com uma exposição permanente e módulos temporários. Para já, a intervenção projetada pelo arquiteto Nuno Valentim teve em vista abrir a casa para acolher a exposição de Darwin, no ano em que a UP celebra cem anos de existência. Ainda este ano deverá começar uma segunda intervenção com vista a completar a Galeria da Biodiversidade. Até agora, “90 por cento da obra foi conservação e restauro”, elucida o arquiteto. Nos restantes dez por cento cabe uma escadaria moderna em caracol e um elevador panorâmico de onde se vê a estátua que inspirou Sophia a escrever O Menino de Bronze. O elevador desce até à cave. Na parte traseira, virada para o roseiral, surgiu “uma casa de chá e sushi bar”, como a define Daniela Coutinho, do restaurante japonês Góshó que explora o espaço. Há um sushi man em permanência, aposta forte em pastelaria e salgados, que se podem saborear no espaço interior ou na esplanada.
Até ao momento, a principal alteração diz respeito à cor: “Mergulhámos a casa num balde de tinta”, ilustra Constantim. No interior, o branco domina, mas, no pátio, quem entra do lado esquerdo, pintou-se uma pequena parte da parede e dos altos relevos, a salmão e dourado respetivamente, para mostrar como era no tempo em que os avós de Sophia e Ruben A. a habitaram: “É uma janela temporal sobre a memória do edifício, muito ao jeito do Fernando Távora para mostrar o que cá estava”, explica o arquiteto. A nível de cor, é na fachada que a mudança é mais notória. Retomou uma tonalidade mais próxima da original, que Teodora Andresen, prima direita de Sophia, descreve como “cor das borras do vinho tinto”. Teodora foi a última de 13 primos a nascer na casa, onde viveu até aos 3 anos e brincou até aos 14: “Passava os dias a correr, a subir às árvores, a cheirar as fl ores apanhava rosas farfalhudas como hoje já não há, cheias de bichinhos lá dentro”, recorda. A infância solitária (era a mais nova dos primos) foi compensada pela “vantagem de ouvir as conversas das pessoas grandes sem interromper”. A memória que guarda, mesmo do tempo em que ainda não era viva, é a de “uma casa vivida, com muita alegria”. E a história que quer partilhar é a de um “amor fantástico, de um casal muito unido (Joana e João Henrique Andresen Júnior) que quis criar os filhos num espaço extremamente inspirador, familiar e nada convencional”. A casa, explica, foi comprada pelo avô a um brasileiro em 1895, quando seria apenas um “quadrado, um barracão grande”. “Os meus avós foram embelezando a casa, fizeram a grinalda a toda a volta, a escadaria de acesso em granito.” E deram grande importância aos jardins: “Foram eles que desenharam as plantas, encomendaram flores de todos os lados do mundo.” Era por um passeio nesses jardins, com paredes de camélias conta a neta que o casal John e Jane (era assim que se tratavam), começavam invariavelmente os dias “para ver o que as flores tinham crescido”.
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DARWIN E PORTUGAL
A exposição que inaugura a Casa, denominada A Evolução de Darwin, regressa a Portugal, depois de ter passado por Madrid e Granada.
Além do que já se pôde observar em Lisboa, como a reconstituição da viagem a bordo do Beagle, os visitantes terão a oportunidade de observar as adaptações das espécies em animais vivos. Nas estufas Koop do Jardim Botânico estarão, a partir de finais de fevereiro, animais do Zoo de Santo Inácio, como iguanas, tartarugas, araras, tatus. Novidade, também, será o módulo Darwin em Portugal, onde se poderá ver, dentro de uma vitrina desenhada por Siza Vieira, a correspondência que Darwin manteve com o naturalista inglês, que vivia em Portugal, William Tait. A história dos coelhos de Porto Santo, que Darwin pediu que lhe fossem enviados, por se tratar de uma população fundada por um único casal durante os Descobrimentos, é contada ao pormenor. Há, ainda, espaço para mostrar a primeira edição portuguesa de A Origem das Espécies, cuja tradução foi encomendada pela Livraria Lello a Dá Mesquita e investigações recentes do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos.
CASA ANDRESEN NO JARDIM BOTÂNICO DO PORTO
R. do Campo Alegre, 1191
T. 22 040 8130
1 Fev-17 Jul
Ter-Sex 10h-18h, Sáb-Dom 10h-19h
€4