Imagens dos noticiários mostraram javalis deambulando pelas cidades do Sul da Europa, veados caminhando e dormindo nas ruas do Japão, e uma família de gansos-egípcios a atravessar a pista vazia do aeroporto de Tel Aviv. A água tornou-se visivelmente mais limpa nos canais de Veneza. Cabras selvagens alimentavam-se em sebes dos jardins ingleses e bandos de perus selvagens sacudiam as penas relaxadamente no campus da Universidade de Harvard como se ainda pudessem habitar as florestas que um dia por lá existiram.
Mas estes são apenas exemplos urbanos do que acontece em qualquer lugar quando o Homem recua e se abre espaço para o mundo natural. Cenários de uma pandemia que fechou a Humanidade em 2020.
Mas há outra perspetiva, a do meio natural sem a atividade humana.
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No confinamento tive o privilégio de não ter de ficar “fechada”. Na primavera, há muito trabalho de campo a fazer enquanto tenho de estudar as espécies de libélulas de montanha. As estradas, os caminhos e desvios a corta-mato são-me familiares, mas desta vez não passavam carros, ninguém se banhava nos ribeiros ou praias fluviais, nem se ouviam vozes.
Abril e maio trouxeram uma profusão de flora, este ano não controlada por herbicidas. Voltei a ver espécies que há muito escasseavam. A vegetação cresceu nas bermas, a reclamar o alcatrão, e as aves, menos receosas, ouviam-se e viam-se em abundância e diversidade. Os abelharucos, chegados de África, pousavam em fila nos cabos entre postes, em breve edificando os seus ninhos escavados nas terras arenosas das vertentes.Este ano voltaram a fazê-los junto às estradas, porque ninguém passava.
As lebres e os coelhos, admiravelmente, não se escondiam ou fugiam em saltos cruzados, dos caçadores e seus cães porque estes, nesta primavera, não apareceram em grande número como habitual. Ao amanhecer, a vida é intensa para as espécies, nos seus sons, interações e comportamentos e foi extraordinário ser a única espectadora da alvorada.
A mudança cria oportunidades
Embora não muito distante da urbe, parecia que o mundo era só meu, facto fantasiado que não me assustou no momento porque, para qualquer amante da Natureza, a riqueza das experiências resultantes da plenitude de uma observação silenciosa e contemplativa torna-se lição imperdível.
No início do verão, ainda em distanciamento social, voltei aos rios. Por coincidência, ou não, as libélulas paravam-me nas mãos o tempo suficiente para conseguir uma foto de algo que antes nunca me tinha acontecido. Uma libélula-serpentina começava a abandonar a sua exúvia de larva, fixada na casca de um amieiro, para depois se tornar um adulto voador. É um processo lento, muito interessante de seguir… por isso, fiquei à espera que se livrasse da sua forma imatura e fosse esticando as nervuras das longas asas para prosseguir a vida noutro formato.
Aprender com a Natureza e emulá-la é uma tarefa árdua e humilde. Quando o que aprendemos melhora o modo como vivemos, ficamos gratos, e isso leva-nos à última etapa do um caminho que resulta num agradecimento prático pelo que aprendemos, cuidando e preservando.
Como muitas vezes observo, para perceber as soluções que a Natureza encontrou para resolver problemas, verifico que depois de uma alteração ou perturbação, inicia-se o processo de reconstrução por meio de interações robustas que são aproveitadas para manter e recuperar funções em crise que são exclusivas de um determinado local.
O grau de complexidade e diversidade dentro dos ecossistemas varia com base nas pressões reguladoras que se encontram por lá. É notório perceber que o sistema ecológico não precisa de voltar ao seu estado original para ser resiliente, o que a Natureza nos ensinou é que a mudança e a perturbação podem ser mecanismos para novas possibilidades.
O que o mundo natural aprendeu a fazer foi criar condições que conduzem à vida. E é isso que também temos de aprender. Felizmente, não precisamos de inventar nada. Precisamos, sim, de sair e perguntar aos génios locais, espécies e ecossistemas, que nos cercam, como a Natureza resolve uma crise?
Um equilíbrio saudável
Na nossa era talvez nunca tivéssemos vivido um momento semelhante ao presente, em que uma pausa coletiva forçou comunidades a formas de afastamento social. A incerteza das circunstâncias converteu-se numa oportunidade para uma maior relação de proximidade com a Natureza.
Os cinco sentidos, a atividade cerebral e o sistema nervoso fundem-se na captação da informação sobre o mundo que nos rodeia, oferecendo-nos formas de ver e de interagir com o ambiente, permitindo aprender a usar os princípios regenerativos e resilientes da vida.
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O olhar de perto a Natureza e as suas interações recorda-nos como nos encontramos interligados e como é da nossa responsabilidade conservar este planeta, que não é apenas nosso. Chegará o momento em que devemos considerar seriamente a lição de que é possível sustentar o nosso mundo em harmonia com o meio ambiente e seus recursos, observando e copiando o que o mundo natural nos ensina há milhões de anos.
Num mundo que nunca dorme, onde as informações fluem permanentemente, os limites confundem-se e o silêncio deixa de existir. O nosso instinto encaminha-nos de volta à Natureza, com suas lições subtis, porém claras, sobre como viver e trabalhar melhor.
Ao contrário da aprendizagem como cientista, na qual o objetivo está em aprender sobre algo, a prática da emulação do mundo natural trata de aprender com algo.
Consociarmo-nos com o mundo natural também apresenta uma oportunidade única de emergir da pandemia com um relacionamento melhorado com a Natureza. O reconhecimento do valor da mesma deve ser incentivado e, se administrado de maneira adequada, pode encorajar ações ao nível da comunidade para a sua conservação tanto em áreas urbanas como naturais.
Experimentar maior contacto com o ambiente fora das cidades continuará a ser importante também para fomentar uma melhor saúde, mas só será possível se conseguirmos encontrar um equilíbrio saudável entre o uso dos nossos recursos e a proteção das espécies e dos habitats.
A Natureza ensina a subtileza e a riqueza de estratégias resilientes. Embora estas mudem e evoluam como nós, também revelam o que há de melhor na complexa natureza humana.
(Luísa Ferreira Nunes é doutorada em Ecologia e docente na Escola Superior Agrária de Castelo Branco – IPCB, além de membro do Centro de Ecologia Aplicada (CEABN) e ilustradora. Participou em várias expedições científicas nacionais e internacionais, das quais resultaram 12 publicações e várias exposições. Esta é a sua página no Instagram.)