Recusa-se a acabar com megaprocessos ou a alargar prazos de prescrição, mas acredita que a reforma da Justiça vai dar um sistema mais eficaz aos portugueses.
Há mais de um ano à frente do órgão máximo do Ministério Público, admite a dureza do cargo e insiste na necessidade de mais meios para combater o crime. A polémica com o segredo de Justiça foi uma das mais difíceis de gerir, apesar de estarem já a ser aplicadas várias das medidas propostas no relatório divulgado no início do ano.
A estratégia dos megaprocessos é cada vez mais questionada. Não resulta, são ingovernáveis?
Não sei se foi uma estratégia. Mas o problema não é dizer sim ou não a megaprocessos.
Seremos, com certeza, confrontados com casos que os exigem para serem investigados com êxito. Mas nunca podemos perder de vista que estamos a investigar para recolher prova para julgamento. Isso pode ter falhado, por vezes.
Mas é, de facto, uma opção, criar megaprocessos?
É uma opção que tem de ser vista consoante os casos. Decidir que nunca mais vou criar megaprocessos pode ser um enorme erro.
Recuso-me a dizer que é ou não correto abrir megaprocessos.
O crime está mais complexo. Como é que o sistema pode responder?
Preparando-se para a complexidade e não a negando. É importante que os magistrados consigam uma abordagem da especialidade em que trabalham, mas também que façam a ligação com processos de outras jurisdições.
Por exemplo?
No caso de uma criança sexualmente abusada pelo pai, haverá um processo criminal, mas, ao mesmo tempo, outro no Tribunal de Família e Menores. É adequado e conveniente que os magistrados com processos em áreas distintas, mas sobre o mesmo caso, saibam falar entre si. O grande desafio é termos magistrados suficientemente especializados, mas com conhecimento global das questões.
O que sugere é uma abordagem muito diferente da atual.
Temos de trabalhar no sentido de uma abordagem integrada. Articular sem perder a especificidade do processo. É necessário ir muito para além das exigências da especialização.
Está a pensar na criminalidade económico-financeira, fraudes ao fisco e branqueamento de capitais?
Por vezes, esses casos precisam de ser resolvidos no tribunal administrativo, mas também no Tribunal de Contas. Há questões pertinentes de uns processos para os outros. É preciso saber um bocadinho mais do que apenas da área de cada um para conseguir uma articulação rápida e eficaz.
A propósito da prescrição do caso BCP [Jardim Gonçalves tinha sido condenado a pagar um milhão de euros e ficaria inibido de exercer funções na banca durante nove anos], pode defender-se que a complexidade de alguns processos, como os financeiros, justificaria mais tempo?
Não conheço o caso concreto, mas, francamente, acho que mais importante do que alargar prazos de prescrição é prepararmo-nos para uma decisão célere, sem deixar de ser profunda e especializada. Uma melhoria do sistema.
Como se melhora o sistema?
Precisamos de magistrados especializados e de perícias. Aplicar a lei processual penal sem perder de vista a finalidade do processo.
Os recursos sucessivos põem em perigo essa finalidade?
Recorre-se, depois impugna-se, depois recorre-se… A nossa lei processual tem um sem-número de possibilidades de tramitação que podem ser mal utilizadas e levar a prescrições onde não devia haver. Quem aplica a lei, julga, também deve estar preparado para evitar que a tramitação processual ponha em causa o objetivo final.
Fala-se disso há anos. O que pode ser feito?
A especialização é essencial. Ter peritos a apoiar os tribunais.
Isso leva-nos à falta de meios, uma queixa muito antiga.
Apesar destas mudanças de paradigma, temos conseguido dar resposta, na pequena e média criminalidade. Cerca de 60% dos inquéritos, em que se descobrem os autores, são resolvidos através de medidas de resolução alternativa de conflitos. Atualmente, há poucos inquéritos com datas anteriores a 2010 ou 2011. A quantidade de processos que prescrevem nos inquéritos é ínfima. Damos resposta em seis meses, em média.
Mas a imagem mais associada à Justiça portuguesa é a de lentidão.
Onde é que os números são menos bons? Nos casos de corrupção e branqueamento de capitais, na criminalidade mais complexa.
É isso que leva as pessoas a pensarem que as coisas funcionam mal.
Que medidas poderão ser tomadas para melhorar procedimentos?
Mais formação, dirigida às questões concretas que os magistrados enfrentam no dia a dia. Assistimos a uma mudança total do modus operandi relativamente ao crime, mesmo na criminalidade mais comum. Aquilo que antes eram crimes cometidos através da palavra, do escrito ou da força, atualmente passam por meios informáticos. Isso exige capacidade de investigação muito distinta.
É uma mudança.
Tudo se resume a mais formação?
Para fazer o que estou a dizer é preciso saber muito e saber investigar. Quando falamos de especialização não é só saber muito, por exemplo, de branqueamento de capitais, mas também saber como investigá-los.
Aí temos muito que caminhar.
Uma das sugestões para combater a morosidade são as sentenças negociadas.
Mas o Supremo Tribunal de Justiça está a recusá-las.
O nosso sistema penal não prevê sentenças negociadas.
Mas também não as nega.
Não prevê as sentenças nem os respetivos procedimentos. Não podemos ser muito criativos nessa área.
Duas sentenças voltaram para trás…
Foram mais do que duas. Mas voltaram para trás precisamente porque não estavam previstas.
Nuns casos, o próprio juiz fazia parte do acordo e o juiz não pode ser pré-condicionado.
Mas alguns juízes consideraram que poderiam aplicar esse tipo de medidas.
O Supremo Tribunal de Justiça foi no mesmo sentido do que lhe estou a dizer. Fiz uma diretiva porque havia desigualdade perante a lei. Só nalguns tribunais estava a ser admitida a negociação.
É a importação de um modelo que não se aplica ao sistema português?
A justiça negociada tem sido assimilada a partir do direito anglo-saxónico. A finalidade do nosso modelo é a reinserção social e a do anglo-saxónico é mais de castigo. Introduzir formas negociadas de justiça implica um amplo estudo e debate sobre o que queremos dos nossos tribunais. E esse debate não é apenas dos tribunais. Terá de passar pela Assembleia da República.
Dizer que se vai fazer estudos é, muitas vezes, uma maneira de adiar as medidas.
Não. Não digo: «nem pensar». O mundo é cada vez mais feito de misturas e o direito anglo-saxónico pode entrecruzar-se com o nosso. Mas, para isso, precisamos de uma alteração legislativa. E a celeridade não é a única coisa que importa. Temos de ter em conta a censura e a prevenção. É precisa uma discussão filosófico-penal sobre o modelo que queremos.
Com o novo mapa judiciário, os procuradores-gerais distritais desaparecem e o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) estará em todas as capitais de distrito. Como será feita esta reorganização?
Os novos DIAP são reorganizações. Não foram criados em todas as comarcas. Em nove não existem. Em outras três são essenciais, porque têm movimento processual que o justifica. Não compreendemos porque não foram criados. Mas já há abertura da ministra da Justiça para virem a ser criados.
Onde deviam ter sido criados e não foram?
Porto Este, Santarém e Viana do Castelo. Todos eles com elevado número de inquéritos.
Os DIAP são novas formas de organização do Ministério Público e da distribuição de processos. Em muitos casos, nem implicam mais magistrados nem mais estruturas. Vão permitir trabalhar melhor, porque são a possibilidade de, naquela área, haver estratégia global para fenómenos criminais. Ficam sob uma mesma direção, mais eficaz. A reforma, no seu conjunto, é a defender. Mas é essencial ver como se vai concretizar.
Quais são os obstáculos à concretização da reforma?
Precisamos de plataforma informática e de recursos humanos.
E consegue-se mais eficácia com os mesmos meios?
O problema da transição é a migração dos processos para as novas comarcas, de acordo com a nova distribuição. Implica grande trabalho na plataforma informática. Outro problema é a falta de funcionários. Já preocupa agora.
Com a nova reforma farão ainda mais falta?
Sim. No caso dos magistrados, o quadro apresentado pelo Ministério não integra o número total dos magistrados. Foi-me dito que os que estão para além do quadro passarão a fazer parte de uma bolsa a gerir pelos conselhos.
Quer dizer que há magistrados em excesso?
Segundo o Ministério da Justiça, sim. Na minha perspetiva, não. O número de magistrados existente é o mínimo suficiente.
Então, o que falta para uma Justiça mais eficaz?
Para pôr esta reforma em prática, o grande problema é a falta de funcionários. É muito grave, sobretudo no Ministério Público.
Quantos seriam necessários?
Entre os que já faltam e perspetivando as necessidades do novo Mapa Judiciário, faltam cerca de 500 funcionários.
Haverá contratação de mais funcionários?
Não sei. Terá de perguntar ao Ministério da Justiça.
Acusa-se a Procuradoria de funcionar com demasiado voluntarismo, de forma casuística, com pouca organização.
O que digo é precisamente a recusa de uma atuação casuística. É preciso saber para delimitar.
O importante é ter capacidade para investigar. E isso é tudo menos casuísmo.
Estão previstas alterações na estrutura da PGR, que é igual há décadas?
A nova lei do sistema judiciário vai implicar a alteração do estatuto do Ministério Público. Vamos ter de repensar: que órgãos para o Ministério Público e qual a relação hierárquica. Os procuradores coordenadores das comarcas serão um novo órgão, que não está previsto no atual estatuto. Vai-nos obrigar a uma reestruturação. O desafio do estatuto será consagrar algumas coordenações nacionais que definam princípios orientadores. Importa estabelecer uma relação fluida, constante e periódica entre o Departamento de Investigação e Ação Penal (DCIAP) e DIAPs, designadamente para a criminalidade financeira e mais complexa.
Isso parece uma pequena revolução…
Não, não é, porque se trata de uma evolução na continuidade. São coisas muito debatidas internamente. Mas espero que seja uma revolução adequada para permitir melhores resultados. A articulação entre DIAP e DCIAP vai ser mais eficaz, porque existirão mais DIAP. O DCIAP já tem funções de coordenação.
Mas não tem funcionado. São pequenos passos para funcionar melhor.
Para que, finalmente, os portugueses possam ter melhor relação com a Justiça?
Obviamente, gostaria que os portugueses tivessem melhor relação com a Justiça. Mas as sondagens de opinião só mostram uma parte. Os portugueses têm má perceção da justiça, mas nos que tiveram contacto com ela diminuiu a imagem negativa. Muita da perceção joga-se no atendimento ao público, designadamente nos tribunais do trabalho e família. É uma área que quero melhorar.
Porque é no contacto com o cidadão comum que nos vamos afirmando. Não é só nos resultados dos processos mediáticos.
Depois de muito se debater o segredo de Justiça em Portugal, a PGR apresentou, em janeiro, um relatório que sugere a penalização dos jornalistas. É isso que vai resolver o problema?
A sugestão de punição dos jornalistas gerou polémica e abafou as recomendações do relatório. Gostava que todos o lessem antes de falar nele.
A auditoria conclui que são apenas 1% dos casos.
Sim, mas é um problema que temos de enfrentar.
Não por ser o maior problema da nossa Justiça, que não é, mas porque põe em causa a investigação criminal de processos mais complexos e porque cria desprestígio.
Essa auditoria é muito aprofundada. Dá-nos dados sobre a dimensão, mas também sobre um conjunto de procedimentos a mudar. A maior parte das conclusões são viradas para dentro, para a prática do Ministério Público.
Como serão alteradas essas práticas consideradas erradas?
Está a constituir-se um grupo de trabalho para uniformizar orientações e processos.
Por exemplo: o modo como é investigada a violação do segredo de Justiça, o modo como são sinalizados os próprios processos. Atualmente, têm uma capa igual à dos outros e quem pega neles nem sabe que está em segredo de Justiça. Quem for chamado, no âmbito da investigação, deve ser avisado de que se trata de um caso em segredo de Justiça e o circuito diminuirá o número de pessoas em contacto com o processo, por forma a serem identificadas mais facilmente. Em relação à interpretação da própria lei, também estamos a fazer um levantamento.
Poderemos fixar doutrina a seguir. Ou, nos casos em que haja dúvidas, enviar para Conselho Consultivo.
Quer dizer que a ideia de punir os jornalistas, que estão no fim da linha da quebra do sigilo, ficou afastada?
Não está dito em lado nenhum que haverá um molde distinto de investigação relativamente aos jornalistas.
Propõem-se punições para os jornalistas.
Não, não. O auditor propõe à ponderação a utilização de meios de obtenção de prova que não são permitidos atualmente. Pode não se concordar eu tenho sérias dúvidas.
Mas esses meios de obtenção de prova aplicam-se a qualquer suspeito, incluindo os magistrados. Não defende meios de prova diferentes para os jornalistas.
Fala de penalizar os jornalistas «mesmo que não se saiba qual a primeira fonte de informação» e de buscas nas redações para obter prova.
Foi menos feliz quando falou nas redações.
Seria impensável.
Mas especifica-as. Aliás, o próprio relatório concluiu que foram constituídos arguidos dois procuradores e seis jornalistas.
O que está ali é a ponderação de haver um tipo de obtenção de prova na investigação daquele tipo de crime. A punição dos meios de comunicação é usada em Inglaterra. Mas é um ponto em relação ao qual não me identifico nem tenho a intenção de qualquer procedimento pró-ativo. A auditoria foi feita para aprofundar o conhecimento do que se passava e melhorar procedimentos do Ministério Público.
Mas foi um momento difícil enquanto procuradora.
Essa formulação foi pouco feliz. Mas quero manifestar publicamente o meu apreço pelo trabalho.
É por isso que vai aplicar muitas das medidas sugeridas?
Sim, quase todas. Logo na semana a seguir, os quatro procuradores distritais elaboraram um despacho a recomendar aos magistrados a sinalização clara dos processos em segredo de Justiça e a comunicação a intervenientes, por exemplo. Em cerca de 30 conclusões, 28 são relativas ao Ministério Público.
É a primeira mulher procuradora-geral da República. Como tem sido essa estreia?
Não sei que lhe diga… Nunca fui homem procurador [risos]. A Justiça tem uma taxa de feminização de 60 por cento. Se quer saber se sinto alguma dificuldade decorrente do facto de ser mulher, não. Sinto dificuldade é decorrente da natureza do cargo.
Sempre na mira.
Sim, essa dificuldade é um facto. Mas não é por ser mulher, é pelo cargo.
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