‘Morreu.» «Não morreu.» «Está em morte cerebral.» «Só em coma.» «Num coma irreversível.» «Abriu os olhos e falou.» Na última semana, a cada minuto, surgia uma nova versão sobre o estado de saúde de Yasser Arafat para desespero dos palestinianos, que gostariam de chorar, condignamente, o desaparecimento de um homem que, mais do que um líder político, era o rosto e o símbolo da luta pela independência do seu povo.
Para muitos, o emocionante momento do adeus não precisou do anúncio formal da morte do líder, numa cama de um hospital militar de outro país. Chegou no domingo, 7, quando as televisões transmitiram as imagens de uma cadeira vazia, presidindo a uma reunião governamental de emergência. Pela primeira vez desde a fundação da Autoridade Palestiniana (AP), em 1994, Yasser Arafat não comandava os destinos do seu povo. E, nas ruas de Ramallah, apesar de todas as manobras de contra-informação sobre o estado de saúde do líder histórico, já não havia lugar para dúvidas. «O seu dia chegou, Alá seja louvado», gritava um grupo de jovens à porta de uma mesquita, abafando os belos e dolorosos cânticos do muezin, que convocavam os fiéis para as últimas orações do dia.
Milhões em parte incerta
Reza a tradição que, durante o Ramadão, o mês santo dos muçulmanos, se deve permanecer em jejum do nascer ao pôr do Sol, orar cinco vezes por dia e praticar apenas o bem. Mas com a partida de Yasser Arafat para Paris, a 29 de Outubro, a fim de receber assistência médica, devido a uma preocupante (e ainda inexplicada) queda do número de plaquetas no sangue, a mensagem de fraternidade e amor do Corão depressa foi esquecida. Em seu lugar, instalou-se uma verdadeira guerra pela sucessão. e pelo controlo dos muitos milhões de dólares que o líder palestiniano terá colocado em contas no estrangeiro, entre 1995 e 2000, segundo uma investigação do jornal Le Monde, a partir de relatórios do Fundo Monetário Internacional.
O controlo desse dinheiro terá sido o motivo da discórdia entre os dirigentes palestinianos e a primeira-dama Suha Arafat, que se recusava a partilhar informações médicas e os acusava publicamente de quererem viajar para a capital francesa a fim de «enterrar vivo» o seu marido. «Tudo isto faz parte de uma grande conspiração, não se deixem enganar! Arafat está bem e vai voltar a governar a Palestina!», gritava, no domingo, em directo, para todo o mundo árabe, através da televisão Al Jazira.
Suha, a secretária com quem o líder palestiniano se casou em 1991 (têm uma filha de 9 anos), fixou residência permanente em Paris, em 2000, e é criticada por levar uma vida de luxo e opulência. Nunca foi uma figura querida dos seus compatriotas, que consideram uma afronta ter uma primeira-dama que viaja de jacto particular entre Amã e Genebra, quando 55% a 75% do seu povo vive abaixo do limiar de pobreza.
Segundo documentos oficiais da AP, a mulher de Arafat recebia «apenas» uma pensão mensal de quase 100 mil euros, mas as autoridades francesas investigam movimentações nas contas pessoais e instauraram um processo de averiguações para que explique a origem de um depósito de 9 milhões de euros.
«Não é de estranhar que, desde a primeira hora, as duas pessoas que estão à cabeceira do leito de morte de Arafat sejam Suha e Mohammed Rachid (conselheiro financeiro do Presidente)?», perguntava, na segunda-feira, um alto dirigente da Organização de Libertação da Palestina (OLP), que solicitou o anonimato. Na terça-feira, contudo, a delegação governamental que chegou à capital francesa foi recebida «carinhosamente » por Suha e o primeiro-ministro Ahmed Qurei teve permissão para ver o seu Presidente.
Nos meandros políticos de Ramallah, diz-se que tal sucedeu não só devido à intervenção do Governo francês (que entendeu fundamentadas as alegações palestinianas de que a saúde de Arafat era uma questão de Estado e que o controlo da informação médica não poderia ficar apenas nas mãos de Suha), mas porque houve acordo sobre a herança da mulher do Presidente e as verbas a transferir (ou a devolver.) à AP. Certo é que Suha passou de «uma mulher má e histérica que quer destruir a liderança palestiniana», como era classificada, na segunda-feira, pelo conselheiro do Presidente, Tayyeb Abdel Rahim, a «esposa emocionalmente perturbada », nas palavras diplomáticas do ministro Saeb Erekat.
Envenenado?
No mercado da capital da Cisjordânia, raras são as conversas sobre a qualidade do tomate ou a doçura das tâmaras. Bastam dez minutos junto de uma banca de verduras para ouvir as mais delirantes histórias de intriga, suspense e traição.
A mais popular é aquela em que se conta como os israelitas envenenaram, lenta mas e.cazmente, o líder palestiniano.
Seguindo as pistas desta teoria da conspiração chega-se às declarações de Sakhr Habash, um proeminente membro da Fatah, que disse à agência noticiosa palestiniana estar «cem por cento seguro» de que Arafat havia sido «envenenado». A tese ganhou força com as declarações dos clínicos franceses, que descartavam a hipótese de leucemia, não sabendo, contudo, o que poderia estar na origem do «envenenamento do sangue». O médico pessoal do líder palestiniano, o neurologista jordano Ashraf al-Kurdi, declarou também à Al Jazira ter ficado «surpreendido» com a evolução da «misteriosa» doença de Arafat, acrescentando que o Presidente não sofria de nenhum problema crónico. Na sequência, o ministro da Administração Interna e conselheiro Nacional de Segurança de Arafat, Jebril Rajoub, encarregou-se, pessoalmente, de interrogar todos os responsáveis da Muqata (quartel-general da AP, em Ramallah), seguindo instruções precisas do médico jordano. No fim-de-semana, diria à televisão Al Arabiya, do Dubai, que o cenário do envenenamento não tinha «sustentação». Mas o povo já chegara às suas próprias conclusões, discutindo, até, a substância utilizada o tallium, um metal incolor e sem cheiro, que já foi «personagem principal» de um policial de Agatha Christie.
A falta de informação (e o excesso de contra-informação) multiplicaram teorias como esta pelas ruas de Gaza e da Cisjordânia, à medida que o estado de saúde de Arafat se agravava e o primeiro-ministro se desdobrava em reuniões com os vários movimentos. Por unanimidade, foi aprovada, logo no sábado, 6, a criação de um Governo transitório «bicéfalo», formado pelo secretário-geral da OLP, Abu Mazen, e pelo primeiro-ministro, Amhed Qurei.
Uma aliança assumida por todos os dirigentes como «temporária».
As 13 facções rivais que coexistiam no seio da OLP e da AP, graças à mão-de-ferro de Arafat, acordaram em oferecer um período de transição calmo, até que existam condições para a realização de eleições sendo já dado como certo que estas não se efectuarão num prazo de 60 dias após a morte do líder histórico, como de.ne a Constituição provisória da Palestina.
Mas são já muitas as movimentações a fim de marcar terreno e posições para quando o momento de ir a votos chegar.
Sobretudo por parte das camadas mais jovens da Fatah, que vêem na actual situação a oportunidade ideal para assumir o controlo da Autoridade Palestiniana.
O primeiro a posicionar-se nessa corrida foi Mohamed Dahlan, 43 anos, responsável pela segurança na Faixa de Gaza, que acompanhou Arafat em Paris, desde as primeiras horas, e regressou à Cisjordânia na segunda-feira, 8, com a missão de entregar uma «misteriosa» mensagem de Suha ao primeiro-ministro. Nessa noite, quando a delegação já partira rumo à capital francesa, Dahlan jantou com Jebril Rajoub, ministro da Administração Interna e conselheiro Nacional de Segurança, no Darna, um conceituado restaurante de Ramallah. Considerados «arqui-inimigos », o seu encontro despertou a atenção dos presentes e a curiosidade de quem passava na rua, tal era a quantidade de seguranças armados em redor de um jipe topo de gama, com matrícula de Gaza e vidros fumados, à prova de bala. Não são conhecidas as palavras que trocaram, enquanto, à sua frente, desfilavam bandejas de borrego e especiarias. Mas é certo que a intenção (pública) de Dahlan em trocar o controlo de Gaza pelo domínio da Cisjordânia não agrada a muitos palestinianos, que o acusam de corrupção e abuso de poder. O que talvez explique a mensagem que um grupo de encapuzados quis fazer passar. Pouco depois de Rajoub se retirar e de Dahlan ter fumado a sua narguila (cachimbo de água), entraram no restaurante e abriram fogo sobre a cadeira onde o chefe da segurança de Gaza havia estado sentado. «É para que Dahlan saiba que não é bem-vindo na Cisjordânia», gritaram, antes de partirem, deixando os outros clientes em estado de choque.
A geração da Intifada
«Dahlan, Rajoub ou qualquer outro não terão hipótese de vencer as eleições, caso Marwan Barghouti concorra», avisa Caddura Faris, ministro de Estado da Autoridade Palestiniana e responsável pelas pastas dos prisioneiros políticos e do muro de separação que Israel continua a construir entre os dois Estados. Com 42 anos, Faris é o mais jovem ministro nomeado por Arafat e um admirador confesso de Barghouti, o líder da Intifada, preso em 2002 e condenado por Israel a cinco penas de prisão perpétua. No corredor de acesso ao seu gabinete, no edifício do Ministério do Interior, está afixado um poster de quase dois metros, pedindo liberdade para o «Mandela palestiniano». E os seus olhos brilham de esperança, quando pronuncia o seu nome.
Faris, que esteve 14 anos preso em Israel pelo seu envolvimento em «acções de grupos militares da Fatah», apresenta os dados de uma sondagem da Universidade de Birzeit, na Cisjordânia, que atribuía 51% das intenções de voto a Barghouti, em caso de eleições para a sucessão de Arafat.
«Ninguém tem, como ele, a legitimidade de um guerreiro e uma visão de um futuro democrático. E só Arafat tinha esta capacidade de conciliar as vontades de todos os movimentos e de ser respeitado por todas as gerações», considera.
Também Ahmad Ghunaim, 44 anos, ministro da Administração Local, tem uma imagem de Barghouti colada na porta do seu gabinete governamental e vê neste homem a única esperança para erguer uma Palestina independente e democrática. «Tem carisma e um dom especial para lidar com as pessoas, que só conheci, de facto, em Arafat. E tem a coragem dos bravos », diz, antes de levantar a manga da camisa para mostrar como está arrepiado.
Ghunaim emocionou-se ao recordar uma noite em que Ramallah estava debaixo de fogo israelita e os dois dirigentes tentavam descobrir um esconderijo onde não fossem encontrados pelos militares hebraicos. «Os tanques estavam a poucos metros de casa dele, mas fez questão de se ir despedir dos filhos. ‘Pode ser a última vez que os vejo’, disse-me. Ele subiu ao quarto dos meninos e eu fiquei à porta a controlar os movimentos. E quando os tanques estavam a uns dois ou três minutos da porta de casa, gritei-lhe que tínhamos mesmo de ir embora. A reacção dele foi mandar-me falar mais baixo. ‘Assim assustas as crianças.’. E enquanto eu e os outros corríamos por ali abaixo, cheios de medo, ele desceu as escadas com um passo firme e seguro. Tem a fibra dos heróis.»
Crescer com os mártires
Este «herói» foi condenado, não esqueçamos, a ficar preso para sempre. «Mas todos os palestinianos que resistem à ocupação são, aos olhos dos israelitas, terroristas. Marwan Barghouti não é perigoso e quererá fazer a paz com Israel», defende o ministro Ghunaim. Serão falsas as acusações de ter sido o líder das Brigadas dos Mártires Al-Aqsa, por exemplo? «As brigadas são um movimento apoiado pela Fatah. E a luta armada pode fazer sentido, quando queremos forçar o outro lado a negociar», comenta. «É bom recordar que Rabin só aceitou falar de paz por causa da Intifada. Quando o movimento começou, ele disse que acabava com os ‘miúdos das pedras’, em duas semanas.
E, dois anos depois, teve de reconhecer que era um movimento nacional impossível de derrotar.» A resistência não-violenta é uma utopia que, por estes dias, já não convence os jovens palestinianos. As fileiras de grupos extremistas, como o Hamas ou a Jihad Islâmica, não param de crescer.
E são cada vez mais os voluntários para se tornarem mártires, morrendo à imagem e semelhança dos «heróis», idolatrados em posters que forram totalmente as paredes dos bairros pobres, terrenos férteis para a revolta.