A partida de Mandalay fez-se ao final tarde, no auge da hora de ponta, com ruas inundadas de multidões, carros, motos e muito barulho. O sol já rasava os edifícios mais altos da cidade e emprestava o tom ardente ao casario. Tudo fica mais bonito ao pôr-do-sol. A luz fica mais incisiva e há reflexos que nos encandeiam um pouco por todo o lado. Tudo se resume ao laranja e contraluz, numa altura em que o calor menos agressivo já permite sair à rua sem sofrimento. Zarpámos da Royal Guesthouse e seguimos numa pick-up de caixa aberta estrada fora, rumo ao terminal de autocarros. A nós juntaram-se três pescadores, um casal com dois filhos ainda muito pequenos e três mulheres que mascavam tabaco enquanto punham a conversa em dia. Os dois bancos corridos ficaram cheios em poucos minutos e o espaço que havia para os pés deixou de existir, tantas foram as malas e trouxas depositadas. A última passageira a subir a bordo foi Morane Strauch, uma francesa de 21 anos com quem viajámos daí em diante. Metemos conversa no caminho, apresentámo-nos no terminal e conhecemo-la melhor durante a viagem noturna em direção ao Lago Inle, o nosso próximo destino. Foram 8 horas de trajeto de autocarro com direito a videoclipes sem parar e um frio insuportável, culpa do ar condicionado, provavelmente ligado no máximo. Mas compensou. Chegámos a Nyaungshwe, a maior povoação do Lago Inle, já de madrugada e ficámos hospedados na May Guesthouse, uma casa amarela de madeira e com um alpendre a toda a volta. Foi o primeiro sítio onde pudemos tomar banho de água quente. Assim que acordámos no dia seguinte, alugámos 4 bicicletas para explorar as margens do famoso lago, percorrer os caminhos de terra laranja e absorver a paisagem. Inle é o segundo maior lago e um dos mais altos de Myanmar. Há cerca de 200 povoações no local, onde proliferam jardins suspensos e casas de madeira e colmo erguidas sobre estacas. As montanhas com as suas encostas verdejantes dominam a paisagem, diluída nas margens pantanosas do lago onde abundam pequenos barcos atracados, nenúfares e flores de lótus. Os milhares de habitantes de diferentes etnias fintam a água de canoa e percorrem as margens com carrinhas de caixa aberta. As motos continuam a transportar famílias inteiras sobre rodas. Pedalámos sem parar e acenámos a todos com quem nos cruzámos. Nunca nos recusaram um sorriso, nunca negaram exclamar um “Minglabar!”. Mesmo as crianças mais pequenas não escondiam o contentamento. A maior parte delas, já sem alguns dentes de leite, tinha olhos rasgados e um chapéu de palha na cabeça. Pelo caminho, conhecemos Kaulé e comprámos-lhe a travessia para o outro lado do lago. Esguio, moreno, com o cabelo negro, liso e comprido, exibia orgulhosamente a barba de pouco mais de meia dúzia de pelos (um caso vulgar no país). Pôs o motor ensurdecedor a funcionar e ficou a controlar a direção à popa da longa e colorida embarcação de madeira. Prometemos-lhe regressar no dia seguinte e acordámos uma expedição a tempo inteiro, de uma ponta à outra do lago, com direito a paragem em algumas vilas piscatórias, mercados e pagodes perdidos. Negócio fechado. Antes de regressar a Nyaungshwe, visitámos a Red Mountain Winery and Vineyards, onde provámos vinho branco e tinto, enchidos e queijo até fartar. Enquanto conversávamos, o sol recolhia-se timidamente, camuflado pelas nuvens tardias e montanhas em contraluz. O resto do percurso fez-se já sob céu estrelado, sem lanternas, nem candeeiros que iluminassem o caminho. Apenas o led que Morane tinha prendido à cabeça desvendava retas, curvas e contracurvas de uma estrada que parecia não ter fim. Antes de dormir ainda tivemos energia para falar do desemprego jovem, das emigrações em França e Portugal, das feridas ainda abertas pelas descolonizações, dos retornados portugueses e franceses (também os houve) e dos guetos à volta de Paris. Nada que nos tivesse impedido de partilhar músicas dos dois países e falar sobre as ambições e desafios que queremos cumprir no futuro. Experiências e histórias trocadas com cerveja e cigarros em abundância com os ponteiros a rodarem até às quatro da madrugada, hora a que nos fomos deitar. Daí a escassas horas, já no barco, a tremer e contraídos por causa da brisa gélida matinal, vimos o nascer do sol sobre as águas do Inle. As mesmas onde os inthas pescam todos os dias com um pé apoiado na popa da canoa e o outro no remo cravado no fundo lodoso, atirando redes soltas ou cónicas ao lago. A pesca é uma das atividades económicas mais importantes e uma das tradições mais apaixonantes da região. Ficámos maravilhados com toda aquela técnica. Uma coreografia autêntica e sublime que requer equilíbrio, agilidade e força, um chapéu de palha na cabeça e um velho barco de madeira. A pesca no inle é, por esses motivos, uma das imagens mais marcantes que guardamos de Myanmar. A expedição contemplou paragens em povoações flutuantes e pagodes outrora dourados que acabaram esquecidos, tomados pelo tempo e invadidos pela vegetação. Numa curta pausa a meio da manhã, visitámos um atelier e experimentámos várias camisas de linho. Na mesma casa de madeira, erguida sobre estacas, pudemos observar muitas joias de prata, enriquecidas com pedras preciosas. Todas as peças são moldadas a partir dos recursos da terra, pelas mãos dos artesãos locais. Depois de beber um chá verde para recarregar baterias, atravessámos a ponte de madeira que dava acesso ao pagode e mercado principal do sítio, epicentro da vida social e rotineira da povoação. Aí pudemos contactar de perto com a população. Tomámos pulso do quotidiano e misturámo-nos na multidão que trocava regateios de compra e venda sobre budas em miniatura, chapéus, especiarias, legumes e tecidos. Aproveitámos para parar, sentar, comer e observar todo aquele rebuliço. Uma velhinha simpática fritava, ajoelhada, panquecas numa pequena frigideira preta e gasta sobre o braseiro de carvão. O fumo ficava mais opaco com a incidência implacável dos raios solares que penetravam pelas falhas abertas entre as coberturas de lona de várias cores, que se sucediam de uma ponta à outra do mercado. Os comerciantes sorriam, vaidosos pelos legumes viçosos que exibiam sobre tapetes no chão. Nunca recusaram uma fotografia, nem um cumprimento. Todos se mostraram recetivos e satisfeitos por estamos ali naquele momento. É a sensação que prevalece. Há um abraço que não se dá mas que se sente e um agradecimento que fica. Foi nesse mesmo mercado que vimos pela primeira vez uma mulher com as famosas argolas douradas ao pescoço. Um costume da comunidade Padaung, proveniente de Kayans, situada nas regiões acidentadas do sudeste do país. A tradição diz que quanto mais alto for o pescoço, mais bela é a mulher. A imagem é impressionante e inesquecível. Prosseguimos a expedição a bordo da embarcação de madeira, sempre contracorrente. Vimos muitos bosques de bambu e abrandámos muitas vezes para poder atravessar os inúmeros tapetes de lótus e nenúfares que encontrámos pelo caminho. Por volta do meio-dia, já as nuvens se tinham dissipado. O sol regressou em força com a sede, a fome e o cansaço a apertar. Fizemos uma nova pausa antes de almoço, descobrimos um pagode esquecido e um boi pachorrento a pastar no meio das ruínas já meio descascadas e com os tijolos à vista. Caminhámos, caminhámos, em busca de um restaurante, sem sucesso. Entrámos numa pequena mercearia e comprámos garrafas de água. Não se via vivalma na única rua da povoação. Apenas uma estrada seca, de terra batida, acácias verdes e floridas e algumas casas com muros de bambu. Aproveitámos a pouca sombra do alpendre da mercearia para fumar um cigarro e reprogramar o plano para o resto da tarde. Estávamos sentados no chão, encostados a umas sacas de batatas e arroz, dominados pela apatia e exaustão. Nesse instante fomos surpreendidos pela família do merceeiro que saiu porta fora, trazendo cadeirões da sala para que nos pudéssemos sentar. Vieram o pai, a mãe e os três filhos, sorridentes e hospitaleiros. Ficámos rendidos pelo gesto. O padrão confirmava-se: A humildade e a simpatia desinteressada dos birmaneses era cada vez mais uma certeza para nós. Será difícil repetir experiência igual. Oxalá tenham tudo aquilo que merecem e recebam em dobro todas virtudes, vantagens e esperanças que semeiam todos os dias.