Chegado o grande dia, era tempo de dar os parabéns ao António pelos seus 24 anos. Não foi uma estreia, porque nos últimos tempos os aniversários dele têm sido quase sempre festejados fora de portas.
Estava a correr tudo dentro do previsto, tal como tínhamos planeado. O trajeto não sofrera, até ali, quaisquer alterações. A próxima paragem teria lugar em Sidi Ifni, para explorar as arcadas, abertas pelo mar, nas falésias da praia de Legzira.
Já tínhamos passado por estradas temíveis, curvas difíceis de contornar e penhascos traiçoeiros, invisíveis ao primeiro olhar. Tínhamos atirado o Altas para trás das costas e preparávamo-nos para deslizar sobre as planícies do Anti-Atlas, até chegar à costa. Rejeitei a proposta do António para que fosse ele a conduzir nesse dia. Acabei por cometer um enorme erro, o maior deles todos, suficiente para poder comprometer irreversivelmente a viagem em curso.
Mas as grandes jornadas são feitas de imprevistos. E são os imprevistos, os temas mais acutilantes das grandes aventuras além-fronteiras. Acabam por ser estas situações, inesperadas e extremas, a dar o toque de caixa e a fazer-nos crescer mais um pouco, de cada vez.
Ia descansado ao volante porque o pior, julgávamos nós, já tinha passado. Estrada vazia, céu limpo, pouco vento e moral em cima, pois a praia e o sossego eram realidades cada vez mais próximas. Depois de Ouarzazate, foram poucos os carros com quem nos cruzámos na N10. Ficou-nos na memória apenas um deles, porque envergava matrícula portuguesa.
A música ouvia-se bem alta e ninguém estava com grande atenção ao caminho. Numa curva suave e perfeitamente contornável não reparei a tempo, numa berma mais recortada. Não fui suficientemente rápido para evitar que os pneus direitos do carro acertassem num buraco mais profundo. O embate violento e estoiro concomitante fizeram-me perceber que teríamos problemas ali mesmo e por isso parei o carro, imediatamente. Por alguns segundos ficámos mudos e o rádio parou de tocar. Não havia ninguém por perto e estávamos no meio de nenhures, sem qualquer apoio ou ponto de referência que nos pudesse guiar.
Abrimos as portas e caminhámos a medo. O pneu dianteiro do lado direito estava completamente vazio mas o detrás parecia intacto. Nenhum de nós teve reação para o mudar rapidamente e foram precisos dois marroquinos para nos ajudar a resolver a situação. Pensávamos nós que era o suficiente para retomar caminho mas errámos mais uma vez.
Mais animados, entrámos no carro, preparados para comprar um pneu na cidade mais próxima mas os primeiros 5 metros de marcha foram dramáticos. Havia qualquer coisa que estava a prender as rodas e um rangido vindo da traseira, voltou a fazer-nos sair da viatura. “Foi o eixo! Partiu-se!” – Exclamava eu. “Vai lá ver se consegues perceber o que se passa!” – Dizia outro. “Acelera para ver se ouvimos qualquer coisa!” – Respondiam eles. Por fim: “Sim, temos problema…”.
Não tornámos a ligar o carro. Nas horas que se seguiram, sucederam-se chamadas para e de Portugal, numa sequência de perguntas e respostas entre seguradora, assistência em viagem e eu próprio, cada vez mais alterado e impaciente, à medida que o tempo passava. E o tempo passou mesmo, mas as respostas não apareciam e as dúvidas aumentavam de minuto para minuto.
Não tínhamos mais água que nos saciasse a sede, nem comida que nos protegesse da fome. Restava apenas o saco de caramelos que comprámos com Ismael, à saída de Imilchil. Não tínhamos mais nada que nos salvasse daquela espera esgotante, no meio do nada.
O reboque apareceu 5 horas depois do acidente. Pouco depois, chegou o táxi que nos iria levar até à cidade mais próxima, mas ninguém se conseguiu fazer entender. O meu francês, tal como o do António, era básico demais para nos safar daquele filme. Foi o João, o que mais se desenrascou nas negociações entre seguros, rebocador e taxista. Depois de muitos avanços e recuos fizemo-los ver que a solução mais eficaz seria fazer um desvio no percurso e seguir diretamente para Agadir.
O taxista conduzia um Mercedes beije. Era enorme e gordo, envergava uma túnica azul e era grande demais para o assento que ocupava. Sentei-me no lugar do morto e os outros dois ficaram lá atrás. As portas mal fechavam, o velocímetro tinha morrido, os tabliers eram forrados com cobertores, que apenas usamos nas noites mais invernosas, e os bancos afundavam até mais não.
A viagem atribulada, com o reboque à frente e as memórias do acidente atrás das costas, silenciaram-nos as ideias e pensamentos que ainda tínhamos por expressar. Ultrapassagens bruscas, não sinalizadas e desabafos mais agressivos do taxista, por causa do trânsito, eram pormenores que passavam pelos nossos olhos e ouvidos, mas que nos deixavam sem reação. Estávamos apáticos, absolutamente resignados, como se fossemos espetadores do nosso próprio filme.
Perdemos de vista o reboque, a meio do trajeto. Como se isso não bastasse, o taxista parou numa estação de serviço para ir cumprir mais uma oração na mesquita. Não sabíamos do carro e o sol já se tinha posto.
Quando chegámos a Agadir, percebemos que tudo estava fechado. Deixaram-nos na periferia da cidade, onde estão sediadas oficinas e alojamentos mais baratos. Ficámos hospedados no Hotel Residence Najib, na Boulevard Ahmed El Mansour Eddahbi. Foi o melhor sítio em que poderíamos ter ficado, por tudo e por nada. O gerente foi o nosso melhor aliado nos momentos de maior aperto e desespero. Percebemos isso desde o início, ao negociar o preço da estadia. Sem motivos nenhuns para confiar em nós, o homem cedeu às propostas e aceitou fazer negócio. Mas o seu contributo foi muito para além das portas daquele hotel.
No dia seguinte, fui o primeiro a acordar. Passavam poucos minutos das 8 da manhã quando me dirigi ao escritório de uma conhecida seguradora, do outro lado da rua. Mas de nada adiantou, já que o espaço estava despido de equipamentos e apenas contava com uma secretária e um figurante a ler o jornal. Disse-me que a sucursal estava para abrir em breve, mas que ainda faltavam alguns pormenores, até à inauguração. Não esmoreci e entrei na porta seguinte, uma oficina. Ninguém quis fazer um diagnóstico ao carro que eu tinha trazido, cheio de rangidos e lamentos, do lado de lá da estrada. Era impossível não começar a entrar no desespero, porque afinal o carro não podia andar. Nem sequer sabíamos quais tinham sido os problemas causados pelo acidente, à saída de Ouarzazate.
O gerente do Najib deu-me vários cartões pré-pagos para comunicar com Portugal. O homem, de quem não ficámos a saber o nome, acompanhou-nos a par e passo durante todo o dia. Supostamente a seguradora haveria de me indicar uma oficina creditada e um reboque para levar o carro até ao local, mas as horas passavam sem que qualquer resposta me fosse dada. O nosso amigo indicou-nos uma oficina no quarteirão seguinte e chamou um dos mecânicos para vir dar uma vista de olhos ao carro.
Foi nessa mesma oficina que o carro ficou, suspenso, sem rodas, durante o dia todo. Ficámos logo a saber que a jante dianteira ficou com danos permanentes e impossíveis de reparar. Quanto à roda de trás, descobrimos que a jante tinha ficado amolgada e que por isso roçava no eixo. Apesar do ruído e perda de rotação, o caso da traseira tinha solução. Apenas era necessário comprar uma jante para substituir a da frente.
O mecânico-mor, chefe de todos os outros e senhor da oficina, tomou as rédeas da situação e disse que ia comprar uma igual. Mas o tempo foi passando e um dos subalternos quis ajudar-nos. Chamou um micro-táxi e levou-nos à oficina de um amigo, nos arrabaldes da cidade. O Fiat Uno vermelho era pequeno demais para todos nós. O mecânico seguia á frente e eu e o João atrás. Estivemos cerca de meia hora à espera do homem que nos viria resolver a situação mas, das dezenas de jantes que guardava, nenhuma correspondia às originais. Nada feito. Seguimos para a Ford, na esperança de uma resposta mais confiável, mas queriam que esperássemos mais 3 dias e que pagássemos 360 euros por uma jante. Nada feito. Com o mesmo táxi e o mecânico da primeira oficina, dirigimo-nos a uma casa de acessórios, propriedade de um amigo do funcionário que nos atendeu na Ford, que por sua vez era conhecido do dono do pardieiro que não tinha nenhuma jante, igual às que o carro tinha. (Não se preocupe o leitor, porque a história é mesmo confusa).
Na tal loja de acessórios só era possível comprar conjuntos de 4 jantes, por 360 euros. (pelo mesmo preço de uma única, na Ford). Mas nós apenas precisávamos de uma jante. Para além do preço propriamente dito, ainda tivemos de pagar mais 20%, para que nos dessem fatura. Depois de feitas as contas, voltámos no mesmo táxi, com o mecânico e mais 4 jantes a bordo, rumo à oficina onde o carro aguardava, suspenso e sem rodas, desde a hora de almoço.
O António tinha ficado à nossa espera na esplanada do café, ao lado do hotel. Tinha pedido umas omeletes, que nunca chegaram a ser comidas. Entretanto, a menina da assistência em viagem também me foi ligando, para saber se precisávamos de ajuda, salvaguardando sempre que apenas tratavam do reboque.
Chegámos à oficina mas afinal não era ali que se trocavam as jantes. A Pirelli ficava ao fundo da rua e fechava às 5 da tarde. Foram metros percorridos com angústia e sofrimento, porque o carro queixava-se a cada movimento.
Quando regressámos de carro ao hotel, percebemos que o bairro já nos conhecia e que festejava, entre dentes, o nosso sucesso. Tomámos banho, comemos qualquer coisa, carregámos o carro e despedimo-nos do gerente do Najib, agradecendo-lhe pela ajuda preciosa e impagável que nos prestou naqueles dois dias.
À saída de Agadir senti o carro a fugir-me das mãos, impressão mais notória quando contornávamos as rotundas da grande avenida de entrada e saída da cidade. Por fim parámos numa estação de serviço e percebemos que o filme ainda não tinha chegado ao fim, pois o pneu direito traseiro estava completamente em baixo. Desta vez optámos por usar uma espuma, supostamente inovadora e eficaz, que remenda internamente, eventuais furos do pneu.
Seguimos as indicações à risca e percorremos cerca de 10 km para que o produto fizesse efeito. Fomos e voltámos, demos voltas sem fim às mesmas rotundas, num silêncio ensurdecedor e clima de medo e terror. Ninguém ousava afirmar ou sequer perguntar, fosse o que fosse. Mas o pneu não voltou a vacilar e lá seguimos viagem. Deixámos cair Sidi Ifni e desviámos a rota para norte, naquela que viria a ser a subida de regresso a Portugal. Pela frente restavam-nos Essaouira e Marraquexe, cidades surpreendentes para visitar.