Nós gostamos de encontrar cumplicidades com o território que pisamos, sugerir que houve uma união de facto entre os povos e a geografia, que provocou fronteiras, etnias, idiomas, razões de paz e de guerra.
Às vezes, faz sentido. Penso sempre no comentário de um amigo italiano, quando o conduzi desde Salamanca para que conhecesse Portugal. Depois dos campos da meseta cultivados até ao horizonte e da alegria transgeracional que ocupava a Plaza Mayor, nas noites de Salamanca, ele começou a ver surgir alguns calhaus na paisagem, por volta de Ciudad Rodrigo. A seguir, mais calhaus e menos paisagem. Depois, era já só calhaus, e os campos férteis apenas uma visão ultrapassada.
Entrámos em Vilar Formoso. As penedias, a serra, o terreno maldito, amaldiçoado, que nem para cabras serve deramlhe as boas-vindas. O meu amigo italiano olhou-me de alto a baixo como se eu fosse dois mil anos de genes de toda uma nação, olhou para a raia, e abanando a cabeça comentou em tom complacente: “Agora compreendo.” Não percebi a diferença, quando entrei na raia do povo Dogon. Pareceu-me que não tinha acontecido nada de novo em relação ao resto do Mali: as mesmas casotas de barro e barrotes, os mesmos saiotes apertando as ancas das mulheres, a mesma aridez asfixiante do deserto, durante o dia, e, à noite, uma doce frescura que retirava peso à vida.
Mas a diferença existe, chama-se falésia de Bandiagara e obriga o Sahara a acabar no nada.
Fugindo da onda islâmica que varreu o Norte de África, no início do segundo milénio, várias tribos animistas recolheram-se à falésia de Bandiagara, acidente de relevo que oferecia uma eficaz proteção aos ataques dos inimigos monoteístas. É provável que seja essa a única origem comum dos cidadãos Dogon a fuga de uma religião nova que não queriam abraçar.
A fuga e o refúgio. A falésia de Bandiagara, com a sua parede para lá de vertical, em anfiteatro invertido, permitiu a edificação de uma teia de cidades-fortaleza que, com alguma eficácia, foi repelindo os ataques das inimigas tribos muçulmanas. Eis um exemplo tocante da tal cumplicidade entre um povo e o território que habita, que eu mencionava no início. O Mali é um país de maioria muçulmana basta pensar na sua localidade mais emblemática, Timbuctu, e no significado que ela tem para o Islão, tão importante que o seu acesso esteve vedado a homens de outras religiões, ao longo dos séculos. Mas, dentro do Mali, o enclave da falésia de Bandiagara é uma ilha de resistência e pluralidade de credos. Uma fronteira que percorri à boleia, regateada e paga, numa motorizada do primo do amigo do cunhado do dono de uma pensão em Sevaré.
Hoje, todas estas aldeias incrustadas na parede vertical da falésia, tal como a própria falésia, são Património da Humanidade, na lista da Unesco. Pergunto-me o que teria acontecido a este legado se os militantes da Al Qaeda tivessem triunfado na guerra do ano passado, no Mali. Era provável que as aldeias rupestres de Bandiagara fossem deliberadamente destruídas pelos talibans africanos, tal como aconteceu com as estátuas dos budas de Bamian, no Afeganistão.
Falta apenas referir a razão de um sistema tão complexo e orgânico de defesa: os Dogon eram alvo de ataques por esclavagistas muçulmanos, que raptavam e transportavam as suas presas até ao golfo da Guiné, onde mercadores portugueses as compravam e as levavam para o Novo Mundo. Nem sempre a contribuição de Portugal para a lista da Unesco é evidente ou celebrativa.