Aviso: esta mulher é “teimosa como ninguém imagina”. Fez treino militar, na qualidade de civil, para se candidatar a astronauta e pilotou na esquadrilha nacional de acrobacia da Força Aérea Portuguesa, Asas de Portugal.
Quando mete uma coisa na cabeça, não a larga, mesmo que tenha passado muito tempo. Como nesta aventura.
Tudo começou em miúda, quando estudava para o exame da antiga quarta classe. Tinha de decorar os rios, as serras, os caminhos-de-ferro e isso fê-la ter noção do “tamanho” do País. “Lembro-me de pensar: Um dia ainda vou ver se isto é mesmo assim”. E foi.
Para descobrir os limites deste espaço a que chamamos Portugal, Isabel Pessôa-Lopes, 45 anos, resolveu ir ver, com os seus próprios olhos, sozinha e a pé, os seus extremos: as fronteiras marítimas (todos os faróis, fortes e cabos de mar) e terrestres (castelos, fortalezas e povoações na linha da Raia) do continente.
Partiu do Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, a 4 de julho e regressou, ao mesmo local, 80 dias depois, carregada de emoções e histórias que não imaginava possíveis.
País esquecido
Conversa connosco no Jardim da Estrela, Lisboa, lugar onde brincava em pequena.
Vem equipada com material de caminhada: botas, calças, dois bastões que usou na viagem, um chapéu com uma flor rosa e um pin na blusa branca que anuncia as suas origens: Proudly Portuguese, que significa “orgulhosamente português”.

Como percorrer Portugal: Mensagens e carimbos no caderno de viagens, levar o sempre útil canivete e não abusar da gastronomia nacional
Luís Barra
Não é de espantar que queira mostrar a sua nacionalidade desde 1991 que esta analista de riscos espaciais está fora. Mora em Londres, já morou no Japão e em tantos outros locais: “Em 18 anos, abri e fechei 11 casas em cinco países diferentes.” É uma cidadã do mundo, que não conhecia os mundos existentes na sua pátria. “Foi uma viagem por um país que está muito distante geograficamente de mim e da minha vida. Todos os anos tenho vindo cá, mas a minha família está toda entre Lisboa, Sintra, Cascais.” Chegou com muito para digerir, milhares de fotos para ver, centenas de histórias para contar talvez escreva um livro, talvez escreva vários mas consegue resumir numa curta frase as vivências por mais de 2000 quilómetros percorridos: “É um país lindíssimo com um Estado disfuncional, o que está a dar conta das pessoas.” Para quem trabalha num setor de ponta tecnológico, como o da indústria aeronáutica, para quem salta entre grandes cidades do mundo e se habituou a uma vida cosmopolita e urbana, pode ser um choque dar de caras com a pátria esquecida e ostracizada, que não vem nos guias turísticos, nem aparece na televisão.
“A única maneira de levar a cabo esta aventura foi viajar tipo Monty Python. Porque não encontro explicação lógica para as disparidades que vi, a nível humano. As pessoas que vi a passar mal, muitas vezes por causa do Estado Social que lhes falha, trabalharam que nem uns cães a vida toda, pagaram os seus impostos. Porque é que agora não há um médico? Não há um lar, uma farmácia, um café, uma mercearia, um telemóvel, um multibanco. Esta gente não tem direitos? Estou falar de um país da União Europeia, onde havia zonas em que eu estava preocupada com a qualidade da água. Todo o trajeto que fiz junto à raia, a partir de Castelo Branco, não tem rede de telemóvel. Nós fomos e voltámos da Lua nos anos 60. Estamos em 2011!” Mas a pobreza que viu chegou a dar ligaduras, pensos e desinfetantes que levava na mochila foi também de espírito, em terras que conhecia dos anos 80 e, onde, conta: “À exceção de haver melhores estradas é a mesmíssima coisa em termos de mentalidades. Não vi grandes diferenças e isso chocou-me”.
Viajar com o CAOS
Teve águias a fazerem-lhe voos picados rasantes; viu cegonhas pretas; cami nhou ao lado de cavalos Garranos, no Gerês; olhou nos olhos um Lobo, no Parque Natural de Montesinho; jantou uma lata de atum no topo da igreja matriz de Guadramil, Rio de Onor, Bragança; viu nascer e pôr todos os sóis sempre que dormiu nos mais de trinta faróis onde pernoitou (com uma especial autorização da Autoridade Marítima Nacional) “Foi intensíssimo, pelos contrastes. Às vezes chegava a sítios onde ficava semrespiração, de tão belo que era. Eu não pensava… observava, ouvia, quedava-me pelas paisagens, estava completamente absorta por tudo o que estava a viver. Quando não há presença humana, a natureza faz um barulho enorme”.
Mas toda esta aventura só foi possível com sacrifício, alguns dias de choro e regras bem definidas: “Não caminhava depois do pôr do Sol; não ia por atalhos; nunca dormi ao relento. Eram riscos que não podia correr”. Mesmo assim, enfrentou situações tensas: fugiu de toiros na zona de Monforte da Beira, Castelo Branco, e teve de refugiar-se em cima de uma árvore, à sombra da qual os toiros resolveram descansar também, durante mais de uma hora; foi içada, pela mochila, para cima de uma camioneta carregada de melões, cujos homens lhe queriam dar boleia; outra vez, uns “gandulos” apareceram de carro, saíram e começaram a meter-se com ela ameaçou-os e disse: “Você dá mais um passo e leva chumbo”, embora não tivesse arma nenhuma.
Experiências limite que Isabel suportou devido a um espírito certamente audaz e a toda a ajuda que, estrada fora, foi recebendo. Fossem os bombeiros ou as juntas de freguesia, junto à raia, ou o CAOS Círculo de Atividades Oxigénio e Sol, grupo de caminheiros ao qual pertence e que, a nível nacional, ia tratando de lhe arranjar sítio para pernoitar durante todas as etapas.
Mas viveu, também, todas as peripécias que uma comédia de enganos pode conter: pensarem que era uma charlatã, que tinha fugido de casa, que estava em peregrinação, que era uma prostituta ou, até, que desconhecia a existência de transportes para o Algarve: “Em Vila do Bispo, na biblioteca, quando uma funcionária me viu pôr a mochila às costas e lhe contei a minha história, ela agarrou-me as mãos e disse: ‘Olhe menina, isto agora está muito mudado, já há “carrêra”, escusava de ter vindo a pé'”.
Levou apenas três pares de botas (um desintegrou-se), três pares de calças (outro desfez-se) e três blusas.
Água, latas de atum, um termo para o café, a máquina fotográfica e gastou pouco mais de mil euros.
Não quer dizer a conta certa porque: “Houve pessoas que tiraram familiares de cama para ma ceder e o que isso significou não tem preço. Não posso quantificar”.
Aviso: ela vai partir outra vez, desta vez acompanhada pelo grupo CAOS (www.ocaos.org). Já no início do 2012 arranca do Castelo de São Jorge, Lisboa, tendo como destino final o Castelo de Guimarães, chamado berço da Nação e, a partir de dia 1 de janeiro, elevado a Capital Europeia da Cultura. Pelo caminho pretende correr as fortificações interiores do país e lança o desafio: “Junte-se quem quiser.”

Farol no Cabo de S. Vicente, Sagres. Isabel teve o privilégio de dormir em todos os faróis do continente
Luís Barra