A estrada que liga Casablanca a Mazagão e depois a Marraquexe é percorrida com muitos milhares de passos. Anda-se muito, vêem-se paisagens desertas, mas não é deserto, encontramse as mesmas nuvens e o mesmo céu do Alentejo. Também as searas têm, por esta altura, as cores dos olhos das ceifeiras alentejanas – o castanho dourado pelo Sol. Mas aqui, em Marrocos, os chapéus pretos que as mulheres usam em cima dos lenços e as saias compridas que lhes cortam o calor têm outro aspeto. Digamos, um “outro corte”. Na verdade, o que eu vi da carrinha que me levou do luxuoso Beach Resort de Mazagan (ver caixa), com praia privada orlada de palmeiras e mar agreste, até Marraquexe, foram imagens que me habituei a ver no Alentejo ou no interior algarvio, embora, neste caso, o “ecrã” tenha uma dimensão maior. Sem medidas de referência para explicar a grandeza da paisagem – a terra e o céu juntos, apenas uma ténue linha a separá-los -, anotei que nas cenas com que deparei pelo caminho foram introduzidas as personagens exatas deste filme: mulheres de foice na mão, rostos e corpos tapados por panos coloridos; homens sentados à beira da estrada sem que nada estivessem a fazer; depois, centenas de metros à frente, um outro a vender molhos de hortelã sem que se avistasse alguém por perto; cestaria pendurada em tendas improvisadas; crianças em idade escolar a correr pelos campos; polícias de trânsito, burros, vacas, rebanhos, um ou outro camelo, alguns pássaros e raros tratores guiados por agricultores de pele curtida pelo sol, apesar das longas vestes que os protegem.
O caminho de Mazagão a Marraquexe prolonga-se-me por três horas e meia de calor, nesta época. Breves paragens foram feitas em locais sem nome, com modestas esplanadas de rua, mesas ferrugentas e cadeiras a condizer. Numa das terras havia uma banca onde a única mulher que àquela hora do entardecer consegui ver servia parira (uma saborosa sopa típica marroquina, feita de grão, cebolas, açafrão, água, sal, pimenta, lentilhas, coentros, aipo, provei eu, mais tarde, num local “seguro”…) em tigelas enegrecidas pelo tempo e pela sujidade. E bebese chá verde, de hortelã e de um trago, sempre a escaldar para nos livrar da sede e atenuar o calor.
Não se sente insegurança neste curioso espaço público, apesar do ar ameaçador dos homens que ali se juntam para conversas de fim de tarde. Aliás, não se sente medo a viajar por Marrocos, por estas estradas onde os cheiros agrestes e doces se misturam e entram pelas janelas abertas da viatura, enquanto, no interior, a música de um canal de rádio sediado bem longe, em Casablanca, o Luxe -onde só se ouvem covers, de Jacques Brel aos Rolling Stones -nos anima e deixa perplexos com tanta imaginação.
A cidade do destino, Marraquexe, estava próxima, já ali. Mas a noite escura e quente tinha chegado há muito e as casas cor-de-rosa da cidade não passavam de sombras escuras. Se os habitantes a pé eram escassos, os carros e as bicicletas eram muitos. Caótico, o trânsito. Imenso o cansaço que nos levou ao hotel para jantar -“comida de hotel”, com pequenas variações locais: tagines, couscous, e as maravilhosas e únicas azeitonas temperadas de mil e uma maneiras, como só naquele país tive a oportunidade de saborear.
A ASSEMBLEIA DOS VIVOS
O segundo dia começou cedo. E da varanda do meu quarto senti, pela primeira vez em muito tempo, um calor diferente do que estou habituada a viver. Quente e doce. O céu estava azul e o pequeno-almoço seria tomado no jardim do hotel, o Atlas Medina & Spa Marrakech, rodeada de pequenos pássaros pretos que ali estavam à procura de comida. Por vezes, basta esta companhia e os sumos frescos de fruta para nos trazer descanso e forças.
Mohamed, o simpático chauffeur que nos acompanhou durante toda esta viagem, esperava-nos à entrada do hotel. Ainda era cedo para enfrentar a Medina e as suas fascinantes ruelas, e a famosa praça Djemaa El Fna. A próxima paragem estava programada: os Jardins de la Ménara, situados na Avenue de la Ménara, a pouco mais de três quilómetros do centro da cidade.
Três camelos com mantas coloridas sobre a bossa, ruminantes e parados à espera de algum turista que quisesse dar-lhes trabalho, alugando-os para um passeio exótico. Espanhóis, franceses, britânicos, alemães à nossa volta – e lá dentro, o sossego. Os Jardins de la Ménara ficam a um mundo de distância do ritmo alucinante da cidade, alteram a paisagem da planície urbana para um imenso olival com um reservatório a meio que o sol transforma num “espelho de água”, provavelmente o local eleito pelo sultão Abd er Rahman, o seu fundador, para cortejar as mulheres que para ali levava, prometendo-lhes o amor eterno. Percebi então que em “la Ménara” se inicia o desfile de figuras típicas marroquinas, algumas como que saídas dos livros de Corto Maltese: os guerraf (aguadeiros) devidamente paramentados de fatos vermelhos e largo chapéu de feltro, da mesma cor, com borlas pretas a caírem sobre a testa; os vendedores de punhais e de colares e de pulseiras e de brincos e de outras “marroquinarias” que não nos fazem falta nenhuma mas que nem sempre resistimos a comprar; homens vestidos de “jedi”, rosto “esculpido” e pele escura, sentados à sombra, debaixo das oliveiras… Dali, daquele jardim, quando o tempo está limpo, costuma poder ver-se o Alto Atlas. Mas neste dia o nevoeiro ocultou-nos o “bilhete-postal” marroquino.
O tempo em Marraquexe passa devagar. Aliás, o tempo em Marraquexe é coisa que não merece ser levada a sério. Quantos minutos passaram desde que entrámos em “la Ménara”? A visita estava feita, e nela nem faltou um “bom dia” em português -dois jovens de mochilas às costas toparam-nos o estilo. Um bom dia, este, que começou num jardim, longe da confusão da cidade, mas que era também por ela que ali estávamos. Partimos para a Medina, o souk, a praça Djemaa El Fna. Não se deixem enganar -aqui toda a gente tem uma função a cumprir: vende, compra, conta histórias, procura alguma coisa, deixa-se fotografar a troco de alguns dirhams ou, sem que nada o faça prever, tapam o rosto e fogem das máquinas fotográficas, proferindo palavras que não entendemos mas que percebemos não serem as que mais desejámos ouvir.
Mal entrei no coração da Medina, “a mais bonita, a seguir à que existe em Fez”, dizem-me, percebi que era ali que a minha viagem começava. Ou acabava, não sabia. As cores, a conjugação perfeita das cores! O amontoado de pessoas e de bicicletas e de burros e de motas que tentam furar e abrir caminho por entre as centenas de pessoas – eles, os marroquinos, e nós, os turistas, ávidos para confirmar tudo o que ao longo dos anos fomos assimilando sobre esta cidade. É mesmo assim – é mesmo como vemos nos filmes e nas fotografias, como lemos nos diários de viagem e nas grandes reportagens. É cor-de-rosa esta cidade, são estreitas e labirínticas as suas ruelas milenares e, muitas delas, desembocam em pequenas praças, onde latoeiros, curtumeiros, sapateiros e outros homens trabalham nas suas artes. É verdade que a vida está sempre na rua e que os seus habitantes têm rostos tão marcados e usam roupas tão diferentes que mal conseguimos deixar de olhar de um lado para o outro, à procura de mais, de muito mais.
Cercada por uma imponente muralha erguida no século XII pelo sultão Ali ben Yussef, a Medina de Marraquexe tem 14 portas de entrada. No centro da cidade antiga está a maravilhosa praça Djamaa El Fna, cuja tradução literal é “Assembleia dos Mortos”, já que era nela que, há séculos, os criminosos eram executados e as suas cabeças expostas para servir de exemplo. Hoje, a praça é palco de performances dos mais variados tipos: encantadores de serpentes, mágicos, acrobatas, faquires, amestradores de macacos com ar agressivo (uns e outros), curandeiros, músicos de rua, dançarinos, contadores de histórias e os célebres vendedores de água. Esta praça é um grande circo a céu aberto que, com o passar das horas, se vai transformando, agitando e enchendo até não caber nem mais uma agulha, até estarem representadas todas as habilidades e costumes locais, da gastronomia à “luta livre”. Dezenas de barracas, ladeadas por bancos corridos de madeira, vendem comida típica, mulheres lêem o destino de quem por ali passa ou oferecem o seu talento para tatuar as mãos, ou qualquer outra parte do corpo feminino (os ombros, os tornozelos…) com hena. E não é de todo invulgar vermos “lutadores de boxe” rodeados por um ajuntamento de homens a puxar cada um pelo seu desejado vencedor; ou dois homens sentados no chão à volta de um tabuleiro de damas cujas peças são feitas de pedras e de cascas de laranja.
TAGINE OU PASTILLA, EIS A QUESTÃO
A comida dá cheiro à cidade. É uma delícia podermos sentar-nos em qualquer banca de rua ou num “café” a tomar chá. É um privilégio podermos entrar à descoberta de um dos milhares de “restaurantes” que se escondem nos riads e pedir tudo a que temos direito. Bem perto da praça Djamaa El Fna, mas longe da confusão, situa-se o Riad Omar. Depois de alguma hesitação, subimos as escadas e entrámos num maravilhoso mundo de almofadas, de tapetes, de mesas redondas e ótimas cadeiras para nos “estendermos”, servidos por homens e mulheres sorridentes. O preço foi “negociado” à entrada -150 dirhams (€15), com direito a tudo. Caro? Que fosse, mas o corpo pedia descanso e ainda havia muito para ver. Chegam então as saladas, as harira, as brochettes, as azeitonas, as pastillas fassi, as tagines e as tangillas… E a água, engarrafada, naturalmente. Bebidas alcoólicas, nem vê-las -há que aceitar os costumes locais. Como sobremesa, além do chá, corne de gazelle, um dos muitos deliciosos doces marroquinos, feito de amêndoa, flor de laranjeira e canela, que assume a forma dos chifres da gazela, e daí o nome. O almoço estava completo.
A refeição noturna, essa, merecia ser aqui contada ao som das cítaras e das vozes dos dois homens que, entoando canções berberes, a acompanharam. O restaurante Dar Moha fica num sumptuoso riad, que já fora em tempos a casa do estilista francês Pierre Balmain.
Agora pertence a Mohamed Fedal, um chef formado na escola de hotelaria de Genebra e que serve, a troco de 530 dirhams (€53/ pessoa, refeição completa), autênticas jóias da gastronomia marroquina. Com mesas dispostas à volta de uma piscina forrada a azulejaria local, as paredes pintadas de um azul forte, as louças de barro rústico mas elegante, a luz suave que saída dos castiçais, o ar quente das noites de Marraquexe a tocarnos levemente, os pratos chegavam até nós com a cadência exata. Decidirmo-nos entre “serpentin de legumes au coulis de kezbour”, “pastilla de pigeons à la cannelle” ou “pastilla de lotte” (nas entradas); “tagine de jarret de boeuf aux fruits et légumes doux”, “tagine de souris d’agneau à la crème de ras el-hanout”, “couscous de fois gras à l’huile d’Argan” (nos pratos principais) ; ou pelas sobremesas com nomes tão sugestivos como “salades d’orange à la fleur d’oranger”, “chakhchoukha aux pommes et pistil de safran”, “couscous de melon au mile de thym” ou “sorbet et glace aux fruits et aux épices” foi, sem dúvida, a maior dificuldade do dia. A noite há muito que tinha chegado…
AS CABRAS EQUILIBRISTAS DE ARGAN
… E a manhã, em Marrocos, fez-se para ser vivida. Deixámos Marraquexe e o sol e partimos até Essaouira, 168 quilómetros a oeste.
A paisagem era verdejante, ao contrário do que podíamos prever, e as vias rápidas (embora muitas delas ainda em construção) tornaram a viagem pouco cansativa. Pelo caminho, algumas surpresas, que julgava nunca poder observar, a não ser nos costumeiros desenhos animados.
Cabras em cima das árvores? Sim, cabras em cima das árvores -presas às Argan, uma das espécies mais comuns daquela zona de Marrocos, uma área declarada como património florestal da humanidade, cujos frutos estes animais devoram e os locais utilizam para fazer os célebres produtos de beleza (quem não conhece os cremes e os sabonetes de Argan?) e o óleo utilizado na culinária daquele país, com propriedades únicas. No meio do nada, lá estavam elas empoleiradas, firmes, sem ninguém por perto, pensávamos nós ao descermos do autocarro, máquinas fotográficas apontadas na sua direção. Mas ao primeiro disparo fomos rodeados por meia dúzia de homens, com ar de poucos amigos, que repetiam uma única palavra, e desta vez em inglês: “Money, money, money”. O dinheiro fala alto naquelas terras -é preciso regatear, voltar as costas ao “inimigo” ou, então, oferecer lápis ou canetas às crianças e aos adultos, que nos agradecem com um sorriso franco. O mesmo espírito com que nos receberam as mulheres, trabalhadoras de uma cooperativa que, ali bem perto, se dedicam à extração, através de processos artesanais, do óleo das “amêndoas” que nascem nas árvores de Argan. São necessários milhares de frutos para se conseguir obter um litro de Argan e já há quem lhe chame “o ouro marroquino”, pelas elevadas somas por que é vendido fora de portas.
Estamos quase a alcançar Essaouira, a “cidade do vento”, que no século XVI foi ocupada pelos portugueses. O mar já se vê ao longe e a paisagem alterou-se fortemente: é agora azul e branca. Azul, devido ao mar e aos barcos de pesca que ali se encontram às centenas; branca, porque é essa a cor das muralhas que a cercam, do Castelo de Mogador, uma fortificação construída pelos portugueses em 1506, no auge do seu período de conquistas no litoral norte-africano. Branca é ainda a cor das gaivotas que sobrevoam esta cidade aos milhares.
A sua praça central, ao lado do porto, é circundada por edifícios pintados de branco, com as portas azuis e arquitetura marcadamente portuguesa. São esses marcos que nos cativam, misturados com os outros -os muçulmanos -sentidos especialmente dentro da Medina, onde o comércio tradicional, tão diferente do praticado em Marraquexe, mantém o encanto destas terras longínquas: a pureza dos tecidos, as caixas de madeira de tuia gravadas e com pedras embutidas, os mil e um modelos das malas de cabedal, dos sapatos e das sandálias, as écharpes, as longas túnicas, as joias de prata, os acessórios domésticos. E os mercados de peixe fresco, onde as sardinhas estão em maioria, mas também as bancadas repletas de chás que servem para curar todas as maleitas. Essaouira é uma cidade de sonho, portuguesa e muçulmana, que muitos procuram para a prática de desportos náuticos (surf e windsurf) e outros pelo sossego que se sente nas ruas.
A PRAIA ‘UNITED COLORS’
Voltámos a Marraquexe, para uma última noite. Depois, Casablanca, a cidade que Michael Curtiz eternizou, mas que é muito mais do que este filme, embora ele ainda lá esteja. Presente sobretudo na nossa memória, mas também nalguma arquitetura que ainda se encontra em muitos edifícios da cidade – apesar de degradados, quase sem cor, que conseguem arrancar-me um sorriso de agradecimento por ainda existirem.
Caótica e diferente, talvez porque ocidentalizada, ‘Casa’, como é tratada por quem lá vive, não deixa, na verdade, de me surpreender. Foi ali, em La Corniche, uma das zonas relevantes e turísticas da cidade, que entendi que também naquele mundo, “a praia quando existe é para todos” – homens de idade avançada aproveitavam os últimos raios de sol deitados na areia; jovens aos milhares, rapazes e raparigas, jogavam futebol sem que nada os parasse; vendedores de “marroquinaria” tentavam a sorte junto dos turistas; burros de porte pequeno, devidamente acompanhados, passeavam-se na areia à espera de alguém que quisesse montá-los; meninas de biquini trocavam risos ao pé de outras cobertas da cabeça aos pés. O ruído era muito, vindo dos rádios portáteis e da alegria que uma tarde à beira-mar consegue proporcionar.
Junto a este imenso areal fica o passeio marítimo, com resorts e esplanadas “porta sim, porta sim”. La Corniche é um dos símbolos de “Casa”, um local bem mais antigo do que a Mesquita Hassan II, uma obra de arte arquitetónica acabada de construir em 1993, ao fim de seis anos de trabalhos. Dois mil e quinhentos operários e dez mil artesãos participaram na sua construção. Com 20 mil metros quadrados de superfície, tem capacidade para receber, de uma só vez, 25 mil fiéis… No seu interior, um sistema hidráulico instalado no teto, faz com que este se abra e a madeira pintada seja substituída pelo céu de Marrocos. Que fica exposto, ao alcance de todos -como as terras deste país que, à semelhança das estrelas, continuam a brilhar intensamente tanto na imaginação como na realidade.
Publicado na edição número 24 da Visão Vida & Viagens, Julho de 2010