Sinto-me na obrigação de avisar o leitor, desde já, que o indivíduo que figura no presente retrato é uma tela vazia e desinteressante, salvaguardando um pequeno aspecto – possibilita a qualquer turista mais sonhador, na ânsia da procura de experiências diferentes, participar nas filmagens de um filme de Bollywood e a ilusão de estar diante das câmaras e imaginar que é uma vedeta, nem que seja apenas por um só dia.
Comunicador frouxo e tão pouco produtivo quanto expressivo, foi deixando para mim a arte de adivinhar o que lhe ia no pensamento. Não me dei a esse trabalho. Ao invés, deixei-me levar pelo meu desalento e rapidamente me desinteressei. Ao fim de uns minutos, ansiava somente regressar ao bulício das ruas e à agitação dos transeuntes. Como se não bastasse, foi insistindo única e persistentemente para que eu focasse a sua empresa e deixasse bem claro o seu número de telemóvel e correio electrónico.
O que de seguida vos conto resulta de uma troca de palavras quase unilateral que durou apenas quinze minutos. Poderia (re)escrever todo este trecho de vida relatado por ele sob outro ponto de vista, mais interessante e, simultaneamente, mais falso. Mas quero reproduzir neste texto, o mais fielmente possível, o momento – tão desinteressante como na realidade foi.
Esta conversa teve lugar num dos milhares de postos com internet em Bombaim. Conhecendo-o de antemão, marquei previamente o local e a hora. Abri o meu bloco de notas e, antes sequer de pronunciar qualquer palavra, a mão dele estende-se na minha direcção, ostentando uma pequena caixa transparente e quadrada com um colar e um par de brincos. É um presente para ti, exclama. Fiquei especada a olhar, ora para ele, ora para o conjunto, e agradeci, envergonhada. Mas não é ouro verdadeiro, avisou-me ele, não fosse eu pensar o contrário. Comecei a rir-me e tentei, em vão, controlar-me – o gesto dele tinha sido agradável e atencioso mas nunca tinha visto nada tão pindérico.
Amjad Khan. Assim se chama um dos quatro caçadores de talentos dos turistas que se passeiam calma e relaxadamente pelas ruas de Colaba Causeway, a zona mais popular e conhecida de Bombaim.
Tem 32 anos e nasceu a 2 de Agosto de 1977 numa aldeia, cujo nome me escapou, no interior do estado do Gujarat. É hindu, casado e com dois filhos pequenos, os quais visita apenas uma vez por ano. A sua profissão, há nove anos, define-a, tão simplesmente, como “casting agent for foreign models”, não só de filmes, mas de séries, anúncios comerciais, videoclips e dobragem de voz.
Baptizou a sua empresa com o nome de Bollystars e já contratou cerca de dez mil turistas. E portugueses? Pensou durante um minuto. Cerca de cem, não há assim tantos turistas portugueses, retorquiu. Grande parte dos estrangeiros que contrata é de origem inglesa e francesa.
A sua profissão existe por uma razão muito simples: quando a empresa cinematográfica de Bollywood, cujos estúdios se encontram sediados nesta grande metrópole, procura retratar ambientes ocidentais, à parte a caracterização espacial que é facilmente conseguida, é necessária a existência de alguns personagens minimamente representativos como pano de fundo, isto é, figurantes.
E para isso, não é preciso muito. Requisitos? Simplesmente “ser branco”. Homem, mulher, loiro, moreno, olhos acastanhados, esverdeados ou azuis, pequeno ou alto, gordo ou magro, bonito ou feio – nada disto interessa. Basta apenas que o turista em questão esteja disposto a passar doze horas num estúdio, repetir a cena vezes e vezes sem conta e auferir, no final, a módica quantia de 500 rupias, o que equivale aproximadamente a 8 euros. Se tiver a sorte de lhe ser atribuída uma fala, poderá receber 1000 ou 1500 rupias.
Profere ainda que não sabe qual é a sensação de estar diante de uma câmara, nunca esteve, tem vergonha. Disso e das mulheres, acrescenta a gracejar.
Finalmente, interpelei-o se era feliz. Acenou lenta mas afirmativamente, parecendo-me pouco convencido disso, e acrescentou de seguida, “Sou novo” – e carregou o sobrolho na minha direcção, dado que inicialmente lhe atribuí 38 anos e, pelos vistos, não lhe caiu bem – “Além disso, ainda consigo correr atrás dos turistas para fazer o meu trabalho”.
Em O Velho Expresso da Patagónia, Paul Theroux afirma que “viajar oferece grandes oportunidades a um actor amador”. Não querendo desvalorizar a real metáfora e o sentido dado e imaginado pelo autor, para o meu efeito serve perfeitamente – o estrangeiro regressa protagonista de algo, estrela por um dia, meramente para um dia ter conversa ao jantar.
Helena Pimentel
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