Quando há dezenas de milhões de anos as placas tectónicas africana e europeia colidiram, começaram a formar-se grandes maciços montanhosos em cada continente. Durante esses lentos e complexos movimentos tectónicos surgiu das entranhas da Terra o Mulhacén, o maior pico da Península Ibérica que, com 3 482 metros de altitude, lidera os 14 picos da Serra Nevada acima dos 3 mil metros, cobertos de neve durante boa parte do ano. Os degelos da Primavera esculpiram enormes veios nas encostas por onde correm rios e riachos que descem dos cumes a pique.
A Serra Nevada estende-se ao longo de 80 quilómetros pelas províncias andaluzas de Granada e Almería, mas é em território granadino que é mais conhecida. Na escarpada encosta norte, a estação de esqui de Pradollano assume o principal protagonismo; na sul, mais ensolarada e de declive mais suave, as aldeias brancas das Alpujarras encantam pela arquitectura das casas empilhadas umas nas outras nas ladeiras da serra.
Fomos conhecer estas encostas em dois percursos: a norte, percorrendo as colinas da serra a bordo de um todo-o-terreno conduzido por um guia experimentado; a sul, visitando as aldeias de Pampaneira, Bubión e Capileira, nas Alpujarras e seguindo um trilho de montanha durante cinco horas.
SERRA GUIADA
Este ano o Inverno adiantou–se e a neve atingiu cotas muito baixas, logo em Novembro, tornando os caminhos de montanha intransitáveis. Mal o sol apareceu, depois dos primeiros nevões, uma avalancha de pessoas subiu até à estação de esqui de Pradollano, entupindo a estrada da Serra Nevada, que teve de ser encerrada.
Sabíamos que devido à neve seria quase impossível explorar todos os caminhos de montanha, mesmo num todo-o-terreno, mas decidimos deixar-nos guiar por quem conhece os recantos da serra. Marcámos encontro às nove da manhã em Cenes de la Vega, uma povoação a cinco minutos de Granada. A manhã estava cinzenta mas avançámos torcendo para que as nuvens se dissipassem.
Atravessámos Zubia, no noroeste da serra, e subimos a 1 500 metros de altitude até ao miradouro dos Alayos. Caía uma neve miudinha e as montanhas mal se distinguiam entre o nevoeiro. José Manuel, o guia de 42 anos e biólogo de formação, lamentava: «Normalmente daqui vê-se o pico Trevenque (2 079 metros)».
Ladeando a montanha, atravessámos a aldeia de Monachil, para conhecer o desfiladeiro dos Cahorros, um espaço natural muito procurado pelos amantes da escalada desportiva, onde começa uma rota pedestre que segue o curso do rio Monachil. Aventurámo-nos um pouco, subindo uns quantos degraus rochosos até a uma ponte suspensa com 63 metros de comprimento um cenário ideal para um filme de aventuras e regressámos ao jipe.
Castanheiros, nogueiras e outras árvores realçam a paisagem do caminho de El Purche, até ao parque de campismo em plena serra e aventurámo-nos por um sinuoso trilho de montanha coberto de neve, que passa no Convento de San Jerónimo. Apesar da precaução, o jipe começou a resvalar sobre uma placa de gelo. Com dificuldade, conseguimos inverter a marcha.
Ao fim da manhã não se via um palmo à frente do nariz. Suspendemos o percurso, experiência inédita para José Manuel, e ficámos de nos encontrar assim que a temperatura subisse e que as nuvens se dissipassem. O que só viria a acontecer alguns dias depois.
Seguimos então pela estrada de Guejar Sierra até à barragem de Canales, que acumula as águas do degelo na Primavera. José Manuel aproveitava uma breve paragem para enunciar os vários cumes assinalando-os com o dedo: «Vês a colina mais escura que tem pouca neve? É o Picón de Jerez, o 3 mil mais oriental da serra. O mais ocidental é o de Caballo, mas não o vemos daqui.»
Atravessámos Guejar Sierra, conhecida na época árabe como a «Porta da Serra», «uma aldeia com recantos curiosos e com uma cozinha típica bastante boa». Serpenteámos montanha acima, por entre o precipício e olivais onde se apanhavam as últimas azeitonas, até uma paisagem quase lunar coberta de neve, o Collado del Alguacil. A 1 890 metros, contempla-se a vertente norte, do outro lado do vale, e o perfil dos maiores picos da Serra Nevada. O Collado del Alguacil é também um bom ponto de partida para diversas excursões. «Estas colinas são pouco perigosas e com umas raquetes de neve andas como se flutuasses sobre a neve; se fizeres um excursão com esquis de travessia, melhor ainda: sobes com as raquetes e desces com os esquis.» Uma alternativa à confusão de Pradollano: «É como ires a uma praia de Cádis, onde há meia dúzia de pessoas, ou a uma de Marbella, onde não há sitio nem para estender a toalha.»
Voltámos para trás, e seguimos o curso do rio Genil, onde confluem os pequenos rios e riachos que descem a vertente norte da Serra Nevada, até à antiga estação de eléctrico de Maitena, hoje transformada em restaurante. A obra ferroviária data dos anos vinte, promovida pelo duque de San Pedro. Com a linha do eléctrico surgiu a febre do esqui na montanha granadina, mas o fracasso económico do investimento ditou o encerramento da mesma em 1974. Hoje, resta o trilho que atravessa túneis toscos escavados na rocha até ao ponto onde convergem o ribeiro de San Juan e o rio Genil. Aí começa a Vereda da Estrela, um dos caminhos pedestres mais conhecidos, que segue o rio e passa por minas desactivadas, com os picos Mulhacén e Alcazaba como pano de fundo.
Terminámos o dia a 2 550 metros de altitude, numa colina sobre a estação de esqui de Pradollano, a Hoya de la Mora. A colina desce do pico Veleta, a 3 396 metros de altitude, onde foi encontrado gelo fossilizado de um glaciar activo até há cem anos alvo de estudos sobre as mudanças climatéricas no Sul da Europa. O cume do Veleta parece próximo, mas o branco da neve engana; separam-nos, no mínimo, três horas de caminhada por piso resvaladiço, só praticável com material adequado.
ALDEIAS DE POQUEIRA
Em carro próprio descemos à vertente sul da cordilheira granadina, às Alpujarras, região do sopé da serra moldada por vales férteis que descem dos cumes nevados. Ziguezagueámos durante mais de meia hora pela A-4132, até ao Barranco de Poqueira, um recanto da natureza que resguarda três pequenas aldeias brancas escalonadas na encosta, com casas empilhadas umas nas outras.
Pampaneira (1 060 m), Bubión (1 300 m) e Capileira (1 436 m) são tão turísticas como bem preservadas. Naquele pedaço de montanha a arquitectura tradicional das Alpujarras mantém–se intacta. Os tinaos (telheiros) entre as casas formam pequenos corredores que resguardam as ruas; os letreiros das lojas e hotéis são tradicionais placas de madeira pintada, símbolos da identidade destas aldeias.
O Barranco de Poqueira é também destino dos entusiastas da média e alta montanha. Mais de 40 quilómetros sinalizados, distribuídos por quatro senderos (trilhos), permitem viver na pele a dureza destas paisagens silenciosas. Percorremos um deles, não sem antes comer umas Papas a lo Pobre, um prato quente à base de batata, ovo, chouriço e morcela. Aldeia acima, abandonámos Pampaneira até alcançar uma perspectiva dos telhados planos (terraos) das casas.
Após as primeiras centenas de metros, e apesar do frio, o corpo aqueceu, embora o trilho para Bubión tenha uma inclinação suave, por entre castanheiros e nogueiras sem folhas. Dois caminhantes avançavam com passo apressado; um deles cego, guiado pelo cão, ouvia a descrição que o amigo lhe fazia da paisagem. Calculavam andar dez dias pela montanha até chegar a Alméria, na última província do sudeste andaluz. Meia hora mais tarde, atravessando a parte baixa de Bubión, caminhámos barranco abaixo até à Ponte do Molino, um bom sítio para apanhar hinojo, erva selvagem utilizada na cozinha local, que cresce nos socalcos abandonados pela agricultura.
Do outro lado do rio Poqueira, atravessada a ponte, havia que subir a 1 400 metros de altitude até a uma enorme clareira com uma casita ao fundo, o Cortijo de la Bañuela. Por momentos parecia uma tarefa impossível, que o corpo e a mente não iam aguentar, e cada metro percorrido era uma vitória. Seriam quatro e meia da tarde e as ervas geladas estalavam sob as botas.
Depois da subida tortuosa, uma descida a pique por um trilho coberto de ramos, folhas de árvore e cascalho de xisto.
Concluíamos assim as cinco horas de caminhada que tiveram tanto de extenuante como de gratificante. Na memória, ficaram gravadas as inúmeras perspectivas do Barranco de Poqueira, das aldeias e dos cumes brancos da Serra Nevada.