Esta foi, seguramente, a questão que muitos de nós formulamos, quando soubemos que os três jovens influencers detidos e apresentados a juiz para primeiro interrogatório, indiciados de terem violado uma jovem de 16 anos e de divulgarem imagens do crime nas redes sociais, tinham ficado em liberdade.
Como é possível?
De acordo com o veiculado pela comunicação social (pois que desconheço totalmente o inquérito), a prova será evidente, pelo que não se compreenderia a opção por uma medida de coação não privativa da liberdade.
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Diz a doutrina que o bem jurídico protegido com o crime de violação é o da autoconformação da vida e da prática sexual da pessoa, no sentido em que a vítima tem o direito de se determinar em matéria sexual, seja quanto às práticas, ao momento ou ao(s) parceiro(s).
Mas não é só isto.
O crime de violação vai mais além. É atentatório da própria dignidade da pessoa humana, destruindo a vida da vítima.
E é por isto que somos assolados por um sentimento de injustiça, quando ouvimos notícias como aquela.
Contudo, a aplicação de medidas de coação não se move por sentimentos, mas sim por princípios e condições de aplicação muito rigorosos.
Importa, antes do mais, esclarecer que o primeiro interrogatório judicial de arguido detido não é um julgamento, nem tem como finalidade punir os agentes pelos factos que se encontram fortemente indiciados. Dizer-se que os jovens ficaram impunes é prematuro. Teremos de aguardar pela sujeição dos arguidos a julgamento e pela decisão do tribunal. Só nesse momento, caberá ao julgador, quando tiver de escolher e determinar a medida da pena, ter em conta, entre o mais, as necessidades de prevenção geral, ou seja, utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa) e incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva).
Ora, as medidas de coação têm natureza e finalidades completamente diferentes. Visam satisfazer exigências cautelares, exclusivamente processuais, que resultam da verificação de perigos, taxativamente previstos no artigo 204.º do Código de Processo Penal, consubstanciados em factos concretos e objetivos.
A aplicação das medidas de coação deverá, também, obedecer aos princípios previstos nos artigos 191.º a 195.º do Código de Processo Penal e artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, dos quais destacamos, os princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade, bem como o da subsidiariedade de medidas privativas da liberdade (obrigação de permanência na habitação e da prisão preventiva).
Posto isto, o juiz de instrução terá de verificar se, em concreto, existe perigo de fuga (perigo real e iminente que resulta dos factos conhecidos no processo, não poderá ser meramente hipotético); perigo de perturbação da aquisição, conservação ou veracidade da prova no decurso da investigação; ou perigo de, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
Da leitura atenta do artigo 204.º do Código de Processo Penal, claramente percebemos que o conceito de “alarme social” não foi incluído pelo legislador como um dos fundamentos da aplicação das medidas de coação em geral e da prisão preventiva em particular. Este conceito foi afastado da generalidade das legislações processuais penais, e também não integra a legislação nacional desde que, em 1 de janeiro de 1988, entrou em vigor o novo Código de Processo Penal.
Na verdade, este conceito é vago, impreciso, manipulável, desconforme, portanto, com o direito processual penal de um Estado de Direito Democrático, enquanto fundamento de aplicação das medidas de coação, pois desvirtua a sua natureza cautelar e processual.
Muitas vezes, alude-se a este conceito para fazer referência ao perigo de “perturbação da ordem e tranquilidade públicas”.
Explicando: o que se pretende não é acalmar a população, mas sim acautelar um perigo, em concreto, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas devido a um previsível comportamento futuro do arguido.
Assim, tal perigo deve ser entendido como reportando-se ao previsível comportamento do arguido e não ao crime por ele indiciariamente cometido, nem à reação que o mesmo pudesse gerar na comunidade.
As medidas de coação não visam punir os arguidos que ainda nem sequer foram formalmente acusados, não visam prevenir a prática de crimes e muito menos servir de um exemplo para terceiros.
Qualquer finalidade de natureza retributiva, preventiva (ou mesmo de proteção do arguido) é considerada ilegítima e, portanto, proibida.
Aguardemos que se faça justiça no julgamento!
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
Mario Vargas Llosa, escritor e romancista peruano-espanhol, morreu este domingo, aos 89 anos, em Lima, no Peru, onde vivia desde 2022. “Com profunda dor, tornamos público que o nosso pai, Mario Vargas Llosa, faleceu hoje em Lima, rodeado pela sua família e em paz”, pode ler-se numa publicação feita pelos filhos nas redes sociais.
Nascido em 1936, Jorge Mario Pedro Vargas Llosa venceu o Prémio Nobel da Literatura em 2010, sendo um dos nomes mais importantes das letras latino-americanas. Ao longo da sua carreira foi também jornalista, político, ensaísta e professor universitário.
De acordo com a publicação, as cerimónias fúnebres serão realizadas “de acordo com as suas instruções” do romancista, pelo que “não haverá cerimónia pública”. “A sua partida entristecerá os seus familiares, os seus amigos e os seus leitores em todo o mundo, mas esperamos que encontrem consolo, como nós, no facto de ter tido uma vida longa, múltipla e frutífera, e de deixar atrás de si uma obra que lhe sobreviverá”, lê-se.
Este Zenscreen Smart MS27UC não é apenas mais um monitor e isso nota-se logo pela qualidade de construção. A base em metal é elegante e transmite uma sensação de robustez. A estrutura de suporte garante uma estabilidade muito boa e mesmo se a secretária levar um ‘toque’, o monitor mantém-se firme. Além disso, destaca-se pela facilidade de montagem, uma vez que não é necessário utilizar chaves ou parafusos, e pela ergonomia que permite o posicionamento do monitor em ângulos distintos.
Com apenas dois encaixes, é possível fixar o suporte à traseira do monitor de forma simples e rápida. A base inclui ainda um orifício para a passagem dos cabos, permitindo uma maior organização na secretária. Na zona inferior da traseira e do ecrã, encontra-se uma barra revestida por tecido, que não só melhora a experiência visual, como também confere um toque de sofisticação ao design.
Todos aqueles que passam grande parte do dia em frente a um ecrã sabem a importância de ter um monitor de qualidade de modo a reduzir a fadiga ocular. A Asus tem esta premissa em conta, e este painel com tecnologia LED é prova disso mesmo. Embora não se trate de um ecrã OLED, isso não é necessariamente um ponto negativo. Por exemplo, não verificamos qualquer tipo de reflexo, um problema comum nos ecrãs OLED.
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Veja imagens do Asus Zenscreen Smart MS27UC abaixo:
O nível de brilho também se revelou convincente, uma vez que testámos este monitor junto de uma janela, numa sala com muita luz natural, e nunca sentimos dificuldades na visualização. No entanto, temos pena que a taxa de atualização seja de apenas 60 Hz, um valor curto para os dias que correm, pois não são os gamers que gostam de tirar partido de uma fluidez visual superior.
Google TV integrado
Os serviços da Google estão cada vez mais presentes no nosso dia a dia, seja através do Gmail, do Google Photos, do Google Maps ou até mesmo do Google Docs (onde, confessamos, passamos grande parte do nosso dia de trabalho). E com este monitor temos um pouco mais de Google na nossa vida, pois conta com Google TV, o que significa que todo o sistema operativo foi desenvolvido pela gigante norte-americana. E isso é algo que apreciamos, não só pela facilidade de navegação nos menus, mas também pela configuração simples, que se integra perfeitamente com a nossa conta do Gmail e com os nossos dispositivos, nomeadamente o smartphone.
Além disso, este monitor é compatível com mais de dez mil aplicações e inclui a funcionalidade Google Cast, que permite transmitir conteúdos do smartphone diretamente para o ecrã do Zenscreen. Podemos ainda tirar partido da funcionalidade MultiView, que possibilita dividir o ecrã para exibir diferentes conteúdos em simultâneo, tornando a experiência ainda mais versátil.
A configuração e a navegação nos menus do monitor são simples e intuitivas. Na parte inferior, mesmo por baixo do logótipo da Asus, encontramos três botões físicos que permitem aceder a praticamente todas as funções disponíveis. Com eles, podemos trocar de fonte de imagem, ajustar o nível de brilho ou aceder às definições gerais. O botão da direita é dedicado à alimentação energética (power).
No entanto, a Asus inclui também um comando na embalagem, que consideramos a forma mais prática de navegar no monitor. O comando dispõe de vários botões de acesso rápido a aplicações como Netflix, YouTube e Amazon Prime Video. Além disso, conta com um botão para ativar o microfone, permitindo utilizar comandos de voz. Nos nossos testes, o reconhecimento foi eficaz – tudo o que dissemos foi corretamente interpretado e pesquisado no YouTube.
Conectividade e qualidade sonora
A boa conectividade é um dos pontos fortes deste Zenscreen da Asus, uma vez que disponibiliza várias opções. Dispõe de duas portas USB-A e uma USB-C, sendo esta última especialmente relevante, dado que muitos smartphones e portáteis atuais são compatíveis apenas com este tipo de ligação. Além disso, encontramos uma porta HDMI 2.0, essencial para ligar um computador, e ainda uma DisplayPort. Por fim, há também uma saída de áudio tradicional, que permite a ligação de auscultadores – um detalhe que apreciámos, já que muitas marcas têm vindo a abdicar desta ligação noutros produtos que testámos recentemente.
O som é também um fator relevante, e, neste aspeto, a Asus estabeleceu uma parceria com a Harman Kardon. Com dois altifalantes na zona inferior, o áudio apresenta-se convincente e com uma excelente nitidez. Existem dois modos de aprimoramento de som: o processamento Dolby e o da Harman Kardon. Preferimos este último, pois garante uma maior clareza.
Veredicto
Este monitor oferece funcionalidades práticas para o dia a dia e destaca-se pela boa qualidade de construção. A integração do Google TV no sistema operativo contribui para uma experiência de utilização mais intuitiva e versátil. No entanto, a verdade é que, por um valor mais acessível, é possível encontrar no mercado monitores com melhor qualidade de imagem.
Tome Nota Asus Zenscreen Smart MS27UC – €349,99
Cores Bom Brilho Bom Ergonomia MuitoBom Menus Muito bom
Características Ecrã LED 27”, 3840x2160p, 16:9, 60 Hz ○ Espaço de cor: sRGB 99% ○ Brilho máximo 400 cd/m2 ○ Contraste: 100.000.000:1 ○ Tempo resposta: 5 ms • Google TV, Android 11, Wifi ○ Controlo por voz • 1x USB-C (DP, 90 W), 2x USB-A (2.0), 1x DisplayPort (1.4), 1x HDMI (2.0), áudio 3,5 mm ○ Colunas: 2x 5 W ○ Dimensões: 61.35×50.91×17.0 mm ○ Peso: 6 kg
Que bom seria começar a semana santa na paz do senhor, se ao menos o mundo fosse um lugar menos estranho para se viver! As boas notícias encontra-as quem tem fé no emblema do leão, com o Sporting a alcançar o topo da classificação da I Liga, depois de o Benfica empatar em casa frente ao Arouca.
Também há boas novas no streaming com a estreia de mais episódios de duas excelentes séries: The Last of Us (hoje, na Max) e de Handmaid’s Tale (no passado dia 8, no TVCine+). Embora a primeira seja sobre uma América apocalíptica, a braços com uma pandemia, e a segunda uma distopia numa América ditatorial, onde as mulheres ou são fadas do lar ou animais reprodutores… Talvez não proporcionem o higiénico escape à realidade dos nossos dias.
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No espaço de uma semana, as bolsas no mundo inteiro perderam quase todos os ganhos que tinham conseguido amealhar ao longo de um ano. Em Nova Iorque, as empresas cotadas perderam cinco biliões de dólares entre os dias 2 e 4 de abril, logo após o anúncio do pacote de tarifas de Donald Trump, o que, segundo a MarketWatch, é “a maior desvalorização de sempre da bolsa em apenas dois dias”.
Se recuarmos ao dia da tomada de posse de Donald Trump, onde se ficou a saber dos planos agressivos para as tarifas a impor ao mundo, este valor praticamente duplica, atingindo os 9,6 biliões de dólares.
O primeiro relatório de análise de mercados do economista-chefe da JPMorgan, Bruce Kasman, após a decisão de Trump chamava-se simplesmente Haverá Sangue, alertando para as consequências desastrosas que as tarifas iriam criar na economia mundial. Segundo este especialista, a decisão de Trump aumentou a probabilidade de o mundo entrar em recessão de 40% para 60%.
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A JPMorgan admite que as novas tarifas combinadas com as que já tinham sido anunciadas anteriormente iriam elevar a taxa média dos impostos nos EUA “em aproximadamente 22 pontos percentuais”, o equivalente a cerca de 2,4% do valor do PIB norte-americano.
“Com esta magnitude, este será o maior aumento de impostos desde a II Guerra Mundial”, diz a JPMorgan.
Outro dos grandes bancos americanos, o Goldman Sachs, salienta que a “combinação de tarifas mais elevadas, uma maior incerteza política e o declínio da confiança empresarial e do consumidor” podem aumentar o risco de recessão.
Um dos maiores gestores de fundos do mundo, Bill Ackman, CEO da Pershing Square, defensor declarado de Trump, escreveu nas redes sociais que “ao impor tarifas massivas e desproporcionais aos nossos amigos e inimigos e, assim, lançar uma guerra económica global contra o mundo inteiro de uma só vez, estamos no processo de destruir a confiança no nosso país, não só como parceiro comercial, mas também como um lugar para fazer negócios e como um mercado para investir capital”.
E foi ainda mais longe. Na mesma nota, Ackman diz que estas tarifas são o equivalente a lançar uma “guerra nuclear económica contra todos os países do mundo”.
Negociações à vista?
Apesar deste descalabro financeiro e do impacto que as tarifas irão ter no consumo interno norte-americano, a Administração Trump mantém-se inflexível na sua aplicação e não dá sinais de recuar.
Um pouco por todo o planeta, os chefes de Estado e de governo juntam as suas equipas económicas para estudar formas de retaliar ou negociar com a Administração Trump. Afinal, ninguém quer perder as exportações para um dos mercados mais ricos do mundo.
No início desta semana, os responsáveis da União Europeia reuniram-se no Luxemburgo para estudar formas de lidar com este problema.
No final da reunião, a líder da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, falou diretamente para a Administração Trump, admitindo que “a Europa está sempre pronta para um bom acordo. Mas também estamos preparados para responder através de contramedidas e defender os nossos interesses”.
No mesmo discurso, propôs o fim de todos os direitos aduaneiros sobre os produtos industriais comercializados entre a União Europeia e os EUA. “Estamos prontos para negociar com os EUA. Propusemos tarifas zero por zero para os produtos industriais, tal como fizemos com muitos outros países que são nossos parceiros comerciais.” Esta foi uma proposta que a UE já tinha feito para o setor automóvel – e que agora quer alargar a todos os produtos industriais –, que na altura não foi bem-aceite por Washington.
A líder europeia salientou ainda que a preferência é a de ter uma “solução através da via negocial”, mas admitiu que irá usar todos os instrumentos à sua disposição para retaliar caso “seja necessário”.
Alguns analistas admitem que a União Europeia tem ainda como trunfo aplicar tarifas semelhantes ou outros instrumentos às importações de serviços dos EUA para a União Europeia. A equação de Trump para criar estas tarifas baseou-se apenas no comércio de bens, no qual os EUA são deficitários em relação à Europa. Contudo, no comércio de serviços, a Europa é deficitária em relação aos EUA, o que poderia criar margem para desenvolver tarifas semelhantes.
A decisão de Trump foi anunciada no dia 2 de abril e a sua entrada em vigor foi agendada para o dia 9 do mesmo mês. Perante esta decisão, todos os produtos feitos na União Europeia pagarão uma taxa de 20% sempre que entrarem nos EUA. No total, serão quase 400 mil milhões de euros de produtos que irão ser achados, o que poderá gerar uma receita de 80 mil milhões para os cofres norte-americanos.
Mas estas taxas poderão criar um outro problema para a Europa. Alguns países asiáticos que vendem muito para os EUA enfrentarão tarifas acima dos 40%, o que poderá inviabilizar a venda desses produtos no mercado norte-americano. Segundo alguns analistas, esse excedente poderá ser canalizado para a União Europeia, criando fatores de desestabilização no mercado.
Para proteger a Europa destas alterações, Ursula von der Leyen disse que iria ser criado um grupo de trabalho só para estudar e criar medidas específicas para este novo fenómeno.
Segundo um comunicado da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen apelou ao governo chinês para que não avance com retaliações, pelo menos, para já, enfatizando “a responsabilidade da Europa e da China, como dois dos maiores mercados do mundo, de apoiar um sistema de comércio reformado forte, livre, justo e baseado em condições equitativas”, segundo um comunicado do seu gabinete.
Mas Xi Jinping parece ter outras intenções.
Ir à luta
A China já prometeu que irá “lutar até ao fim” nesta guerra comercial com os EUA. Depois de os EUA terem anunciado o pacote total de tarifas sobre os produtos importados de quase 180 países e territórios, a China reagiu de imediato e estabeleceu tarifas retaliatórias sobre uma boa parte dos produtos que importa dos EUA. Mas não se ficou por aqui. Criou novas regras para as exportações de metais raros para aquele país e lançou várias investigações antimonopólio sobre algumas empresas americanas que atuam na China, como a Google.
E para fazer face ao impacto que as exportadoras chinesas irão sentir nesta guerra comercial, o governo de Xi Jinping está apostado em desvalorizar o yuan, de modo a tornar os produtos exportados da China mais atrativos em termos de preço. Além disso, irá apoiar as empresas exportadoras chinesas que venham a ser mais afetadas por estas medidas, através de um programa de compra de ações em bolsa para que estas não percam valor de mercado e possam manter-se em atividade.
E, no meio de todas estas medidas, o líder chinês anunciou que irá criar uma taxa retaliatória de 34% para todos os bens americanos que entrem na China.
Assim que foi conhecida a retaliação por parte do governo chinês, Donald Trump fez uma nova ameaça e anunciou que se as tarifas chinesas entrassem em vigor, os EUA criariam uma nova tarifa de 50% sobre os produtos importados da China.
“Estamos a assistir a um braço de ferro puro e simples. Já não estamos numa lógica de negociação entre dois países”, disse Mary Lovely, especialista em comércio internacional do Peterson Institute, numa entrevista ao programa Newshour, da BBC.
Na opinião desta professora universitária, a China “pode estar disposta a suportar o impacto das tarifas”, apesar da desaceleração da sua economia, em vez “de capitular ao que eles acreditam ser uma agressão dos EUA”.
Alguns especialistas acreditam que os dois países ainda poderão sentar-se à mesa das negociações para resolver o problema de forma diplomática. Aliás, desde que Donald Trump regressou à Casa Branca ainda não houve contactos entre os líderes dos dois países, apesar de Pequim já ter manifestado o seu interesse em conversar com a nova Administração norte-americana.
Efeitos colaterais
Muitas das taxas que entrarão em vigor superam os 40% e poderão afetar gravemente países como o Vietname ou o Camboja, que terão tarifas de 46% e 49%, respetivamente.
Estes dois países são dos maiores exportadores de roupa para os EUA, o que tornará o preço destes produtos bem mais elevado.
Mas não só. O Vietname, por exemplo, é um dos grandes produtores da Apple, o smartphone com mais sucesso nos EUA. Com as novas tarifas, estes aparelhos passarão a pagar um imposto de 46% na alfândega, atirando o preço final dos iPhones para valores um pouco incomportáveis para o comum do cidadão americano.
E toda esta guerra comercial está a evoluir de forma muito rápida e sem precedentes, o que deixa empresas, governantes e investidores com quase nenhum tempo para se ajustarem à nova realidade.
Para Trump, estas medidas irão trazer de volta as fábricas aos EUA, criando mais empregos. Mas esta é uma opinião que não é muito consensual entre economistas, mesmo os que estão no espectro político do Presidente norte-americano.
Jared Bernstein, presidente do Conselho de Assessores Económicos da Casa Branca no governo do ex-Presidente Joe Biden, chamou à promessa de reindustrialização de Trump “mito”, dizendo que “se os investidores estiverem de braços cruzados por causa da incerteza gerada por essa agenda tarifária, eles não vão investir”.
“Trump diz que haverá dor agora e ganho depois, mas receio que haja dor agora e mais dor depois”, rematou Jared Bernstein.
Já Stephen Moore, conselheiro económico de Trump no primeiro mandato, admitiu que o Presidente “está certo” quando diz que muitos países cobram tarifas mais altas sobre produtos dos EUA do que os EUA cobram sobre os seus, mas não está “convencido de que uma guerra comercial levará a um aumento de empregos na indústria nacional”.
Estratégias alternativas
Enquanto não se sabe o que realmente irá acontecer nem como as negociações entre os vários países poderão criar uma nova solução para esta crise comercial, muitas das grandes empresas exportadoras começam já a desenvolver estratégias que lhes permitam continuar a vender para aquele mercado sem serem tão penalizadas pelas tarifas de Trump.
Os especialistas admitem que isso é possível, mas são procedimentos que acarretam riscos e poderão ser bastante complicados de fazer para empresas de menor dimensão. A ideia é reduzir a componente do preço dos produtos que fica sujeita a pagar tarifas.
Em declarações ao Financial Times, Mathew Mermigousis, analista da BDO especializado em taxas alfandegárias, deu como exemplo as empresas distribuidoras de bebidas alcoólicas que, além dos produtos, fornecem também, na maioria das vezes, apoio para a sua promoção.
“Perante as regras alfandegárias, a publicidade e a promoção não são custos tributáveis. Se a empresa conseguir criar um pagamento desse serviço em separado, consegue reduzir o valor tributável, mitigando o impacto das novas tarifas”, explicou.
E este exemplo pode servir para muitos outros setores. Outra ideia foi dada pela consultora EY numa reunião com clientes realizada na passada sexta-feira, e que envolve a divisão de royalties pelo uso da propriedade intelectual de produto que está a ser exportado, que seriam pagos a uma empresa separada do fornecedor desse produto.
Alguns vão mais longe e admitem a criação de filiais em países onde as taxas não são tão elevadas para passarem a exportar para os EUA a partir dessa nova empresa, que serviria apenas como um ponto de passagem da mercadoria, uma prática que muitas multinacionais já utilizam para reduzir os custos das vendas para determinados mercados.
Daqui a sete dias, o presidente Donald Trump completará os seus 100 dias desta sequela na Casa Branca. Em 100 dias, conseguiu superar todos os idiotas que já ocuparam o cargo. E foram muitos. Os idiotas. Mas este é um Hiperidiota. Para se ser presidente dos EUA, os candidatos deveriam passar por três testes absolutamente imprescindíveis e decisivos para a sua qualificação.
1. O Polígrafo. O verdadeiro. Aquele que ele agora quer aplicar a várias agências federais. Até poderia passar, sendo o «moron» que é. Mas devia ser obrigado a fazê-lo, para que se percebesse, de uma vez por todas, a sua relação com Putin, o seu fascínio em dar más notícias aos seus próprios cidadãos e a outros países. Aí perceber-se-iam, de imediato, as ligações e truques deste verdadeiro trapezista.
2. O QI. O verdadeiro. Administrado por profissionais. Aquele que finalmente revelaria com quem estamos a lidar. O teste de QI foi criado para detetar a idiotice, e não a genialidade — mas uma coisa deriva da outra. Tem 98, que é a média do seu país? Tem 102, como a média alemã e italiana? Ou fica-se pelos 70/80 de alguns países? Este teste deveria ser obrigatório e realizado no momento em que se declaram candidatos. A propósito, o nosso QI médio é de 97, mas já foi muito pior. Convém explicar que este teste nada tem a ver com qualificações académicas ou cargos de sucesso. Serve apenas para sabermos em que patamar estaria o senhor Trump. Claro que também deveriam tê-lo feito a Biden, Kamala e JD Vance.
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3. O Teste Americano. Sim, esse mesmo. Aquele que se aplicam nas universidades. 25 perguntas para demonstrar conhecimentos globais: segurança nacional, economia e finanças, relações internacionais, tarifas, o papel dos EUA no mundo, relações com os seus aliados, e só mais umas perguntinhas com a ajuda do mapa do mundo: que país é este, aquele ali longe, e este aqui no nosso “quintal” (salvo seja). Podemos adivinhar o resultado, mas dificilmente teria nota positiva. Os que governam o mundo deveriam ser os melhores — mas isso, infelizmente, não passa de um mito.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
Aos 73 anos, Nuno Crato já deixou as lides do ensino, por onde andou durante quase toda a sua vida adulta, mas continua interessado em refletir sobre Educação e Ciência, áreas que tutelou como ministro independente no governo de Pedro Passos Coelho (2011-2015). No seu mais recente livro, Aprender (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 145 págs., €4,5), o matemático aborda a necessidade de centrar o ensino no papel orientador do professor e que não dispensa as avaliações no fim de cada ciclo, não só para medir o pulso ao sistema mas também para incentivar todos os que o integram a melhorarem. Comecemos já por aí.
É um acérrimo defensor das provas de fim de ciclo nacionais. Porquê? As escolas e os professores trabalham para que, ao fim do primeiro ciclo, do segundo, do terceiro ou do secundário, os alunos tenham o domínio de um conjunto de matérias. No primeiro ciclo, por exemplo, alguns professores podem ir mais depressa no primeiro e segundo anos e ir mais devagar no terceiro e quarto. Do ponto de vista nacional, o importante é que todos os alunos, ao quarto ano de escolaridade, tenham adquirido o mesmo conjunto de conhecimentos e de capacidades. Daí ser a altura em que devemos avaliar. É indispensável saber como está o ensino para podermos corrigir o que está mal e melhorar. Durante a pandemia e mesmo depois, não tendo havido as provas necessárias, estivemos cegos perante a realidade. Até dois meses antes de aparecerem os resultados do PISA [Programa Internacional de Avaliação de Alunos, cujos resultados mais recentes foram divulgados em dezembro de 2023], o ministério achava que estava tudo bem. Quando surgiram, verificou-se que não estávamos nada bem.
A simples existência da avaliação contribui para a aprendizagem? A avaliação no fim dos ciclos deve ser sumativa, no sentido de dar um retrato total do que se sabe, mas também funciona como um incentivo para todos melhorarem. Há investigação muito rigorosa que mostra que, quando alunos e professores sabem que vai haver uma avaliação no final de um ciclo, ainda que não conte para a nota, aprimoram-se e levam mais a sério o trabalho na sala de aula.
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O peso dessas notas, quando elas contam para a avaliação final, não pode provocar injustiças em alunos que têm um dia mau ou se sair nos exames nacionais precisamente aquela matéria que não dominam tão bem? Esse é um argumento muito falacioso, porque as notas não estão concentradas nesse momento dito decisivo. Um aluno do terceiro ciclo, por exemplo, tem três anos para estudar determinadas matérias, e o peso da avaliação interna é que é preponderante na nota final. O exame nacional não vale mais de 30%, e o aluno pode fazer uma segunda chamada, tem opções de melhoria de nota. Se estiver doente, pode apresentar um atestado médico e fazer o exame noutra altura. Além de que vai ser avaliado em duas disciplinas, pelo menos, portanto é preciso muito azar para que as coisas lhe corram muito mal em ambas, se conhecer razoavelmente bem as matérias. Quando as introduzimos no quarto ano de escolaridade, em 2013, o peso era minúsculo, de 25%, mas foi o suficiente para mudar a mentalidade de professores, pais e alunos, no sentido de que era necessário estudar mais. O que me preocupa não é este ou aquele caso específico, mas sim o País como um todo. Que todos os jovens tentem estudar mais, saber mais e estar mais bem preparados. A avaliação põe em causa alunos, professores, escolas e ministério, toda a gente envolvida no ensino. Se a evitamos, ficamos todos descansados e isso é muito negativo.
Um dos argumentos desfavoráveis é que essa avaliação nacional aumenta o número que alunos que não passam de ano. O grande peso ideológico contra a avaliação é o de evitar saber se o País está a avançar ou não. O efeito nas reprovações dos alunos é muito pequeno e só se verificou no primeiro ano de aplicação da medida. Nos anos seguintes, a retenção diminuiu para os níveis anteriores ou ainda mais baixos. O que significa que houve ali um choque, mas, depois, todo o sistema melhorou. Porque passa mais gente e passa mais gente sabendo, que é aquilo que é importante.
Repetir um ano pode ser benéfico? Há estudos com conclusões ligeiramente diferentes, mas há muitos que apontam para o benefício do estudante ficar retido um ano, caso não esteja preparado para passar. A reprovação é o último recurso e devemos fazer o possível para que não aconteça, proporcionando um apoio especial aos alunos para alcançarem os patamares mínimos necessários. Desde 2016, o que tem acontecido é deixar os jovens passar de ano, mesmo que não estejam preparados. Isso prejudica todos.
Uma outra crítica às provas nacionais é que tendem a deixar para trás alunos de meios mais desfavorecidos. Percebo o argumento e respondo com um exemplo: amanhã estamos doentes, queremos ser tratados por um médico que não sabe bem o que está a fazer, mas que passou só por vir de um meio desfavorecido, ou queremos ser tratados por um médico que sabe o que está a fazer. Pelo facto de um jovem vir de um meio desfavorecido, não podemos desculpar-lhe a ignorância. O que temos de fazer é ajudá-lo a ultrapassar essa ignorância. A ideia paternalista de que devemos ter por ele uma particular condescendência não o ajuda, pelo contrário. Devemos ter uma exigência que ajuda todos e dar apoios especiais aos jovens que mais precisam. A partir do momento em que surgiram as avaliações internacionais, como o PISA ou o TIMSS [avalia conhecimentos em Matemática e Ciências], a conclusão é que, em média, sempre que foi introduzida uma avaliação nacional, os resultados do País melhoraram. Sempre que foi retirada essa avaliação, os resultados pioraram.
Testar os conhecimentos com frequência é em si mesmo um método de aprendizagem? Esse é outro tema muito importante, a avaliação formativa, aquilo que é feito nas aulas. É uma das descobertas científicas mais importantes das últimas décadas, o chamado efeito de teste, que é a melhoria do conhecimento pelo facto de esse conhecimento ser testado. Ao contrário de um computador, que responde à mesma pergunta sempre da mesma forma porque a sua memória não muda, no cérebro humano não é isso que se passa. Cada vez que é confrontado com uma pergunta, o cérebro humano tem de buscar a informação e tem de a reinterpretar para a expor. Todo esse processo reforça o conhecimento.
Aquela ideia de que os alunos que estudam na véspera dos testes não absorvem o conhecimento e esquecem tudo no dia a seguir é um mito? Não é um mito completo, mas é uma má estratégia porque habitualmente não funciona, se os testes forem bem concebidos. A verdadeira aprendizagem não é decorar meia dúzia de factos dispersos, é integrar conhecimentos noutros conhecimentos. A verdadeira aprendizagem não é decorar a data da revolução republicana em Portugal, que também é importante saber, mas conseguir relacionar isso com o que aconteceu, com quem era o rei, porque é que estavam contra ele, qual era o regime, e isso não se decora na véspera. É um conhecimento que se vai adquirindo. A capacidade de ir revendo a matéria e ir integrando as novas informações naquilo que já se sabe é que é a boa preparação para a vida, e para os exames também.
Porque prefere o ensino explícito da matéria em sala de aula a incentivar os alunos a procurarem, por si próprios, o conhecimento? No fundo, porque é muito mais eficiente. O sistema de aprendizagem pela descoberta não o é. Temos os jovens na escola durante 12 anos, ou mais no caso de continuarem os estudos, e queremos que aprendam muito do essencial que a Humanidade construiu ao longo de 20, 30 ou 40 séculos. Agora, também defendo no livro que as duas perspetivas não são antagónicas, no sentido em que, quando somos introduzidos numa determinada matéria, o ensino explícito pelo professor é fundamental, mas, a partir de certo momento, quando o aluno já domina o essencial, é bom confrontá-lo com desafios, ou seja, os projetos também são bons, mas não todos os dias.
Acabam por ser outra forma de testar e avaliar os conhecimentos dos alunos? Claro. O que não funciona é a ideia de que os alunos estão entregues a si próprios para descobrir as coisas, uma ideia completamente falaciosa, mas que está na cabeça de muitos pedagogos, a quem eu chamo de românticos, ou construtivistas.
Neste momento, a educação em Portugal está mais virada para esse ensino romântico, mais centrado no aluno? Não sei responder, porque não há dados. Que o discurso oficial e muitos documentos do Ministério da Educação vão nesse sentido, é verdade. Que as escolas de formação de professores, tanto politécnicas como universitárias, vão nesse sentido, não tenho dúvidas. Agora, se isso na realidade se passa, ninguém sabe. Duvido, porque a sua aplicação é quase impossível. Um professor pode ter sido treinado ou doutrinado na pedagogia da descoberta e, quando chega à sala de aula e percebe que não funciona, trata de arranjar maneira de ensinar através do ensino explícito. De qualquer forma, o que está em causa é como esta pedagogia desorganiza o nosso sistema de ensino.
Está na base da desvalorização das avaliações nacionais, por exemplo? Exatamente.
A cultura é algo que nos vem a servir, mais cedo ou mais tarde. Serve para sermos cultos, para nos inserirmos na sociedade, para termos conversas mais civilizadas, para termos empregos melhores
Em que medida contribuiu o seu professor Rómulo de Carvalho, o poeta que todos conhecemos pelo pseudónimo de António Gedeão, para essa sua visão do ensino? Contribuiu muito porque ele era uma pessoa muito organizada, mas ao mesmo tempo muito estimulante. Inconscientemente, assimilei muito da sua maneira de ser e de ensinar. Anos mais tarde, no centenário do seu nascimento [2007], quando fui ler os seus escritos pedagógicos, percebi que ele era muito a favor de um ensino orientado e muito dirigido pelo professor, mas ao mesmo tempo um ensino muito estimulante. Ele era completamente contra esta ideia do ensino centrado no aluno, que não faz sentido absolutamente nenhum.
Antes de serem cientistas, os alunos têm de construir as fundações do conhecimento com a tal orientação do professor? Não é possível ser cientista sem ter passado por uma formação muito aturada, de muitos anos de trabalho. Às vezes, pensa-se que os alunos são pequenos cientistas e não é verdade, porque a psicologia cognitiva mostra que os alunos têm esquemas de pensamento muito diferentes dos esquemas de pensamento dos cientistas. O professor é alguém que está ali para os ajudar a avançar.
Quais as características principais de um bom professor? Um bom professor tem de dominar bem a matéria que ensina, porque se tiver hesitações nunca será eficiente. Tem de ser organizado a ensinar, de forma a que os alunos percebam como as coisas estão a evoluir. E tem de ser sensível aos alunos, respeitá-los e dialogar com eles, para os desafiar a irem mais longe, sempre com o currículo em mente. Na formação atual de professores, aproveito para acrescentar, seria bom modernizar os conhecimentos de psicologia e pedagogia.
A pandemia ajudou a reforçar as suas convicções sobre o papel central do professor? A pandemia trouxe uma experiência indesejada, mas que mostrou que o ensino pelo professor em sala de aula é muito mais eficiente do que o ensino online. Não vale a pena estar a citar nomes, mas lembro-me que houve pessoas a defenderem em artigos nos jornais que seria uma fantástica oportunidade para os alunos tomarem em mãos o seu próprio conhecimento. Verificou-se que foi um desastre.
Até que idade dos alunos os professores têm de oferecer essa orientação? Na universidade, já caberá uma iniciativa e responsabilidade maior ao aluno… Com certeza. À medida que vão crescendo, os alunos têm maior responsabilidade, mas o ensino dirigido pelo professor é sempre mais eficiente. Vamos supor que quero aprender a falar chinês. Já tenho mais de 70 anos, mas não vou aprender pela descoberta. Tudo depende da etapa em que estamos. Em relação à língua chinesa, estou no ponto zero. Como não sei dizer uma palavra em mandarim, preciso de um ensino dirigido. Depois, a partir de certa altura, se calhar, já não precisarei. Há uns anos, estudei italiano. Nos primeiros tempos, tive um professor que me dirigia e, depois, comecei a escrever e a ler e tornei-me autónomo.
Talvez seja demasiado simplista, mas o que está em causa não é aprender primeiro a teoria antes de passar à prática? Eu não poria as coisas assim. Depende. Aprendemos a andar com a prática, não é com conhecimento teórico. Também nascemos completamente preparados para falar, e o simples contacto com um meio falante, com uma família, com a rua, leva-nos a conseguir falar. Já para aprender a ler, não basta mergulhar numa biblioteca. Não é biologicamente primário, é cultural, tal como a maioria das coisas que se passam na escola. Há uma transmissão de conhecimentos que não é feita automaticamente.
É um erro aprender só o que nos poderá vir a ser útil no futuro? É, desde logo porque não sabemos o que nos vai ser útil ou não. Só descobriremos mais tarde. “Ah, para que serve ler Camões?” A cultura é algo que nos vem a servir, mais cedo ou mais tarde e sem sabermos como. Serve para sermos cultos, para nos inserirmos na sociedade, para termos conversas mais civilizadas, para termos empregos melhores, etc.
Que impacto tiveram a Internet, a Wikipédia ou os motores de busca na procura e assimilação do conhecimento? É muito difícil responder. Diria que são instrumentos que nos ajudam muito a conhecer o mundo, e de forma imediata, e nesse sentido são fantásticos. O impacto negativo vem da ilusão de que a Internet pode substituir a escola e de que a tecnologia pode substituir o professor. Precisamente, porque na Internet as informações aparecem dispersas. Quanto mais conhecimentos tivermos, melhor entendemos o que a Internet nos responde. Se dissermos a um francês em que data foi a Batalha de Aljubarrota, ele fica na mesma. O que vamos buscar a partir de uma informação depende da cultura que tivermos.
Os resultados dos alunos portugueses nos testes internacionais refletem a capacidade de interligar conhecimentos? Eu julgo que sim, mas são testes diferentes. O PISA é um teste de competências, mas é muito curioso que os países que têm melhores resultados são os que têm o ensino dirigido por conteúdos, ou seja, por conhecimento.
Porque acha que isso acontece? Porque as competências derivam do conhecimento. Como dizia um físico famoso, não há nada mais prático do que uma boa teoria. O importante é perceber as coisas. Quando se entendem, conseguimos desenvolver a sua aplicação. E os melhores países no PISA são sempre os que não têm o ensino orientado por competências, mas sim pelo conhecimento. Já o TIMSS é diferente, muito ligado ao currículo, no caso ao conhecimento da matemática e das ciências.
A sua inclinação para quantificar e medir conhecimentos não advirá também do facto de ser, afinal de contas, um matemático? Acredito que sim, mas há muita gente da área da filosofia ou da literatura que também é a favor da avaliação de conhecimentos e da sua quantificação. A quantificação é quase universal na Ciência. Claro que há coisas que não se quantificam, mas o quantificar ajuda muito a progredir e a saber em que pontos as coisas estão, até por comparação com outros países. Infelizmente, em Portugal, neste momento, os únicos instrumentos fiáveis são os inquéritos internacionais, porque os exames nacionais foram destruídos e o que não foi destruído tem tido um grau de rigor e de ambição muito variáveis.
O Governo ainda em funções, embora demissionário, reintroduziu neste ano letivo provas nacionais no final dos dois primeiros ciclos, embora não contem para a nota final. É uma boa medida? É uma medida que vai no bom sentido, mas ainda falta muito.
O quê? Falta que essas provas sejam muito claramente associadas ao currículo, falta que tenham algum peso no percurso escolar dos alunos e falta que sejam consistentes, teremos de ver como vão ser feitas.
Quando fala do currículo, refere-se à matéria que tem de ser dada nas aulas. Sim, à matéria que deveria ser dada e assimilada pelos jovens e que às vezes não é. Noutras vezes, saem perguntas nessas provas que não estão tão ligadas ao currículo como deveriam estar e que não estão tão associadas ao nível de exigência curricular que se deve ter.
Quantas vezes já lhe disseram que tem uma visão antiquada da educação? Por vezes, as pessoas dizem ou insinuam isso, mas é exatamente o contrário. Porque esta visão romântica da educação, do ensino centrado no aluno, do ensino pela descoberta, tem 100 ou 200 anos e nunca funcionou. Aquilo que a Ciência moderna nos traz, seja através dos inquéritos internacionais, da psicologia ou de estudos sobre educação, é como deve ser organizado o ensino explícito, exatamente o contrário do ensino centrado no aluno.
No epílogo do livro, questiona-se sobre se a educação vai mudar para melhor em Portugal e escreve que vai ser difícil, acrescentando: “A dificuldade está na tremenda resistência ideológica e corporativa que bloqueia persistentemente o progresso.” Pode explicar melhor? O que é preciso fazer já se sabe. É um currículo mais exigente, mais centrado no conhecimento, é uma avaliação mais exigente, mais rigorosa e mais fiável, é apoiar os alunos com mais dificuldades. Agora, o que se discute habitualmente não é isso. É o salário dos professores, a tecnologia na sala de aula, que também são importantes, mas não são as fundamentais. E isso é triste.
Volodymyr Zelensky exortou a comunidade internacional a uma “reação dura” contra a Rússia, na sequência de um ataque com dois mísseis balísticos na cidade ucraniana de Sumy, no nordeste do país, que provocou mais de 30 mortes e 80 feridos, de acordo com as autoridades. Vídeos e fotografias partilhados pela Ucrânia mostram o grau de destruição e o pânico das pessoas numa das artérias da cidade, no meio de cadáveres, autocarros e carros em chamas, árvores caídas e prédios danificados. “Só canalhas podem agir assim, tirando a vida a pessoas comuns”, escreveu o presidente ucraniano nas redes sociais, reafirmando que a Rússia tem de ser tratada “como terrorista”.
Perante as evidências, os Estados Unidos da América, que têm evitado criticar a Rússia desde que Donald Trump regressou à Casa Branca, foram dos primeiros a apontar o dedo a Moscovo. “O ataque de hoje, Domingo de Ramos, a alvos civis em Sumy, levado a cabo pelas forças russas, ultrapassa todos os limites da decência”, escreveu na rede social X Keith Kellogg, o enviado especial de Trump à Ucrânia e à Rússia. “Como antigo líder militar, percebo de alvos e isto é errado. É por isto que o Presidente Trump está a trabalhar muito para acabar esta guerra”, acrescentou o general na reserva.
Today's Palm Sunday attack by Russian forces on civilian targets in Sumy crosses any line of decency. There are scores of civilian dead and wounded. As a former military leader, I understand targeting and this is wrong. It is why President Trump is working hard to end this war.
O ataque surge menos de 48 horas depois do encontro em São Petersburgo entre Vladimir Putin e Steve Witkoff, representante de Donald Trump, que dera conta da frustração do presidente americano em virtude do impasse nas negociações de um cessar-fogo, que já o levara a ameaçar publicamente a Rússia com novas sanções.
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“A Rússia quer exatamente este tipo de terror e está a arrastar a guerra”, reiterou Zelensky, após a violenta manhã deste domingo em Sumy, à hora da missa. “Sem pressão sobre o agressor, a paz é impossível. Conversações nunca pararam os mísseis balísticos nem os bombardeamentos aéreos”, lamentou o líder ucraniano, que há muito insiste que só a lei da força pode travar Putin.
Pelo menos 34 pessoas morreram no ataque de hoje a Sumy, duas crianças. Entre os mais de 100 feridos, há outras 15 atingidas. “Toda a gente sabe: esta guerra foi iniciada apenas pela Rússia. E, hoje, é evidente que apenas a Rússia escolhe continuá-la – em flagrante desrespeito por vidas humanas, pelo direito internacional e os esforços diplomáticos do Presidente Trump”, escreveu o francês Emmanuel Macron no X, sublinhando que “são necessárias medidas fortes para impor um cessar-fogo à Rússia”.
This morning, two Russian missiles struck the heart of the city of Sumy in Ukraine, causing numerous civilian casualties, including children once again.
Everyone knows: this war was initiated by Russia alone. And today, it is clear that Russia alone chooses to continue it…
Keir Starmer, primeiro-ministro britânico, confessou-se “horrorizado” com os acontecimentos desta manhã e exigiu a Putin nada menos do que um “total e imediato cessar-fogo sem condições”, uma vez que Zelenski já deu provas de aceitar esse compromisso.
I'm appalled at Russia’s horrific attacks on civilians in Sumy and my thoughts are with the victims and their loved ones at this tragic time.
President Zelenskyy has shown his commitment to peace.
Putin must now agree to a full and immediate ceasefire without conditions.
Também Portugal já deixou clara a sua posição, numa publicação partilhada pelo gabinete de Paulo Rangel, ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, na qual “insta a Federação Russa a abster-se de todas as hostilidades e a aceitar o cessar-fogo já aceite pela Ucrânia”.
O Governo português condena o terrível ataque russo a Sumy, que fez dezenas de vítimas. Apresenta pêsames às famílias e ao povo ucraniano. Insta a Federação Russa a abster-se de todas as hostilidades e a aceitar o cessar-fogo já aceite pela Ucrânia. @ZelenskyyUa@andrii_sybiha
— Negócios Estrangeiros PT (@nestrangeiro_pt) April 13, 2025
Num dia de maio de 1971 perguntei-me o que estava a fazer numa paisagem lunar, cinzenta e alaranjada, de rochas escaldantes, árvores de ramos secos, enquanto comia uma lata de conserva da ração de combate, sob uma temperatura superior a 40 °C, nas imediações dos morros de Cabora Bassa, em Tete, Moçambique. Suava e afastava mosquitos. Não me queixava das condições da natureza. Preparara-me para a enfrentar e aos inimigos, mas chegara o momento das interrogações. Era um intruso. Que causas me haviam trazido até ali? Estar ali resultava da minha vontade e da minha liberdade, ou fora fruto de um conjunto de acasos, pelo que tanto podia estar naquele como noutro lugar ou situação, segundo o meu livre-arbítrio? A causa ou causas que me conduziram àquele inóspito ponto da crosta terrestre eram conciliáveis com a minha liberdade? Se o acaso é uma mera justificação para a ignorância sobre a forma como os eventos se relacionam e surgem, como podia relacionar a minha presença nas montanhas de Tete com a minha liberdade?
Tinha 24 anos, o posto de capitão comandante de uma companhia das tropas especiais, os comandos, com o nome totémico de «Escorpiões». Estava a terminar os dois anos de comissão. Chegara a Moçambique em 1969, como tenente, vindo do Centro de Instrução de Comandos de Angola, a casa mãe daquelas tropas. Formara esta companhia em Montepuez com voluntários, havíamos combatido nas grandes operações do Norte em Cabo Delgado, no planalto dos Macondes. Os dirigentes da FRELIMO, o movimento que lutava pela independência de Moçambique, haviam decidido abrir a frente de guerra em Tete, e para ali viera eu enfrentá-los com os meus experientes, silenciosos e atentos comandos. Confiavam em mim e eu neles. Observei-os: todos tinham os olhos fundos de olheiras, os ossos dos rostos salientes, todos estávamos magros e de cabelos quase rapados. Havíamos decidido rapar o cabelo antes deste período de operações. Decisões sem explicação. Reforçava o espírito de corpo, ficávamos todos parecidos. Lembraram-me prisioneiros dos campos de concentração.
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Perto de mim, um negro esfarrapado, descalço, magro, sem idade identificável, quase uma múmia de pele seca e escamada. O guia que a PIDE me tinha entregado para me levar ao acampamento dos guerrilheiros, vindos do Norte, que haviam atravessado o rio Zambeze. O negro, sentado sobre os calcanhares, amarrado pela cintura a um soldado, comia em silêncio o que lhe tínhamos dado
Afastados umas dezenas de metros, duas equipas de pisteiros rodesianos, os selous scouts, de calções caqui e chapéus de abas, bebiam chá. Haviam sido desembarcados de madrugada de um helicóptero Alouette, um ALIII, para procurar vestígios da presença de guerrilheiros da FRELIMO ou da ZANU, os seus correspondentes para a independência da antiga colónia da Rodésia do Sul, que haviam ultrapassado o rio Zambeze, o que o general comandante-chefe queria impedir a todo o custo. Por isso, determinara a vinda de uma unidade de comandos para, pela primeira vez, realizar operações conjuntas em Tete, o meu terceiro teatro de operações, depois do Niassa e de Cabo Delgado. Pela velocidade a que perdíamos o controlo do território admitia que ainda terminaria no Sul, em Gaza, como Mouzinho de Albuquerque, o patrono da minha arma de origem, a cavalaria, que prendeu Gungunhana, o rei dos Vátuas, e se viu promovido a trágico herói pelos políticos de Lisboa que o traíram. Os políticos mandaram-no combater enquanto negociavam com a Inglaterra a cedência do controlo do território que designariam por «Delagoa Bay», o atual porto de Lourenço Marques, por onde exportavam os produtos dos estados do Transval e do Natal e, através dos ingleses e dos boers, estabeleciam acordos com os chefes dos povos da região nas costas dos seus militares. Uma atitude que antecipou o tipo de relação entre os governos de Salazar e Marcelo Caetano durante a Guerra Colonial. Mouzinho não conseguiu, ou não quis encabeçar a revolta dos jovens oficiais que o seguiam. Suicidou-se física e politicamente sem proveito para Portugal e para os portugueses, tomando uma opção que os capitães rejeitaram em 25 de abril de 1974.
Perto de mim, um negro esfarrapado, descalço, magro, sem idade identificável, quase uma múmia de pele seca e escamada. O guia que a PIDE me tinha entregado para me levar ao acampamento dos guerrilheiros, vindos do Norte, que haviam atravessado o rio Zambeze. O negro, sentado sobre os calcanhares, amarrado pela cintura a um soldado, comia em silêncio o que lhe tínhamos dado – mastigava lentamente, com a boca de lábios rebentados pela pancada no interrogatório de há dois dias, numa tenda, na povoação de Estima, na base dos morros do Songo, no quartel-general do Comando Operacional das Forças de Intervenção. O negro confundia-se com a paisagem, a tempos regulares afastava as pequenas moscas com um gesto mecânico. Para ele, eu e os meus homens não existíamos. Éramos um acidente. Uma armadilha onde caíra, uma praga, uma maldição.
Perguntei-me de novo o que fazia naquele fim do mundo, no interior de África, com um negro atado pela cintura a um soldado, transformando-o num moderno caçador de escravos e a mim num negreiro. Aquela não era a terra a que eu pertencia. Nada me ligava àquele negro, nem àquelas rochas, nem àquele sol abrasador, nem aos mosquitos que me entravam pela boca, nem aos rodesianos brancos que mandavam os seus militares combater ao nosso lado, do lado de cá da nossa fronteira, para evitar que os guerrilheiros anti-apartheid realizassem ações do seu lado, na Rodésia que tinham escolhido para ser a sua terra e que por isso haviam declarado unilateralmente independente.
Que causa me ligava àquele negro e aos homens que estavam sob o meu comando? Que causa justificava a presença de cada um de nós naquele palco, a representar os nossos papéis? Mandei avançar a minha tropa, com o negro, de quem nunca soube mais do que ser um homem negro capturado, à frente.
Assistira ao interrogatório deste negro, efetuado por um major, oficial de informações, e pelo agente da PIDE que estabelecia a ligação com as Forças Armadas. No briefing da véspera da operação,
Perguntei-me de novo o que fazia naquele fim do mundo, no interior de África, com um negro atado pela cintura a um soldado, transformando-o num moderno caçador de escravos e a mim num negreiro. Aquela não era a terra a que eu pertencia
o subinspetor da PIDE declarara ao coronel Videira, comandante das Forças de Intervenção, o COFI (existe uma norma não escrita, mas funcional, de encontrar siglas para abreviar os textos), que o insucesso das operações realizadas para impedir o avanço dos guerrilheiros para sul do rio Zambeze se devia ao pouco empenho dos militares do Exército, que não aproveitavam os guias que a PIDE fornecia, devidamente maltratados. A cobardia é a mãe da crueldade. (Julgo ser uma frase de Montaigne. Confirmei-a em várias ocasiões.) A guerra é reveladora de caracteres. O major R., o oficial de informações, depois de agredir o capturado, libertou-lhe as mãos para ele desenhar a base de guerrilheiros no chão da tenda. Além de cobarde, o major R. era estúpido. Em vez de fazer um desenho, o prisioneiro agrediu o major, que ganhara a alcunha de «cretino esférico», sem ponta por onde se lhe pegar. Seria o intérprete da PIDE, também negro, quem vingou o major, batendo no prisioneiro com um pau até conseguir que ele fornecesse as informações necessárias para o assalto à base dos guerrilheiros vindos através da fronteira com a Zâmbia. Possuía a experiência dos maus resultados obtidos através destes interrogatórios e comuniquei as minhas dúvidas ao coronel Videira, que conhecia das operações no planalto dos Macondes, no Norte. Ele fora o primeiro comandante dos paraquedistas portugueses, um transmontano sensato e conhecedor, um comandante como os militares gostam de ter tanto nos bons como nos maus momentos. Olhou-me e sorriu quando me ouviu pedir-lhe autorização para o agente da PIDE me acompanhar e provar a eficácia dos seus métodos e a acusação que fizera, de a tropa não se esforçar em seguir os guias fornecidos pela polícia política.
O subinspetor da PIDE apresentou-se de madrugada junto aos helicópteros. Lembrou-me um manequim na montra de um pronto a vestir para caçadores: camuflado novo, botas de lona, um cantil, uma pistola e de óculos escuros. Um turista. Os meus soldados olharam-me à espera de um comentário. Levavam consigo, além do cantil pendurado no cinturão, mais um outro de 2 litros de água, a tiracolo, um poncho e uma camisola de lã no saco de lona às costas. Em Tete, as temperaturas de dia ultrapassam os 40 °C e de noite podem ser negativas. O homem devia conhecer a meteorologia, mas trabalhava num escritório com ar condicionado e nunca sentira os efeitos de viver como os lagartos nas rochas, que se tornam brasas durante o dia, nem o gelo do cacimbo à noite. Nos comandos treinávamos para sofrer situações extremas, na PIDE treinavam para os outros as sofrerem. Uma diferença que o devia ter aconselhado prudência antes de lançar suspeitas.
Depois do desembarque dos helicópteros, logo após o nascer do Sol, num ponto a alguma distância do local onde o homem da PIDE informara situar-se a base da FRELIMO, seguimos o «capturado» por trilhos entre rochas: descemos, subimos, voltámos a descer encostas de abismos com as pedras a rolarem debaixo das botas. Ao meio-dia o PIDE, que suava, já bebera toda a água, e eram os meus soldados que não o deixavam morrer à sede. Foram eles também que à noite lhe estenderam as suas mantas para ele não morrer de frio. Em vez de um fiscal que verificava como cumpríamos as missões ganháramos um empecilho!
De manhã os helicópteros trouxeram duas parelhas de selous scouts para renderem as que se encontravam junto a nós e reenviei à procedência o subinspetor da PIDE. Antes de embarcar, perguntou-me: «E o prisioneiro?» «Fico com ele, é-me mais útil do que o senhor!» «Ele foi entregue à PIDE…» «Eu sou o comandante. Embarque antes que os rodesianos se vão embora e eu não o levo às costas!»
A minha má relação com a PIDE começara no final do ano de 1970 e devia estar registada nos arquivos da organização.
A minha má relação com a PIDE
A companhia que comandava, os «Escorpiões», passara o Natal de 1970 em operações no planalto dos Macondes. Na noite de 24 para 25 de dezembro esperámos a madrugada para assaltar a base Angola, da FRELIMO, na região do lago Nguri, uma operação em que substituímos um destacamento de fuzileiros, declarado inoperacional por razões sanitárias que haviam reduzido o seu efetivo.
Vivida a consoada de Natal de 1970 com tiros, regressámos a Mocímboa da Praia para ali embarcarmos com destino a Porto Amélia, de onde iríamos continuar a fazer operações, agora às ordens do batalhão local. Como uma companhia de circo, servíamos vários empresários, mas foi após esta temporada de operações que começou a minha má relação com a PIDE.
No regresso a Montepuez, à base dos Comandos de Moçambique, li o correio acumulado. Da metrópole alguém me lembrava que tínhamos uma viagem a França combinada quando eu regressasse, no verão! «Passaporte!» Faltava o passaporte. Entregara há uns dois meses nos serviços da circunscrição de Montepuez, que correspondia mais ou menos a uma câmara municipal e a um governo civil, os papéis para obter o documento. Dirigi-me ao edifício, tipo colonial, e ao gabinete do administrador, que conhecia dos encontros sociais. Quando lhe perguntei pelo passaporte, o autarca colonial começou a esfregar as mãos de atrapalhação. Não fora emitido. «Falta algum documento?» Até tirara fotografias à civil. «O melhor seria o senhor capitão falar com o agente Casimiro (não me recordo do nome, podia ser Jacinto) da PIDE…» Perguntei ingenuamente: «Que tem a PIDE a ver com o meu passaporte?» «Também passa por eles…»
Regressei ao quartel e mandei o meu condutor ir com dois dos membros da minha equipa avisar o chefe da delegação da polícia política que precisava de lhe falar. Um quarto de hora depois entrou o jipe a grande velocidade, travou à minha frente e os meus dois soldados despejaram diante de mim um homem de pequena estatura, de calções e camisa caqui. Fitou-me, hesitante entre mostrar-se ofendido ou aceitar com resignação o que lhe pudesse acontecer no lugar mal-afamado que é um quartel de comandos, onde reina uma ordem particular e um capitão é o Deus todo-poderoso em exercício. Por sorte dele, a nossa má fama não correspondia à realidade das salas de interrogatório da PIDE.
Convidei o agente a sentar-se e a beber uma cerveja, antes de o informar que pretendia saber do meu passaporte. Tal como o administrador da circunscrição de Montepuez, também o agente começou a gaguejar e a torcer os dedos. A conversa decorreu entre o absurdo e o surreal. Um diálogo de manicómio. Ele recebera a indicação para me interrogar e responder a perguntas vindas da PIDE de Lourenço Marques: «O senhor capitão quer o passaporte para que finalidade?» «Para me deslocar ao estrangeiro!» «Sim, claro… E a que países do estrangeiro?» «Àqueles que constarem do passaporte, aqueles com quem Portugal mantém relações diplomáticas e onde eu tenha dinheiro para viver!» «E o senhor capitão… pensa lá ficar, ou volta?» «Boa questão. Se pensar ficar no estrangeiro não lhe vou dizer, não é verdade?» «Sim, claro, mas sabe o que se passou com aqueles seus colegas da Academia Militar que desertaram para a Suécia e para a Bélgica…»
O problema era esse!
Um grupo de dez alunos que frequentavam o último ano dos cursos de engenharia da Academia Militar no Instituto Superior Técnico havia desertado em agosto de 1970 por se opor à Guerra Colonial. O contacto com o movimento estudantil fizera-os críticos do regime. Haviam entrado na Academia Militar no ano anterior ao meu, e com alguns deles mantivera uma estreita relação de camaradagem, inclusive na prática de desporto, nas equipas de atletismo. A notícia da deserção fora publicada em vários jornais europeus e aproveitada pelos movimentos independentistas como propaganda contra a política do governo de Marcelo Caetano. Percebia a preocupação da PIDE e a intenção de não correr riscos comigo: a deserção de um capitão dos comandos em pleno teatro de operações teria efeitos devastadores. No final da curta entrevista disse-lhe: «Senhor agente…» «Sou chefe de brigada…» «Senhor chefe de brigada, a questão é simples: informe os que o mandaram interrogar-me que ou eu daqui a quinze dias, quando regressar de operações, tenho o passaporte passado e assinado, ou no dia seguinte vou a Nampula entregar o comando da companhia ao general comandante-chefe, que me manda realizar operações onde entende, mesmo nos países vizinhos, sem passaporte e sem receio que eu por lá fique, a não ser morto!»
Quinze dias depois, no regresso das operações, tinha em cima da minha secretária em Montepuez o passaporte, com as capas azuis em uso ao tempo, com os selos fiscais, a lista de países e um pormenor que me fez dar uma gargalhada. Na linha de identificação correspondente à profissão estava escrito «estudante»! – naquela época, os militares dos quadros permanentes das Forças Armadas apenas dispunham de bilhete de identidade militar. Mas eu era, para efeitos de apresentação num país estrangeiro, em 1970, um estudante que residia em Montepuez!
Adeus
Os selous scouts rodesianos haviam-nos apontado o trilho onde detetaram rastos de passagem de guerrilheiros. O assalto ficava por nossa conta.
Seguimos devagar, confundidos com as rochas, em silêncio, afastados. Cada um sabia o que fazer, para onde vigiar, onde colocar os pés, o guia um pouco à minha frente. Fizemos um pequeno alto junto a uma poça de água esverdeada, rodeada de árvores raquíticas. Mandei o homem que levava o guia preso à cintura sentá-lo perto de mim, fiz um gesto para colocar as mãos em concha e enchia-as de água. E ele elevou as mãos num gesto de agradecimento. Dei-lhe um cigarro dos meus e fumámos em silêncio. Perguntei: «Maconde?» Acenou que sim. Reparara nas cicatrizes de tatuagem nas fontes. «Base?» Apontou a direção com o queixo. Mandei os meus homens seguirem-no.
DR
De repente encontrámo-nos na orla de uma mata no fundo de um pequeno vale. Vi restos de cinza, ramos secos a servir de teto a uma palhota já desfeita. Ali estava a base de guerrilheiros que constituía o meu objetivo! «Base?» O guia acenou afirmativamente. «Foi por isto que aqui viemos, meu capitão?», perguntou o alferes que comandava o grupo de assalto. «Parece que sim.» «Andam a gozar connosco!
Estava ali com excelentes jovens soldados, treinados para resistirem às piores condições de vida, armados e equipados, num desfiladeiro rochoso, desabitado, a 40 ou 50 quilómetros da mais avançada tecnologia, monstruosas, que construíam a gigantesca barragem de Cabora Bassa para produzir energia elétrica que iria iluminar as cidades dos brancos da África do Sul, produzir brisa fresca através dos seus ares condicionados, fazer mover os elevadores das minas do Rand, girar as brocas de furar as terras de diamantes, acender e apagar os néones dos centros comerciais da Cidade do Cabo e de Joanesburgo, que conhecia da passagem de Angola para Moçambique.
Mandei o soldado soltar o preso, dei-lhe o resto das minhas latas da ração de combate, que já não comia, enjoado, e apontei uma direção: «Zâmbia, gosse, gosse!» Já sabia algumas palavras dos idiomas locais, como «depressa». Um dos soldados perguntou: «Mata-se?» Neguei com a cabeça. O capturado afastou-se a andar de lado, olhando para nós, incrédulo e à espera de ser morto; vi-o afastar-se, primeiro lentamente, depois a correr, e desaparecer.
Eu viajava sozinho. Devia dar essa oportunidade e respeitar esse direito aos que se cruzavam comigo.
Restava procurar uma zona para os helicópteros aterrarem e me levarem de regresso. Seria a última operação que fiz em Moçambique. Quarenta anos mais tarde, em 2010, saberia em que estratégia estivera eu envolvido. Descobri uma aliança surpreendente.
Exercício Alcora
No dia 14 de outubro de 1970, delegações militares de Portugal, da África do Sul e da Rodésia assinaram em Pretória um acordo a que foi dado o nome de código «Exercício Alcora» e cujo objetivo consistia em «investigar os processos e meios de conseguir um esforço coordenado tripartido entre Portugal, África do Sul e Rodésia, tendo em vista fazer face à ameaça mútua contra os seus territórios na África Austral»
O acordo dos três países implicava um elevado grau de integração das suas Forças Armadas e destinava-se a estabelecer uma verdadeira aliança para a criação de um «bloco branco».
O meu 25 de Abril de 1974 começou em Tete, Moçambique, em maio ou junho de 1971, a perguntar-me o que andava a fazer em África. Combatia e conduzia os soldados a quem o Estado português, através do seu governo, impunha o dever do serviço militar obrigatório. Precisava de ter certezas quanto à razão ou razões pelas quais me encontrava em Tete, Moçambique, numa guerra que começara há dez anos, para lhes poder dar uma resposta, como era meu dever. Os militares que comandava tinham o direito de exigir que eu soubesse. Na guerra de guerrilha, realizada por pequenos
grupos isolados, a hierarquia assenta mais na confiança pessoal do que na graduação formal dos postos das Forças Armadas e por isso nestas unidades os seus elementos fazem poucas perguntas. Confiam.
Em Tete, em 1971, deixei de ter uma resposta que satisfizesse a minha consciência para a transmitir aos que comandava, mesmo que eles não me perguntassem porque estávamos ali. Se o negro capturado que me conduzira à sua antiga base, ao primitivo acampamento que os seus construíram no avanço para sul, me perguntasse a razão da minha presença ali também não lha saberia explicar, a não ser invocando o direito resultante da força. O capturado não necessitava de procurar justificações, nem invocar o direito natural da pertença ao espaço onde nasceu, onde se encontram os seus. Eu viera de longe. Ele era dali.
O meu 25 de Abril pode ter começado quando, na tarde de um dia de maio ou de junho de 1971, os helicópteros me vieram recolher e decidi deixar em terra, na sua terra, o capturado, enquanto levantava voo para o meu acampamento de tendas de lona, modelo sul-africano, para enviar a mensagem com o resultado da operação: «Base abandonada.»
Geração D: Da ditadura à democracia (Porto editora, 340 págs., €18,85) estará nas livrarias na próxima quinta-feira, dia 21
Se existe realmente um mentiroso debaixo de cada pedra, pode ser útil saber quem são os melhores a encontrá-los. Antes de começar a escrever este livro, tinha as minhas suspeitas sobre que tipo de pessoa estava mais bem posicionada para ver através de um comportamento fraudulento, mas não tinha a certeza. Assim, vejamos mais atentamente como reconhecer uma mentira e reconhecer um mentiroso. A minha apresentação destas ideias será um pouco diferente da abordagem que um psicólogo escolheria. Não estou a dizer que essa abordagem seria errada, apenas que vou mostrar-lhe a forma como olho para este assunto.
Ocorpo também fala? Um detetor de mentiras competente não se apoia demasiado na linguagem corporal. Aldert Vrij, professor de Psicologia, diz que ela raramente é inteiramente previsível
Quem é o melhor a mentir?
Detetar vários tipos de fraude é uma tarefa complexa, e a capacidade das pessoas para detetar a fraude varia bastante. No entanto, alguns grupos têm tendência para ser melhores a detetar mentiras devido à sua formação, experiência ou capacidades naturais. Por isso, pesquisei no Google.
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E, com efeito, existem investigações em andamento sobre a que tipos de pessoas não devemos mentir. Claro que a lista não é completa e as sugestões variam ligeiramente dependendo de a quem pergunta. Mas aqui estão cinco categorias de pessoas que se acredita serem melhores a detetar mentiras:
Agentes da polícia. Não é propriamente uma surpresa. Profissionais como os agentes da polícia e os detetives são muitas vezes treinados para prestarem atenção aos sinais verbais e não verbais. Porém, o grau de precisão pode variar muito e não são significativamente melhores do que a generalidade da população.
Juízes e Advogados. Bem, este grupo assemelha-se aos polícias. É natural que ao lidar com patifes o dia todo estas pessoas sejam melhores a reconhecer um embusteiro. Os juízes e outros profissionais legais desenvolvem frequentemente uma capacidade para detetar a fraude através da sua formação e experiência – como é natural, devem ser bons a avaliar a credibilidade, por exemplo, das testemunhas. Também têm de avaliar muitos tipos diferentes de provas. Com o tempo, presumo que estas categorias de profissionais saibam o que devem procurar.
Interrogadores profissionais. Estas pessoas também trabalham com a Lei e são muitas vezes uma espécie de agentes da polícia. Os que trabalham nas agências governamentais recebem muitas vezes formação em técnicas avançadas para detetarem mentiras e saberem confrontá-las. Em breve descreverei este processo. As pessoas comuns, como eu e o leitor, podem aprender muito com eles.
Investigadores de mentira. Bem, porque não? Claro que os investigadores que se especializam na mentira e na deteção da mentira devem ter uma sensibilidade mais apurada para as pistas que se associam à fraude. Afinal, é o seu trabalho, certo? Mas será saber como se faz determinada tarefa a mesma coisa do que saber fazê-la de facto? É uma pergunta interessante. Eu sei como se deve colocar um telhado novo na minha casa, mas isso não significa que possa realmente fazê-lo, pois não? Não é nada óbvio. Sobretudo se perguntar à minha mulher. No entanto, é aqui que as coisas se tornam interessantes.
Os psicólogos clínicos estão na lista das pessoas mais bem capacitadas para detetarem mentiras. À primeira vista, isto pode parecer quase lógico. São especialistas na psique humana!
Não deviam estar no topo da lista? Afinal, são profissionais treinados para observar e interpretar os sinais subtis do comportamento humano e é óbvio que isso os equipa melhor para detetarem a mentira. Porque não vemos o que têm os próprios a dizer sobre o assunto?
Como Se Faz
Em 2009, o governo dos Estados Unidos formou um grupo denominado High-Value Detainee Interrogation Group, ou HIG, e encarregou-o com o desenvolvimento de uma nova metodologia para identificar as mentiras e enganos gerais dos detidos. Gastaram-se mais de 15 milhões de dólares em mais de cem projetos de investigação que foram liderados por psicólogos de topo. Muito do trabalho que têm feito é extremamente fascinante.
Polícia bom, polícia mau?
O que fazem as pessoas que são altamente capacitadas para apanhar mentirosos? Por uma questão de simplicidade, adaptei os resultados HIG e coloquei-os por palavras que se entendem.
Um bom truque é pensar em si como um jornalista amistoso, sugerem estes psicólogos. O que faz um jornalista amistoso? Se for bom faz o seu trabalho de casa antes de escrever uma única palavra. Quanto mais informação conseguir trazer para a conversa, mais bem calibrado estará o seu detetor de mentiras interior.
Depois temos a parte do “amistoso”. O relatório HIG descobriu que a abordagem polícia mau não é nada eficaz, mas que a do polícia bom é. Toda a gente quer ser tratada com respeito, até um mentiroso inveterado. E quando as pessoas se sentem respeitadas e que estão a ser tratadas com consideração têm uma probabilidade maior de falarem abertamente e serem honestas.
Basicamente, deve ser simpático e bondoso. Não necessariamente um colosso de simpatia e bondade, mas amistoso. Tem de fazer com que o mentiroso goste de si. Que se abra consigo. Que fale muito. E, mais importante, que deixe escapar qualquer coisa que exponha a sua mentira.
A linguagem corporal de um mentiroso inveterado pode não denunciar nada
Um detetor de mentiras humano competente não se apoia demasiado na interpretação da linguagem corporal. Aldert Vrij, professor de Psicologia e especialista em mentiras, afirma que a linguagem corporal raramente é inteiramente previsível. E eu concordo com ele. Há uma secção sobre linguagem corporal numa parte diferente deste livro e apesar de existirem padrões que podem ajudar-nos a encontrar o banal nas pessoas, que podem não ser mentirosas veteranas, concordo que a importância dos gestos e maneirismos físicos não deve ser sobrestimada no caso dos criminosos inveterados. Um mentiroso competente provavelmente já aprendeu a não dar nenhuma informação que não queira dar.
Num capítulo anterior mencionei um mito comum: os mentirosos não olham nos olhos das pessoas. Mas não, este também não é um método de confiança. Existem muitas pessoas que, por um motivo ou outro, não conseguem olhá-lo nos olhos. Algumas são simplesmente tímidas. O relatório HIG demonstra que o contacto ocular não é um indicador de confiança.
E se isto não bastasse para destruir o mito, também li um estudo sobre comportamento interpessoal em psicopatas encarcerados. E adivinhe? Eles olham mais vezes nos olhos das pessoas do que os não psicopatas. E esta?
Mentir no divã Barry Farber, professor de Psicologia Clínica na Universidade de Columbia, afirma que as pessoas que fazem terapia de casal mentem constantemente
Faça perguntas inesperadas.
As pessoas que são boas a detetar mentiras fazem perguntas inesperadas, que talvez até nem sejam relevantes para a conversa.
Por exemplo, pergunte a idade a alguém que não tem obviamente idade para beber nem para estar naquele bar e verá que lhe responde com confiança: Sou maior de idade.
Mas se perguntar: Em que ano nasceste?
É uma pergunta incrivelmente fácil de responder para quem está a dizer a verdade, mas um mentiroso precisará provavelmente de parar uns segundos para fazer contas. E pronto, já o apanhou.
Por isso, a ideia é começar com perguntas de que todos estariam à espera. Não são perguntas ameaçadoras e, apesar de poderem fornecer-lhe muitas informações, o seu propósito mais importante é proporcionar ao mentiroso aquilo que o interrogador chama de linha de base. A seguir faça uma pergunta que alguém que estivesse a dizer a verdade não teria problemas em responder, mas que para um mentiroso talvez não seja assim tão fácil.
Avalie a sua reação. Respondeu calma e rapidamente, ou fez uma pausa súbita e invulgarmente longa antes de responder.
Deve também perguntar por detalhes que pode verificar. Então, se ligar à sua chefe, ela pode confirmar que esteve presente na reunião de ontem? Quem estiver a dizer a verdade irá responder sem problemas. Os mentirosos, por sua vez, ficarão mais relutantes.
Eis outro exemplo: O que tinha o Peter vestido na reunião de ontem? Mais uma vez, será algo fácil de responder a quem for honesto, mas um verdadeiro pesadelo para um mentiroso. A resposta que derem pode ser verificada – e sabem disso.
O relatório também revela que os interrogadores usam frequentemente provas estratégicas. Fez o seu trabalho de casa antecipadamente, certo? Exatamente. Construa um diálogo. Faça a outra pessoa falar. Consiga que lhe ofereça alguma coisa que contrarie a informação que descobriu.
Peça esclarecimentos, para que se comprometa com a sua palavra. E a seguir: Desculpe, mas agora estou confuso. Disse-me que passou o dia de ontem com a Lena, mas ela tem estado a semana toda em casa, doente. Faça a si mesmo estas perguntas mágicas: Parece estar a pensar demasiado? As respostas dadas à pressa contradizem alguma coisa dita anteriormente, está a cavar um buraco ou também consegue explicar o que esteve a fazer em casa de uma pessoa doente?
O feedback ajuda o mentiroso
Li algures um estudo elaborado por psicólogos que demonstrava que, em média, os agentes da polícia sueca conseguiam detetar cerca de metade das mentiras que ouviam. No entanto, os agentes que tinham tido treino numa área chamada Uso estratégico de provas detetavam mais de 85 por cento das mentiras que lhes contavam. É uma diferença impressionante.
Um bom método para alcançar este resultado é revelar as provas uma por uma. É um processo que também uso para evitar que a pessoa se sinta demasiado desafiada no início das nossas conversas. Muitas pessoas são mais cautelosas se decidir atacar de imediato a jugular e revelar que não confia nelas. Se as abordar com uma atitude tão abrasiva, há então o enorme perigo de que não me digam absolutamente nada. É muito melhor ser gentil.
Se começar a questionar de imediato tudo o que a pessoa diz, ou se a acusar imediatamente de estar a mentir, ela pode recolher-se. Ou então pode começar a mudar a sua história.
Por que razão haveria de a querer ajudar a mentir melhor? Pelo contrário, o seu objetivo devia ser fazer com que revelasse tudo sozinha, para se encurralar a si mesma. Só depois pode atacar. Por isso, descontraia, deixe-a falar.
Este é o problema em lidar com pessoas esquivas: elas obtêm feedback da nossa parte e nós não obtemos nada da parte delas. Se mentir e não for apanhado, aprendo que estratégia funciona. Se mentir e for imediatamente apanhado, aprendo o que não funciona.
Não ajude um mentiroso a mentir melhor.
Psicólogos e Mentirosos
Já que estamos a falar de estudos sobre como apanhar um mentiroso: como já mencionei, aquele estudo em particular foi elaborado por psicólogos. Isto devia significar que os psicólogos são o grupo de profissionais a quem menos devia querer mentir, certo?
Como já é habitual, nada é tão simples quanto parece. Muitas das dicas que partilhei parecem, deveras, muito boas e passei cerca de seis meses a conduzir as minhas próprias experiências para as avaliar antes de finalizar este livro – além de que existem algumas partes excelentes em todo este material.
Mas depois temos o mundo real. Os psicólogos experientes acreditam normalmente que os seus consultórios são lugares onde os seus pacientes se sentem confortáveis para partilhar os seus pensamentos e sentimentos mais profundos e íntimos sem risco de serem julgados. Lugares onde podem trabalhar com os pacientes para os aproximarem da cura. E, no entanto, uma percentagem surpreendentemente elevada de pacientes – na verdade, quase todos – relatou ter mentido ou não ter sido inteiramente honesto com os seus terapeutas. O que parece ser mesmo estranho. Os pacientes consultam o terapeuta em busca de ajuda. De que vale ir a um psicólogo para falar dos seus problemas e depois não ser inteiramente honesto sobre o que se está a passar?
Barry Farber, PhD, professor do curso de Psicologia Clínica da Teachers College da Universidade Columbia, afirmou que isto não só é comum como acontece constantemente. Por exemplo, aparentemente, as pessoas que fazem terapia de casal mentem imenso.
Por vezes, toda a gente esconde as suas verdades e parece que as sessões de terapia não são exceção.
Também parece ser inteiramente verdade: numa sondagem, 93 por cento dos pacientes de psicoterapia disseram ter mentido conscientemente ao seu terapeuta pelo menos uma vez (Counselling Psychology Quarterly, Vol. 29, n.º 1, 2016). Noutra sondagem, 84 por cento dos pacientes disseram que esta desonestidade ocorre regularmente.
E embora os terapeutas devam pelo menos suspeitar de que os seus pacientes podem não ser inteiramente verdadeiros, os estudos sugerem que não é, de todo, este o caso. Num estudo, 73 por cento dos participantes responderam que as suas mentiras nunca foram descobertas durante as sessões de terapia. Apenas 3,5 por cento dos pacientes confessaram as suas mentiras de livre e espontânea vontade e noutros 9 por cento dos casos, estas foram descobertas pelos terapeutas. Assim, os terapeutas podem não ser os melhores detetores de mentiras.
Polígrafo Em 1920, o psicólogo William Moulton Marston, o homem que desenvolveu a teoria DISC, criou o primeiro detetor de mentiras
O que fica por dizer
Os pacientes têm tendência para mentir ou não ser completamente transparentes com os seus terapeutas em vários assuntos, mas os investigadores ficaram surpreendidos ao identificar algumas das áreas mais comuns onde a mentira era usada. Os assuntos mais comuns são bastante subtis. Mais de metade dos participantes de um estudo afirmou que a sua perturbação psicológica não se reduziu realmente depois das sessões de terapia e que fingiram sentir-se mais felizes e saudáveis do que sentiam na verdade. A segunda mentira mais comum é fingir que os seus problemas não são tão sérios como mentem que são. A terceira era a omissão de ideação suicida (relatada por um terço dos participantes).
Os psicólogos estão sujeitos ao dever do sigilo profissional. Não podem contar a ninguém o que é dito durante a consulta de um paciente, como acontece com os médicos. Então, de que vale contar mentiras quando devia estar a receber ajuda para lidar com os seus problemas de saúde mental? Tem de concordar comigo que é uma ideia rebuscada.
As pessoas gastam tempo e dinheiro a fazer terapia, por isso, para quê esconder a verdade? Para os pacientes que ocultam os pensamentos suicidas, a principal razão será provavelmente o medo das consequências se a verdade for revelada. É claro que se a condição for considerada séria, a pessoa pode acabar por ser hospitalizada, mas acima de tudo pode ser muito difícil lidar sozinho com estes problemas. Pode parecer pouco lógico, mas por vezes, para estas pessoas, a solução pode ser mais assustadora do que o problema com que se debatem.
É aquela história de mais vale o diabo que conhecemos do que o que desconhecemos.
Pode aplicar-se o mesmo princípio às adições – os pacientes podem temer ser forçados a entrar em reabilitação. Contar a um terapeuta que fuma erva pode não ser muito grave, mas talvez não lhe queira contar sobre a cocaína e os opioides que consome. A vergonha também é um fator a ter em conta, sobretudo em questões relacionadas com o sexo. Muitos pacientes receiam que os seus terapeutas não os entendam – e por isso mentem.
Estudos de tipos de personalidade
Como é natural, trabalhar como agente da polícia e interrogar criminosos inveterados vai melhorar a capacidade para reconhecer mentiras. Se isso fará da pessoa o melhor detetor de mentiras do mundo não sei, mas não vejo porque não. Por outro lado, que pessoas têm maior aptidão natural para encontrar e desmascarar mentirosos?
Já houve quem tenha tentado responder a esta pergunta. Num pequeno estudo conduzido pela Universidade Lindenwood nos Estados Unidos, percebeu-se que os introvertidos têm uma certa vantagem. Têm uma capacidade natural para se deixarem ficar recolhidos durante uma conversa e permitir que as outras pessoas ocupem mais espaço. O que lhes dá mais material para analisar.
Um extrovertido tem tendência para falar mais e dominar mais frequentemente o diálogo. De acordo com o estudo, isto pode fazer com que um mentiroso fique indetetável durante mais tempo. Um extrovertido não presta simplesmente muita atenção aos detalhes.
A minha própria teoria, para a qual não tenho dados factuais, é que as pessoas com traços de personalidade azuis – que são introvertidas e orientadas para as tarefas – devem ter uma vantagem inquestionável na identificação de mentiras. São pessoas que prestam atenção aos detalhes, os seus cérebros são extremamente organizados e a memória geralmente muito boa, além de que fazem muitas perguntas.
Quando este comportamento entra em ação, não é invulgar que os companheiros dos azuis sintam que estão a ser interrogados. Faz parte da sua natureza desencantar detalhes. Para impedir que seja apanhado em falso, um mentiroso tem mesmo de saber o que está a fazer.
Contudo, como já mencionei, não tenho dados científicos que apoiem esta ideia. Ela baseia-se simplesmente na minha experiência pessoal enquanto coach e especialista comportamental aliada a um bom entendimento sobre como as pessoas funcionam. Também já fiz mentoria e coaching a milhares de pessoas e creio que já vi de tudo um pouco. Também tenho uma barra azul bastante pronunciada no meu próprio perfil profissional. O que acabei de fazer nos últimos parágrafos foi mais ou menos uma descrição de mim mesmo. A minha mulher costuma dizer que até se consegue ver no meu rosto quando percebo que alguém está a fazer um uso amplo da verdade. Também me diz que se sente relutante em pregar-me uma mentirinha inocente que seja, porque quase de certeza que a vou detetar.
Pessoalmente, fico muito satisfeito com isto. A não ser, claro, quando lhe pergunto o que ela acha do meu casaco novo e ela me responde – honestamente e sem a menor hesitação – se guardei o talão. Bolas.
A Possível Utilidade de Detetores de Mentiras
As pessoas sempre procuraram formas inteligentes para detetar mentirosos. Em 1920, o psicólogo William Moulton Marston, o homem que desenvolveu a teoria DISC, criou também o primeiro detetor de mentiras.
Muitas pessoas questionam se os aparelhos tecnológicos como este funcionam realmente, e apesar de ser bastante discutível, a verdade é que continuam a ser um fenómeno muito interessante. De vez em quando, deparamo-nos com uma história qualquer sobre polígrafos, sobretudo em investigações policiais americanas, em que pessoas são submetidas a um teste de polígrafo – ou seja, um detetor de mentiras – antes de conseguirem empregos no FBI ou na CIA. A precisão destes testes já foi amplamente questionada e a metodologia rejeitada em muitas partes do mundo. Mas já que estamos a discutir como detetar uma mentira, pode ser interessante observar rapidamente como funcionam estas máquinas míticas.
Como funciona um polígrafo?
O propósito de um polígrafo é determinar se a pessoa está a dizer a verdade ou a mentir quando responde a determinadas perguntas.
Quando alguém faz um teste de polígrafo, quatro a seis sensores são colocados em várias partes do seu corpo. O polígrafo é uma máquina em que os múltiplos sinais vindos destes sensores são gravados numa tira de papel. Os sensores registam habitualmente quatro tipos de dados:
• Ritmo respiratório
• Ritmo cardíaco
• Pressão arterial
• Nível de transpiração
Por vezes, o polígrafo também pode registar outros dados, como o movimento dos braços ou das pernas. Quando o teste começa, o entrevistador faz três ou quatro perguntas simples para determinar os níveis normais da pessoa e assim calibrar os sinais recebidos pelos sensores. Observa simplesmente como os quatro parâmetros se comportam quando a pessoa está a dizer a verdade. Assim, tem uma base de comparação.
Depois desta fase, começa o verdadeiro teste. Os sinais transmitidos pelos sensores são registados numa folha de papel contínua ao longo de toda a entrevista. O entrevistador pode observar os gráficos durante ou depois do teste para ver se os sinais vitais sofreram alterações significativas em relação às respostas dadas para as outras perguntas. Geralmente, uma mudança significativa (como o ritmo cardíaco acelerado, a pressão arterial mais alta ou um nível de transpiração maior) indica que a pessoa está a mentir.
Um examinador experiente que use o polígrafo conseguirá determinar uma mentira com grande facilidade. No entanto, uma vez que a interpretação do examinador é subjetiva, e como diferentes pessoas têm reações diferentes quando mentem, os testes de polígrafo não são perfeitos e podem produzir resultados enganadores.
Quão precisos são os resultados dos testes de polígrafo?
Como a maior parte das pessoas, também me questiono: Será que o detetor de mentiras funciona mesmo? De acordo com dados do FBI, a precisão do teste de polígrafo é de cerca de 87 por cento. Parece-me um valor bastante elevado, e se é realmente assim, por que razão não devem estes instrumentos ser usados com maior frequência? Porém, também tenho noção de que vários investigadores afirmam que os detetores de mentiras não são nem um pouco fiáveis. Por outras palavras, afirmam que a sua exatidão é de zero por cento.
Para ser franco, considero este valor duvidoso. Digamos que, em muitos casos, o teste pode contribuir com indicadores importantes que podem ajudar as investigações policiais, por exemplo. Talvez os resultados indiquem simplesmente que os suspeitos estão a mentir em relação a alguma coisa, sem conseguirem concluir exatamente a quê.
E, claro, algumas pessoas vão conseguir derrotar os polígrafos. Por exemplo, não seria um grande desafio para um psicopata, porque os seus cérebros não funcionam da mesma maneira que o meu ou o do leitor.
Uma pessoa inocente pode falhar no teste do polígrafo? Alguém que diz a verdade pode ser falsamente interpretada pela máquina e acusada de mentir quando não é esse o caso?
A resposta a ambas as perguntas é sim, e existem vários exemplos em que isto aconteceu. As pessoas inocentes podem ter um resultado negativo apenas porque estão nervosas, e é por este motivo que os tribunais não costumam considerar estes testes válidos. A margem para erro é demasiado grande.
A Verdade Vem Sempre ao Cimo
Será possível tornarmo-nos um detetor de mentiras? Talvez. Mas lembre-se de que pessoas diferentes têm talentos diferentes para detetar mentiras.
E os mentirosos também não são todos iguais. Não podemos generalizar ao ponto em que seja correto dizer que todos os mentirosos fazem esta ou aquela coisa em particular. É preciso procurar os padrões. Isto é algo que demora o seu tempo, mas se estiver relacionado com alguém que faça parte do seu círculo próximo, alguém com quem tem uma relação importante, talvez seja boa ideia prestar uma atenção extra, desde o início. É a minha opinião, pelo menos.
Não estou a sugerir que deve ser desconfiado em relação a toda a gente. Mas deve confiar sempre no seu instinto. Se lhe parecer errado, é provável que esteja errado. Ou talvez exista uma explicação absolutamente razoável para a sensação. O mais importante é não deixar que as coisas passem despercebidas durante demasiado tempo.
O livro
Rodeado de Mentirosos (Lua de Papel, 384 págs., €18,50) chega às livrarias esta semana, com tradução de Ana Mendes Lopes