A esperança de todos os venezuelanos que desejavam uma mudança de regime no país durou apenas seis horas. A longa espera, após o encerramento das urnas no domingo passado, 28, terminou com o anúncio da reeleição de Nicolás Maduro para um terceiro mandato presidencial (de 2025 a 2031).
Imediatamente, as ruas e praças da Venezuela encheram-se de multidões. Milhares festejaram a vitória, mas muitos mais contestam os resultados. A tensão no país sul-americano corta o ar que se respira. A Venezuela está (novamente) a “ferro e fogo”. Caracas é o epicentro da revolta. Do lado de Petare, a maior favela da América Latina, os sons metálicos dos tachos e das panelas enchem os céus (ato que se tornou revolucionário na Venezuela contemporânea). Os protestos espalharam-se, nas últimas horas, por todo o território. As tropas patrulham, fortemente armadas, as ruas, 24 sobre 24 horas, reprimindo a população com recurso a gás lacrimogéneo e a balas de borracha. A norte-americana CNN revelou que grupos pró-Maduro já dispararam contra manifestantes pacíficos, no centro da capital. Entre a raiva e a desilusão, estátuas do ex-Presidente Hugo Chávez (1954-2013) terão sido derrubadas. Há a confirmação de dezenas de detidos por “ações criminosas e terroristas”, segundo descreve o governo. O espanhol El Mundo noticiou que, pelo menos, sete pessoas já terão sido mortas, desde que a arrechera (zanga) “rebentou”. Para já, ninguém recua.
No estrangeiro, a diáspora venezuelana chora o desfecho. “Era a última oportunidade de libertarmos a Venezuela da ditadura”, repete-se a cada declaração popular. A oposição não aceita os resultados. “Houve fraude”, acusa. “As provas são concludentes”, assegura.
De acordo com os números divulgados pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE), Nicolás Maduro ganhou a corrida eleitoral com 51,2% (5,15 milhões de votos), enquanto o candidato da oposição, Edmundo González Urrutia, se ficou pelos 44,2% (4,45 milhões de votos). Os restantes oito candidatos obtiveram um total combinado de 4,6% (463 mil votos). As atas eleitorais – que registam o total de votos e o resultado em cada um dos cerca de 30 mil locais de votação – continuam por divulgar. O cenário dos últimos 25 anos repete-se; as dúvidas sobre o futuro da Venezuela multiplicam-se a cada segundo que passa.

Oposição não aceita resultados. “Fraude”, diz
Os resultados eleitorais foram um autêntico “balde de água fria” para milhões de venezuelanos que aguardavam o anúncio do vencedor com expectativa e esperança. A líder da oposição, María Corina Machado, alega “ter como provar” que “houve fraude” nas eleições de domingo (28 de julho), depois de, supostamente, ter tido acesso a cópias de 73% das atas eleitorais, que dão 6,27 milhões de votos a González Urrutia e apenas 2,75 milhões a Nicolás Maduro.
“O futuro da Venezuela depende agora da resistência da oposição e do jogo de força entre os apoiantes externos do regime e os apoiantes de eleições limpas”, diz, à VISÃO, o politólogo Andrés Malamud
Impedida de concorrer às presidenciais, Corina Machado – uma engenheira industrial e professora de 56 anos, com raízes portuguesas, descrita como “um fenómeno político” na Venezuela – reagiu prontamente aos números oficiais do CNE e promete não desistir. Nas ruas, muitos estão dispostos a acompanhá-la.
“Ganhámos, e todos sabem disso”, afirmou, em conferência de Imprensa. “Queremos dizer a todo o país e ao mundo que a Venezuela tem um novo Presidente eleito, e ele é Edmundo González Urrutia. González Urrutia obteve 70% dos votos, e Nicolás Maduro 30%. Esta é a verdade. Parabéns, Edmundo!”, concluiu Corina Machado.
A suspeitas de fraude eleitoral são muitas. Durante a campanha, as sondagens independentes publicadas anteviam uma vitória da oposição com larga vantagem. Um estudo da Edison Research, para The Wall Street Journal – e que foi proibido de ser publicado na Venezuela –, apontava que González Urrutia, um antigo embaixador venezuelano na Argentina e na Argélia, conseguiria 64% dos votos. Nicolás Maduro não ia além dos 31%. Enquanto decorria a votação, sondagens feitas à boca das urnas seguiam a mesma tendência, indicando uma vantagem tranquila para González Urrutia, com mais 20% a 35% dos votos.
Os dados anunciados pelo CNE foram, no entanto, bem diferentes. À VISÃO, o politólogo Andrés Malamud afirma não ter dúvidas de que houve chapelada. “O regime venezuelano não apenas inabilitou as duas primeiras candidatas da oposição [María Corina Machado e Corina Yoris], e limitou o voto de sete milhões de emigrantes, como também prendeu dirigentes opositores e dificultou o momento do voto, com filas compridas e longas horas de espera. Não sendo suficiente para ganhar, difundiu os resultados da eleição sem mostrar as atas das mesas de voto e sem permitir a verificação independente”, destaca.
Numa primeira resposta às acusações da oposição e aos protestos nas ruas, Nicólas Maduro afirma que está em curso uma tentativa de golpe de Estado “de natureza fascista”. O Presidente da Venezuela garante que este é “o mesmo filme” e “com um argumento semelhante” ao que se viveu em 2019. Uma “espécie de filme Guaidó 2.0”, em referência ao período em que o opositor, Juan Guaidó, se proclamou “Presidente interino” do país, um mandato reconhecido por 50 países, mas o qual nunca foi capaz de exercer, carecendo de instituições e de poder real.
Presidente desde 2013, depois de suceder a Hugo Chávez, Maduro dirigiu-se aos apoiantes, na capital Caracas, prometendo “defender a nossa democracia, a nossa lei e o nosso povo”. “Viva Chávez. Chávez está vivo!”, gritou na ocasião.
Recorde-se que dados de um estudo revelados em março deste ano – a Pesquisa Nacional de Condições de Vida (Encovi), publicada pelo Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade Católica Andrés Bello (UCAB) – dava conta de que 51,9% da população da Venezuela continuava a viver na pobreza em 2023. O número era superior ao do ano anterior. Maduro tem governado em anos marcados pelo colapso económico e financeiro, em que a inflação chegou a atingir os 130 000%. Os números mostram uma moderada recuperação da economia, mas a quantidade de pobres manteve-se. E a inflação, tendo descido, continua firmemente acima dos 50%.
O UCAB divulgou estes dados para tentar colmatar a falta de números oficiais e traçar um real retrato da população venezuelana, que viveu também, durante os mandatos de Maduro, a maior onda de emigração da sua História.
Andrés Malamud considera que “o futuro da Venezuela depende agora da resistência da oposição e do jogo de forças entre os apoiantes externos do regime (sobretudo a China, Rússia e Irão) e os apoiantes de eleições limpas (sobretudo os EUA, Brasil e Colômbia, que precisam de estabilizar a Venezuela para estancar o fluxo de refugiados nas suas fronteiras)”. Para o investigador principal no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, a situação é ainda “imprevisível”.
Comunidade internacional “torce o nariz”
O mundo divide-se nas reações à reeleição de Maduro. A maioria delas é de preocupação, desconfiança e condenação. “Mostrem os votos”, apela-se na América Latina. “Evite-se um banho de sangue”, pede-se um pouco por todo o mundo, da esquerda à direita democrática. Mas Maduro não está sozinho nesta luta pelo poder, embora numa primeira análise possa parecer que sim.
O secretário de Estado dos Estados Unidos da América, Antony Blinken, começou por afirmar que o governo norte-americano tem “sérias preocupações de que os resultados anunciados não reflitam a vontade ou os votos do povo venezuelano”. “É fundamental que todos os votos sejam contados de forma justa e transparente, que os funcionários eleitorais partilhem imediatamente a informação com a oposição e os observadores independentes e que as autoridades eleitorais publiquem o apuramento detalhado dos votos”, acrescentou, antes de soltar a declaração que soou a ameaça: “A comunidade internacional está a acompanhar de perto esta situação e responderá em conformidade.”
Acho que chegou o momento de a comunidade internacional tomar uma posição e agir”, defende Sofia Alves, venezuelana que vive em Salreu (Estarreja), “a freguesia mais venezuelana de Portugal
Os governos de Argentina, Costa Rica, Equador, Guatemala, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana e Uruguai assinaram um documento a apelar à realização de uma reunião extraordinária do conselho permanente da Organização dos Estados Americanos (OEA). O encontro realizou-se na quarta-feira (31 de julho), na sede daquele organismo, em Washington D.C., nos Estados Unidos da América. À hora do fecho desta edição, as conclusões ainda não eram conhecidas.
À mesma hora, Brasil, Colômbia e México – países que, nos últimos anos, têm conhecido o impacto da emigração venezuelana em massa – ainda negociavam a divulgação de uma declaração conjunta sobre o tema.
Em quase toda a Europa, as reações acompanham o eixo democrático. O chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, apelou à “total transparência do processo eleitoral” venezuelano. Recorde-se que várias delegações de observadores estrangeiros, que se deslocaram, nas últimas semanas, à Venezuela, para acompanhar as eleições, acabaram impedidas de entrar naquele país, como aconteceu à comitiva do Partido Popular Europeu (PPE), em que seguia o eurodeputado português Sebastião Bugalho.
O Governo português também já reagiu, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, numa mensagem publicada na rede social X (antigo Twitter), em que “saúda a participação popular” no ato eleitoral venezuelano, mas sublinha “ser necessária a verificação imparcial dos resultados”. “Só a transparência garantirá a legitimidade; apelamos à lisura democrática e ao espírito de diálogo”, sublinha o gabinete de Paulo Rangel.

Os fiéis de Nicolás Maduro: de Putin ao PCP
No meio do ruído, Nicolás Maduro parece emergir, sereno, suportado pelo apoio de países governados por governos autoritários, que são, há muito, fiéis aliados do regime venezuelano: China, Irão, Cuba, Nicarágua, Bolívia e Rússia. Vladimir Putin felicitou Maduro pela reeleição, declarando estar pronto para continuar e aprofundar o “trabalho construtivo conjunto” entre os dois países. Num telegrama dirigido ao Presidente venezuelano, Putin lembra a Maduro que “será sempre bem-vindo em solo russo”.
Em Portugal, o Partido Comunista Português (PCP) saúda, em contraciclo, os resultados anunciados pelo CNE. Em comunicado, o PCP repudiou “manobras de ingerência”, que procuram “colocar em causa o processo eleitoral e os seus resultados”, classificando estas eleições como “uma importante jornada democrática, em que participaram milhões de venezuelanos”. O secretário-geral Paulo Raimundo pediu “respeito” pela escolha dos venezuelanos e acusa os críticos de “hipocrisia”.
Órfãos da democracia
Muitos milhões de venezuelanos não puderam votar. No estrangeiro, estima-se que sejam sete milhões. Em Portugal, vivem 44 mil, 30 mil com idade e requisitos para exercer o direito de voto, mas somente 1 600 puderam fazê-lo, nos consulados de Lisboa e Funchal. “As inscrições só abriram durante três dias e era preciso um passaporte venezuelano válido. É um processo difícil, e mais uma forma de o regime impedir a participação eleitoral dos cidadãos”, explica Sofia Alves, venezuelana, filha de pais portugueses, a viver em Portugal desde 2002.
Dirigente da associação Venexos – criada em 2014, com o objetivo de prestar apoio a venezuelanos e luso-venezuelanos a residir em Portugal –, Sofia Alves recorda a “tristeza” que sentiu (e sente) quando os resultados foram anunciados. “Tenho a certeza absoluta de que os resultados não são verdadeiros. A oposição tem provas de que houve fraude, e eu acredito nisso. Não é algo novo”, diz.
Hoje, a “esmagadora maioria” da comunidade venezuelana em Portugal “deseja a queda do regime”, garante Sofia Alves. A mais de sete mil quilómetros de distância, a venezuelana observa com “preocupação” os acontecimentos no país natal, mas continua a sonhar com um novo amanhã. “Espero que isto seja o início do fim” da era Maduro. “Há uma grande mobilização popular, as pessoas foram votar porque queriam mudar o regime, [a fraude eleitoral] foi muito ‘à descarada’… Acho que chegou o momento de a comunidade internacional tomar uma posição e agir.” O futuro, esse, é mais “difícil de prever”. “Levamos 25 anos disto. Houve protestos. Muitas pessoas morreram. Estamos cansados, o futuro é imprevisível”, resume.
A praga latino-americana
Talvez mais nenhum lugar do globo seja tão adverso à democracia como a Améria Latina
As ditaduras do século XXI já não se fazem com tropas na rua. Os novos líderes autoritários da América Latina vestem fato e gravata – embora Maduro prefira o fato de treino estilo-patriótico –, a oposição não deixa de existir, e é “autorizada” a participar em eleições. O candidato do regime “esmaga” nas urnas, naturalmente. O voto popular “legitima” o governo. Os aliados estrangeiros (como a China, a Rússia ou o Irão) são “seguro de vida” junto da comunidade internacional, enquanto aproveitam para “ganhar influência” na região, como alerta o estudo Latin America Needs a Wake-Up Call [A América Latina precisa de despertar, na tradução para português], do think-tank norte-americano The Heritage Foundation, publicado em agosto de 2023
Da lista, constam Miguel Diaz-Canel (Cuba), Daniel Ortega (Nicarágua) e Nicolás Maduro (Venezuela). Ou ainda Nayib Bukele, Presidente de El Salvador, influencer nas redes sociais, auto-intitulado “o ditador mais fixe do mundo”, que apostou na luta contra a criminalidade, e venceu as últimas eleições gerais com quase 85% dos votos, conquistando 54 dos 60 lugares no Congresso salvadorenho (há ainda três deputados de partidos seus aliados). A lista de ditadores nas Américas tem mais candidatos?