No início deste mês, sentaram-se à mesa os que pedalam com cubos às costas. Pela primeira vez em Portugal, os estafetas foram recebidos pela associação que representa as plataformas digitais (APAD). Não percam o próximo episódio desta luta por direitos conquistados há mais de um século.
Habituámo-nos à corrida permanente de motinhas e bicicletas, às cores garridas das caixas térmicas, aos sacos de cartão e às embalagens de ramen. Só ainda não integrámos no horizonte das cidades a dignidade das pessoas que as entregam. Tudo está feito para que não olhemos sequer para elas. A invisibilidade dos estafetas Uber Eats, Glovo e Bolt Foods é o cúmulo do retrocesso civilizacional mascarado de progresso tecnológico: trabalho sem seguro, sem horário, sem salário, sem proteção.
Quando pela primeira vez aqui escrevi sobre o assunto, em plena pandemia, o discurso era o de que estes “trabalhadores essenciais” (lembra-se?) eram heróis sem capa. Só que pouco mudou desde então – ou mudou, para pior. Como prémio por nos terem protegido durante a crise, os estafetas recebem hoje metade do que recebiam então pelas entregas.
Em 2024, há quem trabalhe todos os dias doze horas, sem folga, levando para casa 30€ diários. Pagam a própria bicicleta, mota e seguro, a conta da oficina, o capacete, a caixa térmica, o telemóvel e os acessórios, sem proteção em caso de acidente. Comandados por GPS, são sinalizados pelas aplicações se recusarem aceitar entregas por cansaço ou inconveniência. E castigados, claro, com menos oportunidades. Trabalham sob medo. Quem vive com medo não levanta a voz. Esconde-se no alvoroço das cidades.
Sem um local de trabalho onde se cruzem com o empregador (que é uma app?), estes trabalhadores vivem a mando do Big Brother algoritmo. Na lei da oferta e da procura, é o mercado a funcionar: se houver procura para escravos criam-se escravos e não se fala mais nisso.
Apesar das centenas de decisões em tribunais europeus que as contrariam, as plataformas digitais continuam a defender que são meros intermediários entre o empresário (o estafeta) e o cliente (quem encomenda). Se pensa que esta finta aos direitos laborais ficará pelos trabalhadores pobres, desprotegidos, na sua maioria imigrantes, das aplicações de entregas, desengane-se: este modelo tenderá a impor-se como standard para as relações de trabalho em muitas áreas. A luta pelos direitos destes trabalhadores é a luta pelos direitos de todos.
E têm lutado sozinhos. A conveniência do serviço para os clientes – não me excluo da equação –, aliada à arquitetura deste sistema desumanizante para quem trabalha, faz com que ninguém pare para pensar: como vivem estas pessoas? “Que força é essa, amigo?” Os movimentos de estafetas, como os Estafetas em Luta ou os Estafetas Unidos, que contra tudo e todos têm mobilizado paralisações inorgânicas e as greves possíveis, não têm a atenção mediática de um golo numa distrital de futebol. Todos os dias, milhares de cidadãos acordam com fome em casas sobrelotadas e pedalam, pedalam, como na velha canção, para alimentar o loop de consumo frenético em que vivemos mergulhados. O que pedem é pouco: salário justo, tabelado, com valores mínimos por quilómetro e entrega, seguro de saúde, contacto com o empregador. Reivindicam atenção. E proteção.
Por mais que tudo neste mundo nos convide a não ver e a não querer saber, o interesse e o reconhecimento do outro como humano igual a nós, merecedor dos mesmos direitos, será sempre a fronteira que separa a humanidade da barbárie. A luta dos estafetas é a luta de todos, pelo nosso futuro comum. Não é justo que pedalem sozinhos pela dignidade de todos.
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