A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao caso das gémeas interrompeu as audições até setembro, depois de uma reta final atribulada. Afinal, o que já se sabe e o que falta saber sobre como as duas crianças receberam, em Portugal, um dos tratamentos mais caros do mundo? Vejamos ponto por ponto.
O estranho caso dos emails-fantasma
Um momento tenso entre Maria João Ruela e André Ventura. A assessora do Presidente da República para os Assuntos Sociais não conseguia precisar como Marcelo Rebelo de Sousa lhe tinha pedido para intervir no caso das duas gémeas. O líder do Chega insistia na existência de um email que não estava entre a documentação enviada por Belém à CPI e que Ruela admitia poder ter-se perdido nestes cinco anos, que se passaram sobre o caso. “Se não está aí [o email] é porque me foi transmitido por outra via”, exasperava-se a assessora perante a insistência de Ventura, que queria saber como tinha tomado conhecimento do pedido do filho do Presidente.
Ainda a audição a Maria João Ruela decorria e já chegava à CPI um ofício da Presidência, no qual se explicava que o referido email não existia em Belém. “Verificado o dossier, constata-se que, efetivamente, um tal email não existe nem nos nossos dossiers, nem nos dossiers enviados à PGR e à CPI”, dizia o chefe da Casa Civil, Fernando Frutuoso de Melo, nesse texto, concluindo que, se não estava nos arquivos, nunca tinha existido. “Tal só pode significar que o mail de Sua Excelência o Presidente da República terá sido enviado em papel por mim à Doutora Maria João Ruela.”
Quase uma semana depois, Belém enviava mais dois emails à CPI. Segundo as notícias da RTP e do Correio da Manhã, o email no qual Frutuoso de Melo lhe pedia para intervir, reencaminhando o que lhe havia chegado do Presidente (assim como outro relacionado com o caso), foi encontrado por Maria João Ruela, no dia a seguir à sua audição, na sua caixa de correio e reencaminhado pela Presidência para a CPI.
Uma revelação inesperada
A última semana de trabalhos na CPI ficou marcada por uma revelação inesperada. O deputado do PSD, António Rodrigues, teve acesso a documentação relacionada com o processo, que os pais das gémeas moveram à seguradora que cobria as filhas para a obrigar a pagar o muito dispendioso tratamento que à data estava disponível no Brasil para a atrofia muscular espinhal. Rodrigues assegurou-se de que a informação não estava protegida por nenhum sigilo e entregou-a depois à CPI. A entrega evitou que a comissão avançasse com uma queixa-crime por desobediência qualificada contra a mãe das meninas, Daniela Martins, que se recusava a informar o Parlamento sobre a identidade da seguradora. Com essa informação na mão, os deputados entenderam que não havia necessidade de fazer queixa da mãe.
Um mistério chamado Juliana
A confirmação de que as crianças eram seguradas pela AMIL pode ser essencial para se perceber o caso. Isto porque o facto de as gémeas terem sido tratadas em Portugal no SNS levou a seguradora a poupar milhões com o tratamento disponível no Brasil e que obrigava a uma toma anual, durante toda a vida, com um custo de €300 mil por criança por ano.

À data, a AMIL fazia parte do mesmo grupo do que o Hospital dos Lusíadas, onde as crianças chegaram a ter consulta marcada com a Dra. Teresa Moreno, a médica que viria a segui-las no Hospital de Santa Maria. A consulta foi, contudo, desmarcada pouco antes de os pais terem assegurado que as filhas seriam atendidas no Santa Maria.
Ora, a AMIL tem no Brasil uma parceria com a corretora MDS, na qual, segundo o jornal Eco (que cita fonte oficial do grupo), a companheira de Nuno Rebelo de Sousa será agente. Na página de LinkedIn de Juliana Vilela Drumond, essa informação não aparece, mas o certo é que Juliana está em CC em todas as comunicações feitas por Nuno Rebelo de Sousa sobre o caso, com um Gmail em que o seu nome aparece ligado à palavra “seguros”. Isso mesmo notou o deputado do PSD António Rodrigues, que apresentou um requerimento para ouvir Juliana, aprovado por unanimidade.
Peça-chave para o puzzle
Carla Silva, a antiga secretária do então secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, é outra das peças-chave do puzzle que é este caso. Carla tinha trabalhado, durante anos, no Hospital de Santa Maria, antes de ir para a Secretaria de Estado da Saúde, e foi ela quem marcou a consulta das gémeas naquele hospital, violando a lei ao fazê-lo, uma vez que as crianças deveriam ter sido, antes, referenciadas num centro de cuidados de saúde primários.
Lacerda Sales negou sempre ter dado ordem a Carla Silva para marcar a consulta, e o depoimento da antiga secretária pode ser fundamental. Carla pediu à CPI para ser ouvida à porta fechada. A comissão terá uma reunião de mesa e coordenadores, no dia 13, para decidir se aceita o pedido feito ao abrigo do Artigo 15º, nº 1, alíneas a) e b) do Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares, que permite audições à porta fechada “por uma questão de privacidade ou de matérias mais delicadas”. Mas terá sempre de ser validado pela CPI.
Marcelo mantém suspense
Nunca um Presidente da República foi ouvido numa Comissão Parlamentar de Inquérito. Mais: à luz da lei, só o Supremo Tribunal de Justiça pode decidir em casos que envolvam esta figura do Estado. Marcelo começa por lembrar isso mesmo na resposta que enviou à CPI sobre o pedido de audição, que pode ser por escrito (uma prerrogativa de que gozam também os primeiros-ministros atuais e antigos e os presidentes da Assembleia da República em funções ou não). Feita a ressalva, Marcelo deixa a porta aberta a prestar esclarecimentos, mas só após concluídas todas as outras audições. “No caso vertente, sendo público que um número elevado de cidadãos irá ainda ser ouvido, o Presidente da República, que já se pronunciou publicamente sobre a temática em apreço, reserva a sua decisão quanto a nova pronúncia, para momento posterior a todos os testemunhos, por forma a ponderar se existe matéria que o justifique”, escreveu Rebelo de Sousa.
Audições em agenda
António Costa responderá por escrito à CPI. Os deputados têm até ao dia 6 de setembro para elaborar um questionário, que pode conter até 90 perguntas e ao qual Costa terá de responder num prazo de dez dias a contar da receção. Não se conhece nenhuma relação direta entre o então primeiro-ministro e este caso, a não ser o facto de o pedido, feito pela Presidência, ter sido encaminhado por mail (com outros cinco) para o seu chefe de gabinete, que o reencaminhou para o Ministério da Saúde.
O depoimento da antiga secretária de Lacerda Sales, que marcou, aparentemente de forma irregular, a consulta, pode ser fundamental para se esclarecer alguns contornos do caso
Já Augusto Santos Silva, que à data era ministro dos Negócios Estrangeiros, terá de responder sobre se houve alguma irregularidade na forma célere com que foi atribuída a nacionalidade portuguesa às gémeas nascidas no Brasil, o que era essencial para terem direito a serem seguidas no SNS. Até agora, todos os depoimentos têm sido no sentido de se assegurar que os procedimentos foram os normais (mais céleres quando estão em causa bebés filhos de pais portugueses). Ao contrário de Costa, Santos Silva decidiu depor presencialmente e não por escrito. Aos microfones da Renascença, disse ter “curiosidade” sobre as perguntas que lhe serão feitas
Marta Temido, então ministra da Saúde, será ouvida na CPI, no dia 27 de setembro. Paulo Jorge Nascimento, ex-cônsul de Portugal em São Paulo e atual embaixador de Portugal na República Popular da China, vai depor no dia 13 de setembro, por videoconferência.
O suspeito silêncio do filho
“Pelas razões referidas, não respondo.” A frase foi repetida à exaustão a cada pergunta dos deputados a Nuno Rebelo de Sousa, que tinha começado a audição a invocar o “conselho profissional” dado pelos advogados. Constituído arguido no caso, o filho do Presidente tem o direito ao silêncio para não se incriminar. “Sem respostas, todas as hipóteses estão em cima da mesa, desde o altruísmo mais desapegado ao lobismo com contrapartidas”, atirou Joana Mortágua, deputada do BE.
João Paulo Rebelo, do PS, também ficou sem resposta, quando perguntou, de forma muito direta, se Nuno tinha recebido ou se esperava receber algum tipo de contrapartida pela intervenção no caso. “Adensa esta teoria de que o Dr. Nuno Rebelo de Sousa é um lobista”, advertiu-o o deputado socialista, já depois de António Rodrigues, do PSD, ter ironizado sobre a “história de ficção” de um verdadeiro “Robin dos Bosques da Solidariedade”, uma narrativa que considerou ser insustentável face ao “muro de silêncio” em torno do caso.
A omissão deliberada de Belém
O caso das gémeas chegou ao conhecimento de Marcelo Rebelo de Sousa via email do filho para o seu endereço pessoal. Foi essa mensagem que Marcelo resolveu encaminhar para o chefe da Casa Civil, que, por sua vez, o passou à assessora dos Assuntos Sociais de Belém, para que averiguasse o que se poderia fazer para ajudar as crianças.
Depois de a Presidência ter recolhido informações sobre o caso e depois de Nuno Rebelo de Sousa ter insistido em ter uma resposta, Fernando Frutuoso de Melo acabaria por reencaminhar, por email, todo o processo clínico das crianças para o chefe de gabinete do primeiro-ministro. “Para evitar a habitual interpretação errónea, em particular qualquer tratamento diferenciado, dado o parentesco do peticionário com o Presidente da República, decidi deliberadamente omitir a identificação de quem tinha feito chegar tal solicitação por email à Presidência da República”, disse Frutuoso de Melo, na sua audição na CPI.