A Constituição da República Portuguesa estatui que cabe ao Ministério Público exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade. Quer isto dizer que a promoção processual dos crimes é uma tarefa do Estado e deverá realizar-se oficiosamente, independentemente da vontade dos particulares. Por este motivo, o Código de Processo Penal estabelece que a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito. É o chamado princípio da oficialidade.
Contudo, este princípio não é absoluto, sofrendo as limitações decorrentes de pressupostos de procedibilidade de determinados crimes: os chamados crimes semi-públicos e particulares.
Esclarecendo: imagine que está numa esplanada e, sem se aperceber, lhe furtam a carteira. Cabe-lhe a si decidir se apresenta queixa ou não. Se optar por não apresentar, o Ministério Público, mesmo que tome conhecimento do facto, não poderá instaurar procedimento criminal. Nestes crimes, os semi-públicos, está na disponibilidade do titular do bem jurídico a existência ou não de procedimento criminal.
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Semelhante, mas com um plus, é o caso dos crimes particulares. Os mais comuns são os crimes de injúria ou difamação. Nestes, o Ministério Público só poderá iniciar o procedimento criminal caso o titular do bem jurídico, além da referida queixa, se constitua assistente no processo, ou seja, caso pague uma taxa e constitua um mandatário (ou solicite apoio judiciário).
Nos restantes crimes, os públicos, o Ministério Público tem de instaurar inquérito sempre que adquire a notícia do crime, mesmo contra a vontade do ofendido. É que o sucede, por exemplo, nos crimes de violência doméstica, roubo, etc.
Em regra, o conhecimento dos factos chega ao Ministério Público através dos órgãos de polícia criminal de proximidade (PSP e GNR) e iniciam-se de imediato todas as diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e as suas responsabilidades e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.
Então se é o inquérito que vai investigar a existência de crime, o que é afinal a notícia de um crime (público) que determina a abertura de inquérito?
Como refere João Conde Correia, a notitia criminis não obedece a quaisquer formalidades legais, consistindo na mera informação de que foi cometido um determinado crime, por uma ou por várias pessoas identificadas (notícia específica) ou, então, por uma ou por várias pessoas não identificadas (notícia genérica – como o nosso exemplo supra). Não é, sequer, necessário que o crime seja imputado a pessoa certa e determinada. Ou seja, para que exista uma verdadeira notícia do crime não é necessário que os factos revelados estejam totalmente esclarecidos e demonstrados ou que o seu autor ou autores sejam conhecidos, basta uma aparência de que o crime foi cometido (fumus commissi delicti), uma suspeita.
Concretizando, o raciocínio que o Ministério Público terá de fazer perante uma panóplia de factos que lhe seja apresentada é: os factos denunciados / conhecidos, abstratamente considerados, poderão integrar a prática de um facto, ilícito, típico e punível (crime)?
Se a resposta for afirmativa, o Ministério Público tem de promover a ação penal, sem margem para discricionariedade, arbitrariedade ou juízos de conveniência.
Ao contrário de outros países (por exemplo, Estados Unidos da América, em que vigora o princípio da oportunidade), o Ministério Público dirige o inquérito assistido pelos órgãos de polícia criminal que actuam sob sua directa orientação e na sua dependência funcional. Não pode decidir se investiga ou não mediante os elementos que lhe são trazidos pelas “polícias” ou se deixa de perseguir criminalmente alguém, por qualquer razão política, ideológica ou outra.
Aliás, a lei penal portuguesa até comina com a prática de crime, a falta de promoção da acção penal.
E se a denúncia for anónima?
Como vimos o Ministério Público pode adquirir conhecimento de factos (notícia do crime) por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia. Contudo, o legislador exige cautelas acrescidas no caso de o denunciador não se identificar. Assim, a denúncia anónima só pode determinar a abertura de inquérito se: dela se retirarem indícios da prática de crime ou se constituir crime.
Cabe então aos magistrados do Ministério Público detentores da ação penal ajuizar da sua credibilidade que pode resultar do seu conteúdo ou de outras circunstâncias e, assim, verificar se poderá haver indícios da prática de crime ou não.
Exemplificando, denúncias com o dizeres: “eles são uns corruptos, investiguem!”, sem qualquer outro elemento concretizar, não deverá dar origem à abertura de inquérito, pois que não há qualquer factualidade suscetível de ser investigada! Ou seja, deverão ser comunicados factos concretos de onde se possam extrair indícios da prática de crime. Nas situações de fronteira deverá, em nosso entender, proceder-se a diligências para confirmar a existência de crime.
Aqui chegados, em jeito de conclusão, não instaurar inquérito apenas é opção se não houver as condições de procedibilidade do procedimento criminal (queixa / constituição de assistente) ou se os factos denunciados, sejam tão vagos e imprecisos que não permitam ser objecto de qualquer investigação.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
Numa esplanada, acompanhados de uma bebida fresca e com, geralmente, tremoços à mistura, os caracóis são um petisco muito popular entre os portugueses nos meses de verão. Entre caracóis e caracoletas – de maiores dimensões – o seu consumo prolonga-se entre maio e o início do mês de setembro. Apreciado por muitos e odiado por outros, os caracóis, constituídos maioritariamente por água, são um alimento muito nutritivo e possuem um conjunto de vitaminas e minerais benéficos para a saúde de quem os consome.
Em Portugal a produção destes moluscos é escassa, pelo que a maioria dos caracóis que se encontram à venda têm origem em Marrocos, sendo a espécie mais consumida a Theba Pisana.
São compostos por água – um dos principais benefícios dos caracóis é a sua constituição – principalmente água – o que o torna um alimento pouco calórico e benéfico para quem quer perder peso.
Ricos em proteínas, baixos em gordura e colesterol – estes pequenos animais são uma fonte muito rica de proteína magra, muito útil na reparação dos tecidos do corpo. Com cerca de 16 gramas de proteína a cada 100 gramas de caracol, são também baixos em calorias e pobres em gorduras e colesterol, mesmo quando cozinhados em restaurantes (onde se misturam com outros ingredientes).
São ricos em minerais – Minerais como o magnésio, fósforo, selénio, cálcio e o zinco que desempenham papéis cruciais na manutenção da saúde óssea, regulação do metabolismo e suporte do sistema imunológico representam outro dos benefícios dos caracóis. São ainda muito ricos em ferro, um mineral muito importante na formação de hemoglobina, que auxilia o transporte de oxigénio no organismo, e por isso, especialmente benéficos para pessoas com anemia.
Uma fonte de vitaminas – Para além dos minerais, estes pequenos seres incluem na sua composição vitaminas A, E, e do complexo B – como a vitamina B12, essencial para a saúde do sistema nervoso.
Todas estas características tornam o caracol um alimento muito rico para quem o consome e ideal para quem quer perder peso pelas baixas calorias que possui. Mas atenção que podem possuir, de forma semelhante aos tremoços, o excesso de sal, o que poderá ser prejudicial à saúde.
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Ademais, muitas vezes cozinhados em casa, devem ser sempre bem limpos, uma vez que são um animal com muito contacto com o chão.
Volta e meia ainda acordamos a meio da noite a sonhar com o Legion 9i – o portátil mais poderoso que já nos passou pelas mãos e, garantidamente, um dos mais completos. Tão completo que até chegamos a perguntar se não caía em alguns exageros. Pois bem, este Legion 5i é o modelo da Lenovo que tenta garantir aquilo que importa numa máquina de gaming, mas sem cair em exageros – também para que o utilizador possa otimizar cada euro investido.
Elevada sobriedade
O primeiro grande destaque do Legion 5i não é algo que tem, é na realidade algo que não tem. Não tem aquela exorbitância visual que é muito típica dos computadores de gaming. Não há sistemas LED RGB (pelo menos na versão que está disponível em Portugal), nem padrões exóticos. O único elemento mais ‘fora da caixa’ é uma grelha de ventilação com apontamentos azuis e que vem como um acessório opcional para usarmos na traseira do portátil. É, no global, um equipamento bastante sóbrio do ponto de vista visual, o que não é obrigatoriamente mau. Aqui claramente a função supera a forma.
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Mas isto não significa que este seja um portátil com uma qualidade de construção desleixada. Não é. Temos um equipamento sólido, robusto, de toque suave em toda a sua estrutura e com uma boa distribuição de peso, que nos permite, por exemplo, levantar a tampa apenas com um dedo sem grande esforço. A dobradiça dá-nos uma amplitude de 180 graus e tem uma boa firmeza.
Ainda dentro daquilo que é a estrutura física, e como tem sido apanágio dos portáteis da Lenovo, temos a destacar o muito bom teclado incluído. As teclas estão bem espaçadas, têm uma resposta rápida e vincada q.b., existe uma ligeira concavidade que aumenta a eficácia do nosso teclar e até temos um teclado numérico dedicado. Já o trackpad é bastante suave ao toque, mas sentimos que a resposta dos dois botões podia ser mais robusta, dando-nos alguma sensação de ligeireza que não encaixa com o restante perfil do Legion 5i.
Este não está, também, entre os portáteis de videojogos mais práticos que já nos passaram pelas mãos. Tanto o peso como a espessura são consideráveis, pelo que torna-se uma máquina pouco convidativa a grandes ‘passeios’.
Vamos a jogo
Como não há grandes floreados visuais, o primeiro elemento que nos remete para o facto de estarmos perante um computador de videojogos é o ecrã. Mais especificamente a taxa de atualização. O Legion 5i entrega uma taxa máxima de 165 Hz, o que já é mais do que suficiente para a esmagadora maioria dos jogos e jogadores – diríamos mesmo que só jogadores profissionais ou aspirantes a essa posição é que não ficarão satisfeitos com o nível de fluidez que podemos ter diretamente no portátil.
Quanto à qualidade do painel propriamente dita, gostamos bastante do nível de resolução e nitidez, destacamos também as cores fortes e apuradas, sobretudo os tons vermelhos, gostávamos de ter visto contrastes mais apurados, é certo, mas para um painel LED os resultados são convincentes, e o nível de brilho não sendo elevado, é mais do que suficiente para as exigências do dia a dia.
Quanto ao desempenho geral é muito bom para praticamente todas as tarefas de produtividade, sendo inclusive uma opção para quem procura fazer edição de fotografia e de vídeo numa perspetiva de aprendizagem. Aliás, suspeitamos que é por isso que este computador de gaming acaba por não ter assim tanto de gaming no seu visual, para que possa ser uma opção para outros perfis de utilizadores, sobretudo numa altura em que o regresso às aulas faz aumentar a procura por máquinas versáteis.
Mas a Legion é uma linha de portáteis de videojogos e neste campo o desempenho também é bastante positivo. Em resoluções mais baixas (Full HD) conseguimos jogar com níveis de fluidez que permitem atingir os fotogramas por segundo (fps) máximos que este ecrã disponibiliza. Em resoluções mais altas (Ultra HD), o desempenho continua a ser sólido, mas, dependendo do jogo, terá de abdicar de fluidez para ter maior fidelidade visual. Ou seja, este é um computador capaz de executar praticamente qualquer jogo atual, ainda que não o possa fazer com ‘tudo no máximo’ em todos os jogos.
Um fator que a Lenovo faz questão de destacar sobre este computador é o sistema de dissipação, que apelida de ColdFront. Segundo os nossos testes, o sistema é eficaz a evitar que a máquina atinja níveis elevados de temperatura ‘na pele’ e apesar de o ruído ser audível, está longe de ser um portátil ensurdecedor, considerando outras máquinas que já passaram pelo nosso laboratório.
Lenovo Vantage
Esta ferramenta permite alterar o modo térmico do portátil: silencioso, equilibrado ou alto desempenho. Podemos ainda ativar o modo extremo, que coloca o processamento e a dissipação no máximo. E sempre que ativamos um modo diferente, as luzes em torno do botão de energia, no portátil, mudam de cor para refletir em que modo está. Este software permite ainda definir teclas macro para os jogos, ativar apoios (como assistência de mira) ou ajustar o perfil de som ao conteúdo que estamos a ver.
Otimizar o investimento
Apontamentos finais para três áreas distintas. No capítulo da conectividade, nota excelente para o generoso e bem distribuído número de ligações – o único elemento que trocaríamos era a porta microSD por uma SD de ‘tamanho inteiro’. Nas videochamadas, não ficando estarrecidos com a qualidade que a câmara disponibiliza, consideramos que cumpre apenas os mínimos para aquelas reuniões de ocasião. Por fim, a autonomia, que nos dá cerca de três horas e meia de utilização, um valor que está em linha com o que é expectável para um portátil de jogos minimamente… portátil.
Contas feitas, apesar de não se destacar de forma espetacular em nenhuma área, é a conjugação de características sólidas com bom desempenho a um preço razoável (para uma máquina de gaming) que torna este portátil apelativo. Não é um negócio bombástico, mas é manifestamente justo. Uma boa opção para quem tem o orçamento mais limitado, mas não abdica de uma experiência de utilização muito competente.
Tome Nota Lenovo Legion 5i Gen 9 16IRX9 | €2069 lenovo.com/pt
Benchmarks PCMark 10 Extended: 10398 • Essenciais 10881 • Produtividade 10357 • Criação Conteúdo Digital 13757 • Jogos 20374 • Time Spy 10237 • Time Spy Extreme 4776 • Wild Life 48439 • Wild Life Exreme 18019 • Fire Strike 23304 • Fire Strike Extreme 11567 • Fire Strike Ultra 5874 • Night Raid 62625 • Port Royal 13464 • Solar Bay 96783 • Steel Nomad Light 22937 • Steel Nomad 2094 • Speed Way 2410 • Cinebench R23: CPU Single 1931 • CPU Multi 18579 • Cinebench 2024: CPU Single 130 • CPU Multi 1666 • GPU 22984 • Final Fantasy XV (FHD, Standard) 13721 • Final Fantasy XV (4K, High) 4026 • Autonomia (PCMark 10 Modern Office, Modo equilibrado) 3h28
Ecrã Muito bom Produtividade Muito bom Jogos Muito bom Conetividade Excelente
Desengane-se: apesar do título, desta vez o tema da newsletter não é o ataque iminente no Médio Oriente ou os novos caça F-16 que chegaram ontem à Ucrânia para continuar a guerra na Europa. Trata-se antes de uma violência bem mais palpável, que se calhar até acontece numa casa ao lado da sua ou com alguém que lhe é mesmo próximo.
Leio estes números e fico a pensar se haverá neles algo de bom, se é que é possível encontrar algo de bom em histórias com contornos desta natureza. Mas, só por uns minutos, analise comigo os dois lados da moeda.
A marca portuguesa de vestuário +351, fundada por Ana Penha e Costa, em 2014, tem-nos brindado com várias parcerias com ilustradores e outros artistas visuais. Em boa hora chega La Dolce Vita, a coleção desenhada pela arquiteta e designer Joana Astolfi.
A nova colaboração, composta por oito peças em algodão orgânico (preços entre €18 e €190), fabricadas em Portugal, segue o espírito da +351, inspirado na cidade, no surf e nas artes, mas é disruptiva como o trabalho de Joana Astolfi, que pegou nas peças de corte unissexo e minimalista e vestiu-as de diversão e prazeres da vida, em dois tons, o branco-cru e o azulão.
Um gelado, um limão, uma concha de vieira, um avião de papel, lábios, um casal a dançar ou uma figura feminina a mergulhar são alguns dos ícones que formam o padrão representado nas calças, casaco e tote bag. Esses mesmos desenhos foram estampados e bordados em três t-shirts (manga cava, curta e comprida), num boné e numas meias, para que nada falte na indumentária de verão.
+351 > R. Paiva de Andrada, 1, Lisboa > T. 21 137 9398 > seg-dom 10h-20h > R. da Boavista, 81 C, Lisboa > T. 21 587 3134 > seg–dom 10h-20h > plus351.pt
A certa altura, uma das personagens comenta: “Os vivos têm dificuldade em entender os moribundos.” E essa acaba por ser a síntese, ou o objetivo inalcançável, do filme. Mais que Nunca não é, naturalmente, um filme de zombies, mas não deixa de ser um filme de mortos-vivos – o que, na verdade, somos todos, pois essa é a condição humana. Centra-se em Hélène, uma jovem mulher com uma doença rara e cuja morte é iminente.
O tema não é propriamente novo no cinema, mas Emily Atef, realizadora franco-iraniana, nascida em Berlim, tenta dar-lhe uma perspetiva diferenciada, que vai para lá de uma exposição direta e violenta do drama. Inspira-se, em parte, na experiência vivida por si, durante a doença da mãe.
Na primeira parte do filme, em Bordéus, talvez a mais dura, o drama cose-se e descose-se, roçando traços de loucura. Não é apenas o drama de quem parte; é também o de quem fica, concretamente o marido/companheiro que não sabe como lidar com a morte iminente da mulher. Um dramalhão suficientemente realista para deixar qualquer um incomodado.
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Na segunda parte, vislumbra-se uma ideia de libertação. A partida para a Noruega é, não só literalmente, uma lufada de ar fresco. Na proximidade com a Natureza, numa vivência quase eremita, pretende-se entender a vida e a morte. O filme nunca deixa de ser duro, mas não nos traz a crueldade explícita de um Michael Haneke, ao obrigar-nos a assistir a um padecimento físico até ao fim. Levanta, antes, questões filosóficas, e até morais, sempre seguindo essa ideia de que os vivos dificilmente entendem os moribundos.
Mais que Nunca, a primeira obra de Atef, estreou-se em Cannes. Não sendo genial, é contundente, em parte graças à grande interpretação de Vicky Krieps. E os espectadores mais atentos têm de viver com a informação de que o ator principal, Gaspard Ulliel, morreu pouco antes da estreia, num acidente de esqui – irónico e trágico. Essa morte, sim, uma verdadeira tragédia.
Mais que Nunca > De Emily Atef, com Vicky Krieps, Gaspard Ulliel, Bjørn Floberg > 123 min
Aos 9 anos, Inês Torres recebeu um livro sobre o Antigo Egito como presente do pai, e poucas horas de leitura bastaram para que tivesse certezas sobre o seu destino: queria ser egiptóloga. Estudou Arqueologia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, mudou-se para Oxford para frequentar o mestrado em Egiptologia e fez o doutoramento na disciplina de coração em Harvard, onde também foi professora de Egípcio Clássico, entre 2017 e 2020. Aos 31 anos, de volta a Portugal, acaba de lançar o livro Como É Que a Esfinge Perdeu o Nariz (Editorial Planeta, 336 págs., €16,90), com cerca de 50 perguntas e respostas sobre a Egiptologia, para ser lido sem ordem certa, numa linguagem simples e acessível. Sacudir o pó de uma disciplina aparentemente mais séria e divulgá-la é, aliás, uma das suas missões, trabalhada, para já, numa página de Instagram (@umaegiptologaportuguesa) e através do podcast Três Egiptólogues Entram Num Bar. Natural de Barcelos, está de mudança para Lisboa, para fazer um pós-doutoramento na Universidade Nova de Lisboa, onde é também investigadora.
Queria ser egiptóloga desde miúda, mas começou por estudar Arqueologia. Porquê? Em Portugal não existia uma licenciatura em Egiptologia. O meu pai aconselhou-me a ter uma base de conhecimento geral sobre História ou Arqueologia. Escolhi Arqueologia, porque adoro a parte da cultura material dos objetos, dos artefactos. Poder ver essas peças traz ao de cima o facto de estes indivíduos terem existido. Como são tão distantes de nós no espaço e no tempo, ao vermos algo que foi criado por estas pessoas imediatamente nos transporta para esse passado.
É interessante perceber como algo tão longínquo chega aos nossos dias. Gosto sempre de fazer este exercício: pensar na História de Portugal, que nem sequer 900 anos tem, e na diferença, em termos de civilização e cultura, de nós, portugueses de hoje em dia, versus D. Afonso Henriques. Há uma tendência geral de pôr os egípcios numa caixa, como se eles pensassem todos da mesma maneira. Como, para os nossos cérebros, é difícil imaginar 3 500 milénios de História, acabamos por compactar tudo num só momento. Quando às vezes digo “os egípcios”, estou a fazer uma generalização muito grande. Os egípcios do tempo da grande pirâmide não são os mesmos do tempo de Ramsés II.
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E como se passa essa mensagem? É muito importante para mim que as pessoas percebam que, quando falamos das culturas [egípcias], estamos a falar de pessoas. Eram muito diferentes de nós, mas continuavam a ser seres humanos. Mesmo dentro do mesmo período histórico, a forma como teriam vivido as pessoas da elite versus os camponeses seria muito diferente. Eram mundos à parte, tal como hoje, e realidades bem díspares. Tento sempre realçar que, apesar de termos tanta informação sobre o Antigo Egito, não sabemos tudo. Nem sempre é possível responder a todas as perguntas com a clareza que desejaríamos.
A divulgação do conhecimento é essencial para a construção de uma sociedade mais justa e democrática, até porque muitos investigadores são pagos com dinheiro público, o que torna ainda mais importante esse retorno
Como surgiu a ideia deste livro? Foi um convite lançado pela Andreia Rasga, que trabalha na Planeta [editora], mas já o imaginava há muito tempo. Tinha esse sonho de poder escrever um livro que não fosse só académico. Para mim, é igualmente importante a divulgação do conhecimento. Considero que é algo essencial para a construção de uma sociedade mais justa e democrática, até porque muitos de nós, investigadores, trabalhamos ou somos pagos com dinheiro público, o que torna ainda mais importante esse retorno. Tinha essa ideia de criar algo que fosse interessante, divertido e desse a oportunidade às pessoas de aprender o que querem e, ao mesmo tempo, humanizar estes indivíduos de um passado tão distante e, contudo, ainda muito parecidos connosco em alguns aspetos.
No caso da alimentação. Alfarroba, mel, tâmaras para adoçar; o pão e a cerveja tão presentes na dieta egípcia. Continuamos a encontrar-se pontos em comum até com Portugal? Sem dúvida. A alimentação, os ingredientes – até porque temos uma cultura mediterrânica, apesar de não estarmos no Mediterrâneo, tal como o Egito –, muitos dos frutos e vegetais que eles comiam, nós também usamos. Era essa também a minha ideia. Claro que as pirâmides, os túmulos e os templos são importantes, e menciono-os no livro. Mas eu queria ir para além disso. Às vezes, centramo-nos muito na grandiosidade, que é fabulosa, destes monumentos, mas acabamos por nos esquecer das coisas mais comuns. O que come uma pessoa? Como se diverte? Como descansa? Quem tem a possibilidade de descansar? Provavelmente um camponês não teria essa possibilidade. Isso leva-nos a pensar um pouco em como se formam as desigualdades e em como o poder acaba por ser mantido por uma elite.
As primeiras perguntas do livro são sobre a escrita hieroglífica. Esta opção tem que ver com o facto de a Egiptologia ter também começado por aí? Não houve bem uma ordem quando juntei as perguntas. A escrita, porém, é uma das maiores curiosidades que as pessoas têm. Acabei por começar com a escrita, pareceu-me natural. O deciframento dos hieróglifos é um marco importante que não pode ser ignorado pela Egiptologia, porque abriu as portas a uma quantidade incrível de fontes e de recursos, os quais nos ajudam a perceber os egípcios pelas próprias palavras. Em setembro deste ano, celebram-se os 200 anos do deciframento dos hieróglifos e também se comemoram os 100 anos da descoberta do túmulo de Tutankamon. É um ano importante para a Egiptologia.
Pode dizer-se que se celebram os 200 anos da Egiptologia? Depende muito de egiptólogo para egiptólogo. Há quem olhe para o decifrar dos hieróglifos como o momento de criação da disciplina enquanto área científica. Mas, ao fazer isto, estamos a posicionar o estudo arqueológico num local secundário. Há quem não goste muito disto. Eu acho sempre um pouco estranho marcarmos o nascimento de uma área científica… Não podemos falar de Arqueologia em 1822, mas havia o colecionismo. É, de facto, controverso.
O que tem tido uma grande influência na Arqueologia e Egiptologia é a criação de modelos tridimensionais digitais e a utilização de drones
Os emojis não são os novos hieróglifos mas andam lá perto? É sempre complicado fazer essa comparação, porque os hieróglifos são uma escrita que acaba por representar toda uma língua, enquanto nós não conseguimos escrever coisas só com os emojis. De qualquer forma, o que ressalta aqui é a importância do visual. A escrita hieroglífica tem uma componente visual muito importante, que não temos na escrita latina. Por exemplo: a palavra “prever” (o futuro) era escrita com o símbolo de uma girafa no final da palavra, porque, comparativamente a um Homem, a girafa consegue ver mais à frente do que um ser humano; ela consegue ver as coisas mais longe. Essa parte visual, quando traduzimos, perde-se um pouco.
Por que razão a funerária é das áreas mais estudadas do Antigo Egito? É um acidente de preservação. Isto acaba por dar um pouco a ideia errada de que eles eram obcecados com a morte. É verdade que se preparavam muito para a morte, porque gostavam muito de viver e queriam fazê-lo eternamente. Mas é importante pensar que o que sobrevive do Antigo Egito são monumentos funerários, porque eram construídos no deserto, onde não vive quase ninguém e o clima é muito seco. A preservação destes elementos arquitetónicos faz-se da melhor forma. A grande maioria das cidades onde eles viviam o seu quotidiano foi continuamente habitada, desde o Antigo Egito até aos dias de hoje. É difícil fazer escavação numa cidade, custa muito dinheiro. Temos menos provas e evidências citadinas, das rotinas das pessoas, e isto também porque as cidades eram situadas à beira-rio, com climas mais húmidos e onde é mais difícil preservar os artefactos e edifícios.
A funerária é a sua área de especialização. Qual a razão desta escolha? Interessa-me muito a parte funerária mas também a social. A relação entre a morte e a memória. Para viverem eternamente, os antigos egípcios tinham de ser relembrados. Não tem só que ver com o túmulo mas também com fazer oferendas em nome dos mortos. Ora, fazer oferendas significa que pessoas têm de ir lá e, portanto, os túmulos egípcios estariam constantemente cheios de pessoas. Interessa-me o facto de só sobrevivermos se formos relembrados. É isso que eu estudo, essa ligação entre os mortos e os vivos e a forma como eles acabam por interagir nestes espaços tumulares.
O que a fascina mais na civilização do Antigo Egito? As pessoas. Gosto de perceber a psicologia. O que nos faz humanos, o que nos diferencia. E os antigos egípcios têm algo que valorizo muito. Em teoria, pelo menos; na prática, não o sabemos. Em teoria, existia muito a ideia de justiça, de verdade, de equilíbrio, que era um conceito a que os egípcios chamavam “Ma’at” – um conceito e uma deusa muito importante. E Ma’at era algo praticado; essa ideia de praticar o bem, de ser justo, de dizer a verdade. Era uma responsabilidade do rei assegurar que existia justiça, que o país estava equilibrado, que não havia guerras. Num nível macro, havia essa responsabilidade de manter o Ma’at. Mas num nível individual, quem não fizesse o bem, quem não dissesse a verdade ou ajudasse o próximo não tinha direito ao Além, à eternidade. O que de certa forma acaba por ser uma ideia quase adotada pelos cristãos. Não havia inferno, mas eles tinham uma segunda morte.
Já participou em alguma escavação no Egito? Participei em janeiro; pela primeira vez, estive no Egito em trabalho de campo. Foi uma experiência muito enriquecedora. Escavar no Egito não é fácil, há todo um processo burocrático e administrativo que é preciso fazer com muita antecedência. Tive a sorte de estar num sítio absolutamente fantástico. Na atual Luxor, antiga Tebas, há um complexo religioso que é um dos mais importantes do Antigo Egito, o templo de Karnak. Dentro dele temos o templo principal que é dedicado ao deus Ámon e, depois, outros templos consagrados a outros deuses, e um deles é para a deusa Mut, que era consorte ou mulher do deus Ámon. Estive nesse templo mais pequenino; não escavei no templo em si, mas atrás, onde estão os edifícios utilizados pelos sacerdotes e membros da administração do templo e que trabalhavam aí.
Os avanços tecnológicos ajudam nas escavações ou continua tudo a obedecer a um modelo mais tradicional? O tradicionalismo numa escavação acaba por depender muito de quem está à frente dela e das possibilidades financeiras de cada um. Nem sempre é possível ter as últimas tecnologias disponíveis. Mas o que tem vindo a ter uma grande influência na Arqueologia e Egiptologia é a criação de modelos tridimensionais digitais e a utilização de drones, por exemplo para tirar fotografias e fazer fotogrametria. Tiram-se várias fotografias de uma área ou de um objeto e elas são usadas na criação de um modelo tridimensional, que pode ser depois manipulado nos nossos computadores.
Página de Instagram, podcast, agora o livro. Este seu movimento de tornar o Antigo Egito mais acessível a todos é também mundial? Sim, sinto muito isso na Europa e nos Estados Unidos da América. Há uma tentativa significativa no sentido de se divulgar assuntos que tradicionalmente não teriam saído do meio académico. Isso para mim é uma missão, quase um dever de um investigador, especialmente daqueles que trabalham em países como Portugal, onde há mais falta dessa divulgação. Não quero estar a denegrir o trabalho dos investigadores que vieram antes de mim – antes pelo contrário. O que quero dizer é que os livros de Egiptologia de autores portugueses são extremamente importantes e interessantes, é também neles que acabo por me apoiar para fazer o meu trabalho, mas têm uma linguagem mais formal e não são para toda a gente.