As autoridades americanas enviaram um questionário às universidades portuguesas com quem têm protocolos de colaboração. Em traços muito largos, a continuação do apoio às instituições depende da não colaboração com “regimes malignos”, se estas escolas defendem ou não as mulheres da “ideologia de género”, se se fala das alterações climáticas, se se apoiam iniciativas para acabar com a discriminação ou se há contactos com partidos socialistas ou comunistas.
Aconselho vivamente a ler a lista de perguntas na sua totalidade. É um bom exemplo de várias das vertentes do processo revolucionário em curso nos Estados Unidos da América. Quer-se acabar, entre outras coisas, com todas as políticas que promovam a inclusão, a diversidade e a equidade. O plano é destruir todas as instituições que tentam apoiar minorias historicamente discriminadas, implodir todas as tentativas de tornar a sociedade mais coesa, criar barreiras sociais que não permitam a certos grupos sociais ter oportunidades.
É todo um novo mundo que se quer criar, um regime que impõe a verdade e que não tolera qualquer contraditório. Para isso é fundamental acabar com qualquer espaço onde se produza pensamento, onde haja debate, onde se investigue, onde se incentive o livre debate de ideias. Não surpreende assim o ataque feroz que o regime trumpiano tem feito às principais universidades americanas. A chantagem financeira nem se disfarça: ou promovem o que a nova ordem defende ou ficam sem financiamento e condenadas à irrelevância.
Seja como for, é esta gente que agora manda na ex-terra dos livres e que quer rapidamente transformá-la numa autocracia. Se querem acabar com políticas promotoras de diversidade, equidade e integração, se não querem o livre debate ou o contacto com outras realidades políticas e ideológicas no seu país, é normal que não apoiem escolas que o façam por esse mundo fora. Nada mais normal e legítimo.
O que não é normal e legítimo é a intromissão na mais sagrada regra das universidades: a sua autonomia.
O Estado ou qualquer outra instituição privada ou pública, nacional ou estrangeira, pode doar dinheiro a uma universidade, não pode é interferir nas suas liberdades e atividade académica.
Não há qualquer dúvida: as perguntas que foram feitas às universidades portuguesas violam os tais princípios inegociáveis.
Um ataque desta violência por parte de um governo estrangeiro a instituições tão relevantes da nossa comunidade tem de ter uma resposta.
Aguardei que o ministro da Educação dissesse alguma coisa sobre o assunto: nada. Ou seja, Fernando Alexandre não acha este ataque à autonomia universitária digno de uma palavrinha que seja.
Mas o que mais me surpreendeu foi o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros nada ter dito.
Não é por sabermos Paulo Rangel um lutador pela liberdade (quem não se lembra da claustrofobia democrática?), é tão simplesmente por desempenhar as funções que exerce. É ele que tem de dizer ao governo americano que a sua atuação é intolerável e que Portugal não aceita esse tipo de interferências nas nossas universidades.
Mas sejamos justos, tinha de ser o Governo português a tomar uma posição clara. Ou seja, Luís Montenegro não podia deixar de dar indicações a Paulo Rangel para que atuasse com a necessária dignidade.
O problema é que este tipo de comportamento perante a nova Administração Trump está a tornar-se assinatura deste Governo. Ouço Nuno Melo a não pôr em causa a posição dos EUA perante a NATO; vi o ministro Pedro Reis a achar normal um inacreditável pedido de certificação às empresas portuguesas para garantir o cumprimento das leis americanas, que não é mais do que um ato de suserania económica; quando os líderes ocidentais condenaram em coro Trump por causa do que ele disse sobre Gaza, Montenegro ficou mudo e quedo.
Mais, não consigo encontrar frases condenatórias, tomadas de posição ou sequer chamadas de atenção do Governo português ou dos seus membros sobre os inúmeros atentados de Trump à democracia, à economia global ou ao que quer que seja que este pretendente a ditador tenha dito ou feito. Nada.
Pode ser cobardia, claro está, aquela que os bullies como Trump adoram e que os faz sempre exigir mais e mais. Pode, porém, ser outra coisa.
Em 2016, Montenegro disse que se absteria na eleição entre Hillary Clinton e Trump. Já era grave, mas a seguir aconteceu o que aconteceu e pode ser que ele tenha mudado de ideias. Mas há poucos meses, depois da tentativa de golpe de Estado e de tudo o que Trump anunciava, Hugo Soares, o, de facto, segundo homem mais poderoso do País, disse que teria muita dificuldade em escolher entre o atual Presidente dos EUA e Kamala Harris.
Talvez não fosse má ideia aproveitar a campanha para esclarecer se Montenegro e Hugo Soares já perceberam quem Trump é. Até agora, os atos e palavras não têm sido de forma a deixar-nos sossegados.
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