Em cima da grande mesa corrida de madeira, o epicentro deste atelier de design para pessoas com mais de 60 anos, encontram-se pedaços de tecido com imagens tipicamente japonesas. A debruar os contornos dos desenhos, coloridas linhas de bordar dão um toque personalizado ao trabalho artístico. Estas são algumas das 150 peças, ultimadas nas vésperas da partida, que seguiram viagem até ao Japão, nas malas dos dois mentores do projeto A Avó Veio Trabalhar e de três avós, que é como carinhosamente chamam a quem aqui escolhe passar os dias.

Esta aventura que se inicia com um périplo de quase 24 horas de escalas até chegarem ao continente asiático tem um culpado declarado: o jornalista japonês Yukio Mizutani, 53 anos, que atualmente vive com a sua família (mulher e dois filhos pequenos) em Torres Vedras.

Descoberta As mãosdestas avós seduziram Yukiode tal forma que o jornalista já escreveu dois artigossobre o projeto paraa imprensa japonesa

Foi ele que um dia, em passeio pela Poço dos Negros, na altura uma rua lisboeta em ascensão turística, deu de caras com a loja desta associação que quer ajudar as pessoas a envelhecer de forma positiva, combatendo, com alegria, a solidão dos mais velhos.

Yukio gostou tanto ou tão pouco do que descobriu que escreveu dois artigos sobre o projeto e as avós que o preenchem para revistas japonesas. Isso foi pouco antes de decidir mudar-se para Portugal, logo a seguir à pandemia.

Depois, tornou-se amigo da casa e levou alguns produtos saídos destas mãos para serem vendidos na maior livraria do Japão. O êxito foi tal que, no seguimento desses pop-ups, o embaixador de Portugal em Tóquio endereçou um convite à associação para se fazer representar no país do sol nascente, mostrando como é possível tratar os mais velhos com dignidade, ocupando-os de forma válida. Daí a estarem três avós a caminho do Japão foi um ápice – ao mesmo tempo que o mundo está de olhos nesse país por causa da exposição universal de Osaka, que se inaugurou no dia 12 de abril.

Aproveitar até ao tutano 

Yukio está expectante, do outro lado do mundo. Enquanto dá os últimos retoques nesta digressão, lembra as relações estreitas que sempre existiram entre os dois países: “Antes de mais, o Japão tem uma longa e profunda relação com Portugal, o primeiro país ocidental a visitar-nos, há cerca de 500 anos. Recebemos muitas heranças, incluindo o cristianismo e algumas armas. Em termos culturais, várias palavras japonesas são de origem portuguesa.”

Tal como por cá, o Japão debate-se com uma das populações mais envelhecidas do planeta e também bastante solitária (aproximadamente 125,7 milhões têm mais de 65 anos, o que representa cerca de 30% dos habitantes do país). E por isso se espera que, ao disseminar este projeto por lá, ele possa desencadear ações nas comunidades e em quem enfrenta desafios semelhantes. “Acreditamos que muitas pessoas se sentirão encorajadas pelo ato de uma mulher idosa viajar de Portugal para o Japão de avião”, nota o jornalista. 

Nesta excursão de 15 dias, a comitiva de cinco portugueses visitará Nagasaki, Fukuoka (cidade de onde é natural a família de Yukio) e Tóquio, com um programa bastante intenso – para aproveitar a experiência até ao tutano. Ao ombro terão sempre pendurados os coloridos tote bags que imprimiram com o mote que os alimenta: “Old is the new young.”

Na primeira paragem, haverá visitas de cortesia ao vice-governador da província de Nagasaki e ao cônsul honorário de Portugal (uma figura de relevo no mundo dos negócios), experimentarão vestir um quimono em Dejima, um antigo entreposto comercial português, e aprenderão a fazer bordados exclusivos da região. E no meio disto tudo, ainda serão entrevistadas por um youtuber local. 

“Ela fê-lo para si”

Cada trabalho é único, feito à mão por uma “avó”. Isso nota-se nas etiquetas, personalizadas com a fotografia de quem o finalizou, com tempo, para valorizar a dedicação e o talento (“Ela fê-lo para si”). 

Há dez anos que o projeto A Avó Veio Trabalhar se esforça por combater o idadismo e, sobretudo, a solidão de quem já ultrapassou os 60. A designer Susana António teve a ideia de criar um estúdio criativo que desse guarida às avós, fazendo com que se sintam úteis, valorizadas, numa altura da vida em que a sociedade tende a descartá-las. Juntou-se, para isso, ao psicólogo Ângelo Compota e pensaram numa forma original de atrair as pessoas (os avôs também são bem-vindos), fugindo da lógica de centro de dia. Hoje, já têm núcleos nos Açores e em Cascais, com apoio das autarquias.

Aqui impera a liberdade. O atelier/loja de Lisboa está aberto todos os dias, das nove às cinco e reúne cerca de uma centena de avós. Há quem venha uma vez e não volte. Há quem – a maioria – não perca a oportunidade de se sentar à mesa e de fazer manualidades que depois são vendidas para suportar financeiramente o projeto. Sempre com muita animação e vivacidade. Além destes trabalhos artesanais, também participam no Carnaval da Colombina Clandestina, servem pequenos-almoços na discoteca Lux, passeiam-se pela cidade, vão ao cinema, ao teatro ou a festivais. 

Em Fukuoka, está planeado que as avós organizem um workshop para ensinar bordados a um grupo de mulheres, algo a que já estão acostumadas, porque o fazem com alguma regularidade em Lisboa. Em troca, receberão aulas de cozinha tradicional japonesa, de que todos são muito apreciadores.  

Por fim, em Tóquio, responderão a perguntas numa conferência de imprensa, além de serem recebidos na Embaixada de Portugal, onde farão um novo workshop para mostrar como se trabalha na Avó. Por fim, as avós serão entrevistadas na televisão nacional, num programa da tarde.

Espírito de viagem de finalistas

Na capital ficarão hospedadas num hotel que se dedica à revitalização da comunidade e ao empoderamento das mulheres, e que apoia esta viagem. Como pagamento da estada, serão protagonistas de uma campanha publicitária. O mesmo tipo de “negócio” acontece com a guest house em que estão a dormir em Nagasaki – pela dormida farão um jantar português comunitário.

Até à hora da partida, ainda não tinham solução para as noites em Fukuoka. Mas o espírito da associação é ao estilo viagem de finalistas. “Vamos lá! É sempre uma aventura, mas havemos de conseguir! Nem é preciso muito conforto”, avisa Susana António, sem pinga de receio. 

Nem tudo poderá ser apenas trabalho. Yukio garante que também haverá diversão pura e dura: “Vamos comer sushi, fazer karaoke e aprender origami.” E a Avó tem um desejo especial: ir a um Cafe of Mistaken Orders (café dos pedidos trocados), em Tóquio, onde alguns empregados têm demência e fazem confusões com os pedidos, sem que os clientes se zanguem por isso.  

O orçamento para o périplo japonês mostrou-se, infelizmente, muito abaixo das necessidades. Lembraram-se, então, de criar um crowdfunding para recolher donativos que ajudem a fazer face às despesas do avião, o item mais caro, mesmo que haja três escalas pelo caminho. A adesão não tem sido extraordinária (ainda decorre até eles regressarem, em ppl.pt/causas/avonojapao), porque as pessoas encaram esta viagem como um luxo e poucos reconhecem a importância da deslocação. Mesmo assim, a horas de partirem já tinham recolhido mais de três mil euros. Só os bilhetes custaram seis mil. É claro que vão tentar fazer dinheiro por lá, com a venda dos produtos que levam.

Também por causa do dinheiro, a associação não pôde levar toda a gente, nem pouco mais ou menos. Pediu então às avós que estivessem interessadas em enveredar nesta aventura que fizessem uma apresentação, em que explicavam o seu interesse na viagem, sabendo que só três seriam escolhidas. A decisão final ficou a cargo da organização japonesa.

As três eleitas

Teresa Sousa, 80 anos (ninguém lhos dá), foi uma das eleitas e é uma das mais assíduas no atelier que agora fica junto à Rua Morais Soares. Sempre quis conhecer o Japão e foi isso que disse no seu vídeo de apresentação.

Esta aventura tem um culpado declarado: o jornalista japonês Yukio Mizutani, que atualmente vive com a sua família (mulher e dois filhos pequenos) em Torres Vedras

Há uns anos, já depois de se reformar, a filha descobriu-lhe este projeto que rapidamente se transformou num “vício”. E nem precisa de gastar muito latim para descrever como o ambiente aqui é muito bom, como se entreajudam e como se caminha “sempre para a frente”. Tudo isso se sente pouco tempo depois de passar a porta de entrada. As mulheres que aqui estão “tiveram a coragem”, realça Susana, de sair da tão chamada zona de conforto que, na reforma, costuma ser em casa, em frente a uma televisão. E ousaram aprender coisas novas (nem todas sabiam bordar, por exemplo), num convívio saudável.

Dinora Gomes, 74 anos, bastante viajada, também foi escolhida no casting e também chegou à Avó, em 2021, por causa da filha. No entanto, como tem nove netos e lhes presta muita assistência, não consegue cá estar tantas vezes como gostaria, pois sabe o bem que lhe faz. “Esforço-me por vir uma a duas vezes por semana, especialmente desde que fiquei viúva, em janeiro. É muito bom, tanto o convívio como a troca de saberes.” 

Há quem ache que estas avós não têm idade para viajar para tão longe, nem para lidar com um fuso de nove horas. Mas elas estão tão empolgadas como umas adolescentes na véspera da primeira viagem longe dos pais. É apreciá-las a trocar dicas sobre o telemóvel e o uso de dados, a mostrar como sabem alguns costumes japoneses e outros comportamentos a evitar numa sociedade em que as pessoas se regem por princípios bastante diferentes dos latinos.

No caso de Elisa Marques, 76 anos, a terceira escolhida, foi a neta mais velha a descobrir o projeto na internet e a tirá-la de casa, depois de ter sido cuidadora da mãe durante sete esgotantes anos. Esta antiga costureira chegou aqui, pela mão da miúda, em 2022, e nunca mais saiu. O seu discurso está alinhado com o das companheiras de viagem: “O convívio é muito bom e aprendemos imenso, especialmente nos workshops. Apesar da minha profissão, apurei os bordados e ganhei criatividade.”

Elisa quis ir ao Japão para conhecer aquele povo e a sua cultura completamente diferente da nossa. Embora só tenha sabido da boa nova há um mês e meio, teve mais do que tempo para se mentalizar para a sorte que teve.

Malas feitas, a dois dias da partida? Ninguém. Afinal, o espírito é de improviso, não importa a idade.

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A gestão das cidades enfrenta desafios crescentes, que abrangem matérias como a circulação automóvel, a poluição, a habitação e o acesso a serviços. Adicionalmente, as pessoas e empresas exigem cada vez mais serviços rápidos e eficazes (e.g. sistemas de transportes e vias de comunicação, fornecimento de água, energia e comunicações) e, sobretudo, segurança e qualidade de vida.      

Urge assim encontrar uma solução integrada que interligue pessoas, espaços e objetos, capitalizando sobre novas tecnologias da informação como a internet of things (IoT) e a inteligência artificial (IA), que permitem, respetivamente, recolher e analisar dados para apoiar a tomada de decisão de forma mais rápida, eficiente e informada.

É neste contexto que surge o conceito de “cidades inteligentes (CI)” (do inglês, “smart cities”), que se pode definir como um ambiente urbano interconectado através de infraestruturas digitais (e.g. redes de comunicação, sensores, centros e plataformas de gestão de dados) e tecnologias avançadas (e.g. IoT e IA), implementadas para melhorar a vida no dia-a-dia das pessoas e empresas, garantindo o acesso à informação correta, da entidade correta, na forma correta e no momento correto.

Em particular, as CI potenciam benefícios como a eficiência energética, e.g. através de redes elétricas que equilibram a oferta de energia em função do consumo em tempo real ou de sensores que ajustam a intensidade da luz em função das necessidades de iluminação na via pública; a mobilidade sustentável, e.g. por meio de sistemas de transportes públicos que ajustam rotas e horários com base na procura ou de semáforos que regulam o  fluxo de trânsito em tempo real, incluindo aplicações de mobilidade partilhada para carros; e a qualidade ambiental, e.g. através de zonas verdes e telhados ecológicos ou de sensores que analisam a qualidade do ar e alertam para ações corretivas.

Embora não exista um caso ideal de CI, podem ser destacados alguns exemplos de aplicação ao nível mundial como as cidades de Xangai, devido à sua sofisticada plataforma de dados que alimenta mais de 1000 serviços oferecidos na cidade; de Seul, que tem em curso um projeto onde todos os residentes estarão à distância de 10 minutos, a pé, de todos os serviços e comodidades (“cidade de dez minutos”); de Copenhaga, onde os semáforos desligam automaticamente para economizar energia e os espaços públicos são iluminados a partir de energia solar; e de Singapura, que detém uma rede de pagamentos contactless nos transportes públicos e um sistema de monitorização à distância de pessoas em estado de saúde mais debilitado. Em Portugal, os exemplos são mais escassos, existindo, contudo, pelo país, aplicações como sistemas de rega inteligentes, equipamentos de reconhecimento facial e contadores inteligentes em edifícios públicos, redes 5G e transportes públicos elétricos e não tripulados.              

O desenvolvimento de CI enfrenta, contudo, diversos desafios, destacando-se os que se relacionam com a desigualdade digital, devido à falta de acesso (ou conhecimento) equitativo às novas tecnologias, o que pode acentuar as desigualdades sociais ao excluir partes da população dos benefícios das CI; a segurança e privacidade de dados, devido à recolha e tratamento de uma grande quantidade de informação e à possibilidade de ciberataques; a interoperabilidade de sistemas, considerando a complexidade na integração e compatibilização de diferentes plataformas e tecnologias; e os custos envolvidos, tanto de investimento quanto de manutenção, que podem ser demasiado elevados.

Para mitigar estes desafios, as medidas a tomar passam por implementar programas que assegurem o acesso universal às novas tecnologias e promovam a literacia financeira entre os cidadãos; por desenvolver normas regulamentares que garantam a proteção de dados e a privacidade dos cidadãos, assim como a compatibilidade entre diferentes sistemas e tecnologias; e por fomentar colaborações entre governos, empresas e comunidades para partilhar iniciativas, conhecimentos, custos e riscos na adoção de soluções inteligentes.

Destarte, é crucial a integração de tecnologias de informação avançadas e inteligentes no setor da construção e do imobiliário para o desenvolvimento de cidades mais resilientes, sustentáveis e centradas nas necessidades e preferências dos cidadãos. Além da vantagem económica, proveniente da otimização de recursos e da eficiência operacional, destacam-se os benefícios ambientais e sociais, que tendencialmente melhoram a qualidade de vida e incentivam à participação ativa dos cidadãos na gestão urbana.

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A palavra sustentabilidade deixou de ser uma tendência para se tornar uma exigência, tanto por parte dos consumidores, como por parte de entidades governamentais. No setor vitivinícola, sentimos esta responsabilidade como algo ainda mais profundo, uma vez que a vinha é um organismo vivo, intimamente ligado ao ecossistema que a rodeia, logo, a forma como hoje cuidamos dela, e de todo o ecossistema envolvente, determinará a qualidade do vinho que beberemos no futuro.

A sustentabilidade não se limita a cumprir boas práticas no campo, mas estende-se a toda a cadeia de valor do produto. O compromisso que se inicia na gestão equilibrada dos solos e na preservação da biodiversidade, passa pela redução do desperdício na adega e por escolhas conscientes no embalamento e na distribuição, culmina com a consciencialização do consumidor final, que tem um papel fundamental ao fazer as suas escolhas.

O primeiro passo para um vinho sustentável começa no respeito pelo terroir. Praticar uma viticultura de mínimo impacto, privilegiando o uso de adubos orgânicos e reduzindo ao máximo a utilização de produtos fitofarmacêuticos, é essencial. O uso controlado de água através de sistemas de irrigação inteligentes e a aposta em castas autóctones, mais resistentes às alterações climáticas, são medidas que reduzem o consumo de recursos naturais. Além disso, fomentar a biodiversidade, mantendo sebes naturais e incentivando a presença de insetos polinizadores, contribui para o equilíbrio do ecossistema.

A produção de vinho é um processo intensivo em energia e recursos, mas as adegas mais modernas estão a reinventar-se. A integração de energias renováveis, como painéis solares, permite reduzir significativamente a pegada de carbono. A reutilização da água e o aproveitamento de subprodutos, como grainhas e engaços para compostagem ou cosmética, são estratégias essenciais para a promoção de uma economia mais circular.

O conceito de sustentabilidade também está presente no produto final. Valorizar a autenticidade do vinho, sem recorrer a processos que descaracterizem a sua essência, é fundamental. A embalagem representa uma parte significativa do impacto ambiental do vinho. A tendência para garrafas mais leves, a utilização de vidro reciclado ou reutilizado e a adoção de formatos alternativos, como bag-in-box e latas recicláveis, demonstram um esforço do setor para reduzir a sua pegada de carbono. Além disso, projetos inovadores como a reutilização de garrafas antes da reciclagem, através de sistemas de recolha e lavagem, começam a ganhar terreno e podem representar uma verdadeira revolução na indústria. O recurso a rolhas de cortiça certificada representa, também, uma opção mais sustentável e amiga do ambiente.

Mas a sustentabilidade do vinho não termina na garrafa. O consumidor tem um papel fundamental na escolha de produtores que implementam práticas sustentáveis e que apostam na reciclagem das embalagens. A educação sobre vinhos biológicos, naturais e de produção ética é essencial para que a sustentabilidade seja uma prioridade em toda a cadeia de valor.

O caminho para um setor vitivinícola mais sustentável é feito de inovação, compromisso e através de uma mudança de mentalidade. Da vinha ao copo, cada escolha conta para garantir que as próximas gerações possam continuar a brindar com consciência e respeito pelo planeta.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Depois de, em 1994, numa viagem a Espanha, ter tido um acidente de automóvel que me deixou paraplégica aos 23 anos, estive um ano num hospital de Toledo para voltar a aprender tudo de novo de uma forma diferente. Quando regressei a Portugal, fiz duas grandes viagens de carro pela Europa com amigos e não me deram muito prazer. Há 30 anos, as acessibilidades não eram o que são hoje – levava sempre uma tábua atrás, por exemplo, para me poder sentar nas banheiras. Sair de casa implicava perder a minha independência. Porém, quando chegava, ficava muito contente, porque era sinal de ter conseguido. Uma sensação de superação e de vitória que continuo a sentir hoje.

A cada viagem, as coisas corriam melhor e, no início dos anos 2000, fui a Itália com três amigos. Estivemos em Florença, passámos por Milão e fomos a Veneza. Ali, as pontes sobre os canais têm todas degraus e, felizmente, ainda não havia o Street View do Google Maps, senão, não teria ido. A cada ponte, tinham de levantar a cadeira de rodas, degrau a degrau. Os outros turistas também ajudavam. Eu era a que menos fazia e foi importante para ver que os impossíveis não são assim tantos e que saber aceitar a ajuda dos outros não é fraqueza. Todos precisamos dela.

Sou engenheira informática e já tinha viajado sozinha, em trabalho, a Bruxelas, um par de anos antes. O meu primeiro pensamento foi recusar, mas gosto de desafios e aí percebi que seria possível. Mais tarde, quando comecei a jogar ténis adaptado, em cadeira de rodas, também fui aos Açores sozinha, com a bagagem atrás, mala de viagem, cadeira de jogo e saco desportivo. A federação de ténis teve de criar o campeonato nacional misto só para eu poder participar, porque era a única mulher.

Essas experiências ajudaram-me a nunca entrar em pânico, mas costumo viajar com o meu marido, o Fernando. Casámos em 2010 e foi a partir da lua de mel, nos EUA, que passei a encarar as viagens de forma mais confiante e ambiciosa. Já tínhamos ido às Caraíbas, na fase de namoro, porque queria experimentar o mar quentinho e azul-turquesa, mas estar em Nova Iorque e, depois, no Havai foi o clique que faltava. Percebi que conseguia fazer muita coisa fora dos resorts e nas ruas, principalmente nestes destinos mais evoluídos. Os passeios já estavam rebaixados e consegui encontrar casas de banho públicas acessíveis, que é também uma das grandes dificuldades em viagem.

No primeiro dia no Havai, estava muito cansada e decidi não acompanhar o Fernando numa excursão matinal. Quando acordei, fui para a rua sozinha, junto à praia de Waikiki. Acenam-me de uma carrinha e pensei que não era para mim, ninguém me conhecia ali daquele lado do mundo. Mas era… No vidro, reparei num dístico de pessoa com deficiência. Era de um tetraplégico que estava a chegar para ir fazer surf com a ajuda de uma amiga. Falámos um pouco e, depois, fiquei a ver.

No final desse ano, caí num buraco em Londres, parti o colo do fémur e tive uma série de complicações, que resultaram em dez cirurgias em oito anos. Mas nunca mais deixei de viajar. Em 2012, fiquei-me por Madrid, uma das minhas cidades favoritas. Apesar de ter sido lá que vivi um período muito dramático da minha vida, Espanha continua a ser um dos meus países preferidos, desde logo porque é um dos mais acessíveis que conheço. Mas também porque me identifico com o espírito dos espanhóis, estão sempre em festa. Madrid tem muita vida e gosto da confusão, de visitar as cidades em dias de semana, à hora de ponta.

Ski, sim, paraquedas, não

Em 2013, fomos ao Canadá, Toronto e Quebeque, e achei tudo muito organizado e amplo. Demos um pulinho a Buffalo, nos Estados Unidos da América, que mais parece uma cidade-fantasma. Na fronteira, acharam muito estranho que nós quiséssemos ir ver a casa do Frank Lloyd Wright (House Martin). O Fernando é engenheiro civil e ambos gostamos de arquitetura. Passámos por Niagara-on-the-Lake, uma zona de vinhas, e pelas famosas cataratas – muito giro.

Começaram, então, as grandes viagens por várias cidades, através de diferentes meios de transporte: comboio, avião, carro ou barco. Só não experimentei o balão de ar quente na Capadócia, na Turquia, porque não me deixaram, mas um dia hei de lá regressar. Também fiz ski adaptado na Serra Nevada e adorei, mas isso não voltarei a fazer. É fácil partir um braço – se isso me acontecer, não consigo fazer nada. Sou destemida, mas tenho os meus limites. Já estive para me lançar de paraquedas e desaconselharam-me por causa do problema que tenho na anca.

Gostamos de diversificar os destinos e temos vindo a alternar a Europa com outros continentes. No ano passado, fizemos até uma volta ao mundo. Tinha um desejo antigo de conhecer a Austrália e, por ser tão perto, tornava-se obrigatório dar um salto à Nova Zelândia. Trata-se de um lugar lindíssimo, que me remeteu à maravilhosa Islândia, onde cada curva traz uma paisagem do outro mundo. E como não ir dali até ao paraíso, na Polinésia Francesa?

Há 30 anos, as acessibilidades não eram o que são hoje – levava sempre uma tábua atrás, por exemplo, para me poder sentar nas banheiras. Sair de casa implicava perder a minha independência. Porém, quando chegava, ficava muito contente, porque era sinal de ter conseguido. Uma sensação de superação e de vitória que continuo a sentir hoje

Era mais caro ficar em Bora Bora e por isso optámos por Moorea, onde chegámos de barco a partir de Taiti. Tenho de confessar que ver-me ali, naquelas águas do Pacífico, no meio do nada, foi um marco tremendo. Senti-me capaz de tudo, poderosa. Uns anos antes, em 2016, vivi uma sensação idêntica, na Muralha da China. Achei sempre que nunca lá iria e, de repente, ali estava eu. É daquelas conquistas que me fazem pensar que consigo ir aonde quiser e que o impossível, afinal, estava só na minha cabeça.

Queríamos regressar da volta ao mundo pela América do Sul, passar na ilha da Páscoa, mas a gestão do tempo trouxe-nos pela Califórnia. Em 2025, espera-nos o Báltico, com paragens na Finlândia, Estónia, Letónia e Polónia.

De outras paragens, guardo ótimas recordações da Escandinávia, de Berlim e de Praga, da arquitetura futurista de Singapura, da limpeza do Japão ou da comida de rua na Coreia do Sul. Em Hong Kong, é difícil atravessar estradas nas passagens pedonais e recordo-me que, certo dia, levaram-nos por dentro de prédios e túneis até ao nosso destino, num labirinto que nos pareceu um filme de espiões.

Depoimento recolhido,por Rui Antunes

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Estamos prestes a celebrar a Páscoa, uma das festividades que está associada a algumas tradições à mesa, como é o caso do borrego ou cabrito assado, do folar com o ovo cozido, ou até mesmo das amêndoas doces e dos ovos de chocolate. Quem passa por um supermercado não consegue deixar de reparar na grande variedade de doces disponíveis, verdadeiras tentações para os mais gulosos e até mesmo para aqueles que gostam de apenas provar um ou outro.

É uma época propícia aos excessos alimentares, com especial destaque para o consumo de açúcar. Diz o site do Serviço Nacional de Saúde (SNS) que “os hábitos alimentares inadequados são o fator de risco que mais contribui para o total de anos de vida saudável perdidos pela população portuguesa (19%) e um dos determinantes da doença crónica, que representa mais de 85% da carga de doença no sistema de saúde português”.

Diz o povo que “um dia não são dias”… mas será que comer um ovo de chocolate ou um pacote de amêndoas por inteiro é realmente um risco para a saúde?

A quantidade de açúcar nos doces de Páscoa

A Organização Mundial da Saúde recomenda que não se deve ingerir mais de 50 g de açúcar por dia. Perante este valor, é importante referir que, em média, 100 g de chocolate de leite têm cerca de 52 g de açúcar, enquanto que a mesma quantidade de chocolate negro tem 48 g de açúcar e a de chocolate branco tem 59 g. Sendo assim, um ovo de chocolate de leite com 150 g tem 72 g de açúcar, o que faz com que ingerir um destes doces num só dia ultrapasse o recomendado.

Quanto às amêndoas, existe uma oferta variada, das mais simples às torradas, recheadas e as cobertas com chocolate. Um pacote de 100 g das tradicionais amêndoas coloridas cobertas com uma capa de açúcar tem cerca de 80 g de açúcar, enquanto que a mesma quantidade de amêndoas as torradas tem um pouco mais de 60 g.

Um pacote com 100 g de amêndoas com capa de açúcar e recheio de chocolate tem cerca de 61 g de açúcar, enquanto as cobertas por chocolate de leite têm 41 g de açúcar, as cobertas com chocolate negro têm 39 g e as cobertas por chocolate branco têm 50 g.

O efeito do excesso no corpo

Dizer que o excesso de açúcar faz mal à saúde não é uma novidade para ninguém. A longo prazo, este consumo pode aumentar o risco de obesidade e do desenvolvimento de diabetes, e a curto prazo também existem problemas associados uma vez que o organismo entra em desequilíbrio. 

No cérebro, o excesso de açúcar altera o sistema de recompensa, uma vez que a glicose propicia uma sensação de bem-estar. Quando este órgão recebe uma dose superior de açúcar, sente necessidade de ter ainda mais, como um vício, quer haja ou não fome. A longo prazo, esta situação pode desencadear problemas de memória, com o desenvolvimento de gordura a aumentar o risco de Acidente Vascular Cerebral (AVC.)

No coração, o consumo exagerado de açúcar promove a formação de placas de gordura nas artérias coronárias que podem formar coágulos e afetar a pressão arterial

Perante um pico de açúcar no sangue, os rins sofrem uma sobrecarga para o eliminar do corpo. A longo prazo, pode haver falência deste órgão. 

A curto prazo, a flora dos intestinos pode ficar desequilibrada, o que dá origem a dores abdominais, diarreia, flatulência e até dificuldade na absorção de vitaminas pelo corpo. 

Quanto mais açúcar o pâncreas recebe, mais insulina liberta, mas há um limite para a função deste órgão. Quando este órgão trabalha em demasia, pode entrar em falência, deixando de captar a glicose e de produzir insulina, o que leva ao desenvolvimento de diabetes. O fígado recebe excesso de açúcar que é transformado em gordura, o que pode resultar numa inflamação, fibrose e até cirrose. 

A pele, maior órgão do corpo, também reage ao excesso de açúcar, ficando mais oleosa, o que pode originar borbulhas indesejadas, dermatite seborreica e descamação facial. Nos dentes, o açúcar é um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento de cáries. 

Moderação é a palavra-chave para esta questão. Será difícil escapar a um doce ou outro, mas com a informação acima poderá ser mais fácil fazer escolhas e perceber que quantidades pode ingerir. Comer um ovo de chocolate em apenas um dia não é de todo a recomendação, mas parti-lo e deliciar-se com um pedaço ao longo da semana pode ser um bom equilíbrio entre manter a saúde e satisfazer o desejo.

Palavras-chave:

A inovação tecnológica, a par com a Diretiva Europeia dos Serviços Pagamentos (PSD2), tem desempenhado um papel fundamental na transformação do setor financeiro. Durante décadas, o acesso a serviços bancários esteve condicionado por obstáculos como custos elevados, burocracia excessiva e outras exigências que excluíam uma parte significativa da população. No entanto, este é um paradigma que tem vindo a mudar, especialmente devido ao aparecimento das fintech, que têm democratizado o setor, tornando os serviços financeiros cada vez mais acessíveis, simples e transparentes.

A digitalização e a inovação tecnológica permitiram o aparecimento de novos modelos de negócio que estão a romper algumas das principais barreiras da banca tradicional e as fintech estão na vanguarda dessa mudança. A abertura de contas, que no passado exigia deslocações a uma agência e inúmeros documentos, pode agora ser feita em poucos minutos através de um telemóvel ou computador. Serviços como pagamentos, transferências e a gestão financeira do dia a dia são também cada vez mais intuitivos e ao alcance de todos, graças a plataformas mais ágeis e descomplicadas.

No entanto, é fundamental não esquecer a importância da presença física para muitas pessoas que precisam de apoio personalizado, que utilizam dinheiro vivo no seu dia a dia ou que têm mais dificuldade em adotar estas novas soluções.

De uma forma mais ampla, esta evolução beneficia não só os consumidores, como também promove uma maior competitividade no setor financeiro. As instituições bancárias tradicionais, que dominaram por muito tempo o mercado, têm agora de se adaptar a este novo enquadramento, rever o seu posicionamento e proposta de valor e melhorar a sua oferta, combinando o melhor do digital com a presença humana, quando necessário.

Neste sentido, algumas fintechs têm apostado na implementação de modelos híbridos que integram tecnologia com presença física através de parcerias locais, permitindo que o contacto humano não se perca. Este equilíbrio pode ser a chave para o futuro, garantindo que os serviços sejam não só acessíveis, mas também sensíveis às necessidades individuais de cada cliente.

Aliás, a inovação trazida pelas fintech tem sido uma ferramenta crucial na inclusão financeira. Devido a dificuldades económicas, falta de documentação ou até mesmo à ausência de uma rede bancária próxima, muitos cidadãos estavam excluídos de algo tão simples e necessário como uma conta. O novo ecossistema financeiro está rapidamente a alterar esta realidade, permitindo que qualquer pessoa, independentemente da sua situação financeira ou localização geográfica, tenha acesso a uma forma segura e prática de gerir o seu dinheiro no dia a dia.

Para além disso, este novo paradigma reforça a transparência. As fintech têm sido pioneiras na eliminação de estruturas complexas de taxas e preçários, substituindo-as por modelos mais claros, onde os clientes sabem exatamente quanto pagam e porquê. Este nível de transparência aumenta a confiança dos consumidores no sistema financeiro, ao mesmo tempo que os capacita para entenderem melhor a controlar as suas finanças.

É fácil afirmar que o futuro dos serviços financeiros está a ser moldado pelas fintech, que oferecem soluções inovadoras e essenciais para garantir que a democratização do setor não seja apenas uma promessa, mas uma realidade. Enquanto os bancos tradicionais tentam acompanhar esta evolução, as fintech já lideram a transformação, promovendo um sistema mais justo e acessível. Cabe a todos os intervenientes do setor aproveitar esta oportunidade para construir um setor verdadeiramente inclusivo, transparente e inovador.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.


Há uma cerimónia na Igreja Católica que começa com luz e termina na escuridão. Chama-se “Ofício de Trevas” e celebra-se nas noites que antecedem a Páscoa. Ao longo da liturgia, salmo a salmo, vela a vela, as luzes vão-se apagando. Até ficar só uma, que se esconde, perto do fim do ritual. Essa vela é Jesus — deixa de se ver, mas continua aceso. No fim, não há música, nem voz, nem claridade. Há o strepitus: um estrondo, um trovão litúrgico que sinaliza o tremor que se sentiu quando Jesus morreu. Então, no silêncio, as pessoas abandonam a Igreja.

Depois de assistir a isto, no caminho de volta, vinha de alma calada. Mas, entretanto, lembrei-me de mim. De um concerto meu. Filmado, que passou, recentemente, no segundo canal. Uma transmissão que resolvi não ver. Ninguém me impediu. Não houve catástrofe, falta de electricidade, nem sequer um convite irrecusável. A culpa não foi do realizador, nem do concerto. Não vi porque não suporto ver-me com tanta nitidez.

Explico. Não é vaidade, nem afectação. É vertigem. Aquelas lentes HD com ambição de Raio-X filmam tudo, vêm tudo. Até o que não existe. Sobretudo o que não existe. A gota de transpiração. O poro. A dúvida. Aquilo que é demasiado transparente começa a mentir. O meu nariz? O sobrolho tenso? A falta de cabelo no alto da cabeça?

Tudo isso é suportável. Mas quando se acendem os faróis digitais, a imagem dissolve-se num excesso de clareza que me provoca dores de cabeça.

Isto partiu de um instinto e com o tempo fui-me apercebendo de razões mais fundas que deram corpo a essa intuição. Durante anos, filmei com câmaras velhas. Super 8, Hi8, o que houvesse. Achava bonito, claro. Mas mais do que bonito, era suportável. Havia ali misericórdia. Tal como os corpos precisam de roupa, o mundo precisa de um véu. Um certo fumo, um certo nevoeiro. As coisas, cobertas de grão e neblina, seriam mais humanas, e assim, mais próximas de Deus — o supremo verdadeiro, o supremo encoberto.

Aquela névoa dos VHS, o papel gasto dos livros usados ou até os filtros dos iPhones — tudo isso ajuda. É como com o vinil. Estão a ver aquele clássico de sala de estar: “Com o vinil é outro som”? É mesmo. Pior que o do CD ou do streaming (quem não sabe, aproveita e fica a saber). Mas todos o amam. Porque o que se ouve não é bem música: é memória. E o ruído não é bem defeito: é inocência; e é verdade.

Mas há uma relação difícil com a distorção. Quando alguém diz o que diz sobre o som do vinil, é porque está convencido que o som é mais nítido. Quem quiser, que acredite: que só vendo tudo se conhece a alma das coisas, só ouvindo tudo se chega ao cerne da experiência estética. Mentira. São essas ideias que matam o mistério — e com ele, o acesso ao desconhecido.

Talvez quando a nitidez nos tiver entalado a vergonha, alguém volte a filmar com uma câmara analógica, e a fita volte a crepitar. Nesse dia, meus amigos, poderemos olhar uns para os outros sem vomitar.

Até lá, resta-nos Sexta-feira Santa — o dia de hoje. Todas as imagens e crucifixos das Igrejas estão velados com panos roxos ou pretos. Marca-se o silêncio, o luto, a ausência, a suspensão de tudo o que é visível. É talvez o único dia do ano em que se afirma a verdade cobrindo-a. Esse gesto é uma das mais poderosas negações visuais da modernidade: diz que o essencial não se mostra. Que é preciso esperar, sofrer e calar, para conseguir ver alguma coisa. É o dia mais real do ano. O único em que a verdade se esconde. Como Deus.


Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

1. Cabrito assado no forno, por Marco Gomes

Receita do chefe de cozinha do restaurante Oficina, no Porto

Ingredientes (6 pessoas)

Foto: DR
  • 1 cabrito transmontano pequeno
  • 8 dentes de alho
  • 2 folhas de louro
  • 400 ml azeite
  • 100 ml banha
  • 1 kg batatas
  • 1 cebola
  • 300 ml vinho branco
  • 1 colher de sopa de colorau
  • 1 limão
  • Rosmaninho
  • Sal

Preparação

  • Separar as fressuras do cabrito, limpar algumas gorduras que possa ter e retirar o bedum das pernas (bola de sebo que é obrigatório eliminar da parte interior da perna). Em seguida, cortar o cabrito em pedaços. Colocar numa bacia água e o limão às rodelas, lavar bem o cabrito.
  • Para a marinada: Juntar o azeite, a banha, o vinho branco, o colorau, o louro, o rosmaninho, o alho picado e o sal. Amassar tudo muito bem. Envolver o cabrito na marinada e deixar ficar a marinar de um dia para o outro.
  • Descascar, lavar e cortas as batatas.
  • Numa assadeira colocar a cebola às rodelas, em seguida o cabrito e as batatas em volta, por fim regar tudo com a restante marinada. Levar ao forno previamente aquecido. 

Nota: Quando o cabrito começar a ficar corado, virar com a ajuda de um garfo e mexer as batatas. Continuar a assar até ficar novamente corado.  

2. Presa de porco preto com migas de espargos e molho de pimentos, por Miguel Laffan

Receita do chefe de cozinha do restaurante Palma, do Torre de Palma Wine Hotel, em Monforte

Foto: DR

Ingredientes (para 4 pessoas)

  • 800 gr presa de porco

Marinada

  • 250 gr massa de pimentão
  • 20 gr sal
  • 100 gr alecrim
  • 100 gr tomilho

Molho de Pimentos

  • 200 gr pimento vermelho
  • 40 ml vinagre mirin
  • 40 ml molho soja
  • 15 gr pasta miso

Acompanhamento

  • 500 gr pão alentejano
  • 100 gr chalota
  • 200 gr espargos
  • 10 gr coentros
  • 10 ml azeite

Preparação:

  • Começar por arranjar a presa de porco retirando algum excesso de gordura. Temperar com sal e massa de pimentão deixando marinar durante 24 horas preferencialmente. Levar ao forno a assar a 160ºC durante 25 minutos numa cama de alecrim e tomilho aromatizando a carne.
  • Enquanto a presa cozinha fazemos o nosso molho e acompanhamento.
  • Para o molho, tritura-se os pimentos juntamente com o mirin, o molho de soja e a pasta miso. Retifica-se de sal e leva-se a ferver. Passa-se o molho por um peneiro depois de fervido e se necessário engrossa-se com um pouco de farinha de milho. Reserva-se.
  • Para a miga, picam-se as chalotas e deixa-se alourar em azeite. Juntar de seguida os espargos, o pão alentejano previamente triturado. Adiciona-se um pouco de caldo de legumes, ou um pouco de água. Deixa-se cozinhar o pão e retifica-se o sal. Por fim, adicionam-se os coentros. Numa frigideira anti-aderente coloca-se um fio de azeite e enrola-se a miga.
  • Retira-se a presa do forno e corta-se em quatro peças. Serve-se com a miga de espargos e com o molho de pimentos.

3. Arroz de Pato, por Luísa Villar

Receita do livro MesaLuisa – Receitas e Mulheres de Todos os Tempos, de Luísa Villar, editado pela Casa de Letras

Foto: DR

Ingredientes

  • 1 pato inteiro
  • 1 cebola
  • 2 cenouras
  • 1 ramo de salsa, picado
  • 400 g de arroz vaporizado
  • ½ chouriço, às rodelas
  • 4 fatias de bacon
  • Azeite q.b.
  • Sal e pimenta q.b.

Preparação

  • Descascam-se e picam-se as cenouras e a cebola e põem-se num tacho a refogar em azeite até alourar.
  • Corta-se o pato em pedaços.
  • Quando o refogado estiver dourado-escuro (tem de se ter paciência porque demora um pouco) põe-se lá dentro o pato cortado, e deixa-se alourar bem. Baixa-se o lume, adiciona-se um pouco de água, deixa-se estufar pelo menos meia hora. Vai-se controlando o pato.
  • Retira-se o pato do tacho e limpa-se de ossos e peles, reservando-os numa tigela e o pato noutra.
  • Os ossos e as peles voltam depois para o tacho, acrescenta-se mais água e deixa-se ferver uns 10 minutos.
  • Entretanto, desfia-se o pato.
  • Passa-se a água onde ferveram os ossos pelo passador e volta para o tacho.
  • Neste momento, mede-se a água, que deve ser o dobro da quantidade do arroz.
  • Se houver tempo, deixa-se arrefecer um pouco para se tirar a gordura que fica ao de cima.
  • Quando a água voltar a ferver, adiciona-se o arroz.
  • Quando o arroz está cozido, põe-se num prato de ir ao forno camadas de arroz e de pato e enfeita-se com rodelas de chouriço e pedaços de bacon.
  • Vai ao forno 5 minutos, só para tostar o chouriço e o bacon.

4. Bola de queijo Ilha de São Miguel, por Diogo Rocha

Receita do livro Queijaria do Chef – Guia de Queijos Portugueses, do chefe de cozinha Diogo Rocha, editado pela Casa das Letras

Foto: Mário Ambrózio

Ingredientes

Para a massa

  • 500 g de farinha T65
  • 25 g fermento de padeiro
  • 75 g manteiga
  • 3 ovos
  • 10 g açúcar
  • 5 g sal
  • 12 ml azeite

Para o recheio:

  • 300 g queijo Ilha de São Miguel
  • Poejo q.b.

Preparação

  • Coloque a farinha na bancada e abra uma cavidade ao centro. Adicione todos os ingredientes na cova e amasse bem até começar a formar uma massa homogénea. Divida-a em três porções e deixe-as repousar por 15 minutos no frio.
  • Estique a massa com um rolo, polvilhando a bancada com farinha.
  • Forre um tabuleiro com papel vegetal e disponha uma das porções de massa.
  • Espalhe metade do queijo e coloque outra camada de massa por cima. Disponha o poejo e o restante queijo.
  • Finalize com a última porção de massa e deixe levedar por 30 minutos com um pano húmido por cima.
  • Entretanto, pré-aqueça o forno a 180 °C. Leve a bola ao forno pincelada com ovo por cerca de 45 minutos.

5. Pão-de-ló, por Vítor Adão

Receita do chefe dos restaurantes Plano e Planto, em Lisboa

Ingredientes (2 pessoas)

  • 140 g de açúcar
  • 3 ovos
  • 8 gemas
  • 80 g de farinha
  • 3 g de fermento
  • 10 g de queijo de ovelha curado serra da Estrela

Preparação

  • Bater os ovos, as gemas e o açúcar durante cerca de 20 minutos, até obter um creme branco. Peneirar a farinha e o fermento e envolver tudo.
  • Levar a cozer no forno numa forma com papel vegetal untada com manteiga durante dez minutos a 200º C.
  • Retirar do forno e, antes de servir, ralar o queijo por cima.

Preparação

  • Coloque a farinha na bancada e abra uma cavidade ao centro. Adicione todos os ingredientes na cova e amasse bem até começar a formar uma massa homogénea. Divida-a em três porções e deixe-as repousar por 15 minutos no frio.
  • Estique a massa com um rolo, polvilhando a bancada com farinha.
  • Forre um tabuleiro com papel vegetal e disponha uma das porções de massa.
  • Espalhe metade do queijo e coloque outra camada de massa por cima. Disponha o poejo e o restante queijo.
  • Finalize com a última porção de massa e deixe levedar por 30 minutos com um pano húmido por cima.
  • Entretanto, pré-aqueça o forno a 180 °C. Leve a bola ao forno pincelada com ovo por cerca de 45 minutos.

6. Arroz-doce de cesto, por Henrique Sá Pessoa

Receita do livro ComTradição, de Henrique Sá Pessoa, editado pela Casa das Letras

Foto: DR

Ingredientes (para 4 pessoas)

  • 130 g de arroz carolino
  • 700 ml de leite meio-gordo
  • 300 ml de natas
  • 4 gemas
  • 120 g de açúcar
  • Sal q.b.
  • 1 raspa de limão
  • 3 sementes cardamomo
  • 2 paus de canela
  • Canela moída q.b.

Preparação

  • Aquecer o leite com a nata, num tacho de fundo grosso, juntamente com o cardamomo, a canela e, por último, a raspa de limão.
  • Juntar o arroz ainda com o líquido frio, com algumas pedras de sal, e deixar cozinhar lentamente durante 10 minutos, sempre a mexer, de modo a não pegar. Quando levantar fervura, baixar para lume brando. Quando o arroz estiver cozido, retirar os elementos sólidos do preparado, já com o lume desligado.
  • Misturar o açúcar com as gemas. Juntar um pouco do arroz à gemada e, posteriormente, adicionar ao arroz e mexer durante 2 minutos com o lume no mínimo.
  • Deixar arrefecer completamente e servir polvilhado com canela moída.

“O que nos falta é o que chamaria de ‘espanto político’. Aqui, as coisas espantosas deixaram de espantar”. O aqui é o Brasil e o agora o ano de 1967. Mas as coisas mais extraordinárias que são escritas não têm tempo nem lugar. E é, por isso, que ao tropeçar nesta frase de Nelson Rodrigues, ela me parece respirar ao meu lado, acabada de escrever, ainda secando a tinta. O que nos falta é “espanto político”. Diria que nos falta espanto, espanto em geral, espanto do que nos faz parar diante de uma pedra, do que nos paralisa de admiração perante o azul do céu. Mas não é disso que trata esta crónica. E o que aqui vai mesmo bem é esta falta de “espanto político”.

O “espanto político” é o contrário da indignação. A indignação é um chão onde não cresce nada. Uma cinza de ódio queimado. O “espanto político” é o que nos faz olhar para as coisas, olhar e ver e perceber que há ali alguma coisa a fazer. E fazê-la.

A primavera está fria e molhada. Enquanto me aproximo do centro comercial, enrolada na écharpe, segurando com força o chapéu de chuva barato que ameaça quebrar-se, começo a ouvir a música que sai muito alta de uma pequena coluna, escondida atrás da fila das bicicletas das entregas da Uber. “Agora não, que me dói a barriga/ Agora não, dizem que vai chover/ Agora não, que joga o Benfica/ E eu tenho mais que fazer”, canta a Ana Bacalhau.

Eles são poucos, menos de dez, com bandeiras e panfletos. Mas não lhes dói a barriga nem se assustam porque está a chover. E está a chover. São trabalhadores do comércio que distribuem panfletos, contando como o Auchan lhes mudou as folgas para coincidir com o encerramento da loja no domingo de Páscoa e, assim, lhes subtraiu um dia de descanso, para acrescentar uns euros ao seu lucro.

O facto de ali estarem é já uma homenagem ao “espanto político”. E alguma coisa me anima, num mundo que vai aumentando as doses do grotesco até à saturação da indignação e daí à indiferença.

Chego a casa e um áudio num WhatsApp conta-me como estão encurraladas milhares de pessoas em Rafah, Gaza, atacadas, no sítio para onde fugiram. “Uma guerra de extermínio”, diz a Aljazeera, que cita a UNICEF para lembrar que desde 2 de março que não entra qualquer ajuda humanitária num território onde se estima estar um milhão de crianças em sofrimento extremo.  A que espanto nos devia levar esta informação?

Abro o Instagram. Um grupo de mulheres esbeltas, em fatos brilhantes azuis colados ao corpo, posa ao lado de um milionário careca de meia-idade que lhes financiou uma ida de muitos milhões e poucos minutos ao espaço. Acabadas de aterrar, beijam o chão e dizem frases desconchavadas de terceira categoria sobre como todos podemos atingir os nossos sonhos ou sobre como aquela subida aos céus foi intensa e emocional.

E talvez isto espante alguns, mas não sei se o suficiente para perceber a que ponto o careca milionário não gastou todos os milhões que a ida aos céus lhe custou, mas antes os investiu na nossa doutrinação. Para que não restem dúvidas de que o dinheiro tudo compra e de que até um careca de meia-idade se torna um Deus, com o número certo de zeros nas contas.

Mas mais importante do que isso: com esta pequena jogada, ele atordoa-nos e afasta-nos de qualquer possibilidade “espanto político”. As atoardas bacocas das mulheres vindas do espaço são a forma que estes todo-poderosos encontraram para nos dominar: acreditem, que todos conseguem, é só a dose certa de esforço.

E o esforço tem de ser celebrado como se fosse divino, mas só o esforço que rende milhões e nunca o suor dos que trabalham, dos que se levantam de madrugada e andam de transportes, dos que passam o dia sentados no escritório ou a ganhar varizes de pé atrás do balcão da loja. Quem alcança todo esse sucesso não merece ser castigado com impostos ou obrigações para com os outros milhões de falhados que não conseguem lá chegar.

Paralisados pelas ideias da autoajuda, limitados pela crença de que só as nossas crenças nos limitam, anestesiados pela indignação amorfa das redes sociais, incapazes de interrogação e “espanto político”, deixamo-nos domar. Estamos domesticados e incapazes de reivindicar. Estamos domesticados e incapazes de imaginar. Porque só “espanto político” nos pode fazer ver o mundo como ele é e ser capazes de exigir que ele seja como imaginamos que devia ser.