Em cima da grande mesa corrida de madeira, o epicentro deste atelier de design para pessoas com mais de 60 anos, encontram-se pedaços de tecido com imagens tipicamente japonesas. A debruar os contornos dos desenhos, coloridas linhas de bordar dão um toque personalizado ao trabalho artístico. Estas são algumas das 150 peças, ultimadas nas vésperas da partida, que seguiram viagem até ao Japão, nas malas dos dois mentores do projeto A Avó Veio Trabalhar e de três avós, que é como carinhosamente chamam a quem aqui escolhe passar os dias.
Esta aventura que se inicia com um périplo de quase 24 horas de escalas até chegarem ao continente asiático tem um culpado declarado: o jornalista japonês Yukio Mizutani, 53 anos, que atualmente vive com a sua família (mulher e dois filhos pequenos) em Torres Vedras.

Foi ele que um dia, em passeio pela Poço dos Negros, na altura uma rua lisboeta em ascensão turística, deu de caras com a loja desta associação que quer ajudar as pessoas a envelhecer de forma positiva, combatendo, com alegria, a solidão dos mais velhos.
Yukio gostou tanto ou tão pouco do que descobriu que escreveu dois artigos sobre o projeto e as avós que o preenchem para revistas japonesas. Isso foi pouco antes de decidir mudar-se para Portugal, logo a seguir à pandemia.
Depois, tornou-se amigo da casa e levou alguns produtos saídos destas mãos para serem vendidos na maior livraria do Japão. O êxito foi tal que, no seguimento desses pop-ups, o embaixador de Portugal em Tóquio endereçou um convite à associação para se fazer representar no país do sol nascente, mostrando como é possível tratar os mais velhos com dignidade, ocupando-os de forma válida. Daí a estarem três avós a caminho do Japão foi um ápice – ao mesmo tempo que o mundo está de olhos nesse país por causa da exposição universal de Osaka, que se inaugurou no dia 12 de abril.
Aproveitar até ao tutano
Yukio está expectante, do outro lado do mundo. Enquanto dá os últimos retoques nesta digressão, lembra as relações estreitas que sempre existiram entre os dois países: “Antes de mais, o Japão tem uma longa e profunda relação com Portugal, o primeiro país ocidental a visitar-nos, há cerca de 500 anos. Recebemos muitas heranças, incluindo o cristianismo e algumas armas. Em termos culturais, várias palavras japonesas são de origem portuguesa.”
Tal como por cá, o Japão debate-se com uma das populações mais envelhecidas do planeta e também bastante solitária (aproximadamente 125,7 milhões têm mais de 65 anos, o que representa cerca de 30% dos habitantes do país). E por isso se espera que, ao disseminar este projeto por lá, ele possa desencadear ações nas comunidades e em quem enfrenta desafios semelhantes. “Acreditamos que muitas pessoas se sentirão encorajadas pelo ato de uma mulher idosa viajar de Portugal para o Japão de avião”, nota o jornalista.
Nesta excursão de 15 dias, a comitiva de cinco portugueses visitará Nagasaki, Fukuoka (cidade de onde é natural a família de Yukio) e Tóquio, com um programa bastante intenso – para aproveitar a experiência até ao tutano. Ao ombro terão sempre pendurados os coloridos tote bags que imprimiram com o mote que os alimenta: “Old is the new young.”
Na primeira paragem, haverá visitas de cortesia ao vice-governador da província de Nagasaki e ao cônsul honorário de Portugal (uma figura de relevo no mundo dos negócios), experimentarão vestir um quimono em Dejima, um antigo entreposto comercial português, e aprenderão a fazer bordados exclusivos da região. E no meio disto tudo, ainda serão entrevistadas por um youtuber local.
“Ela fê-lo para si”
Cada trabalho é único, feito à mão por uma “avó”. Isso nota-se nas etiquetas, personalizadas com a fotografia de quem o finalizou, com tempo, para valorizar a dedicação e o talento (“Ela fê-lo para si”).
Há dez anos que o projeto A Avó Veio Trabalhar se esforça por combater o idadismo e, sobretudo, a solidão de quem já ultrapassou os 60. A designer Susana António teve a ideia de criar um estúdio criativo que desse guarida às avós, fazendo com que se sintam úteis, valorizadas, numa altura da vida em que a sociedade tende a descartá-las. Juntou-se, para isso, ao psicólogo Ângelo Compota e pensaram numa forma original de atrair as pessoas (os avôs também são bem-vindos), fugindo da lógica de centro de dia. Hoje, já têm núcleos nos Açores e em Cascais, com apoio das autarquias.
Aqui impera a liberdade. O atelier/loja de Lisboa está aberto todos os dias, das nove às cinco e reúne cerca de uma centena de avós. Há quem venha uma vez e não volte. Há quem – a maioria – não perca a oportunidade de se sentar à mesa e de fazer manualidades que depois são vendidas para suportar financeiramente o projeto. Sempre com muita animação e vivacidade. Além destes trabalhos artesanais, também participam no Carnaval da Colombina Clandestina, servem pequenos-almoços na discoteca Lux, passeiam-se pela cidade, vão ao cinema, ao teatro ou a festivais.

Em Fukuoka, está planeado que as avós organizem um workshop para ensinar bordados a um grupo de mulheres, algo a que já estão acostumadas, porque o fazem com alguma regularidade em Lisboa. Em troca, receberão aulas de cozinha tradicional japonesa, de que todos são muito apreciadores.
Por fim, em Tóquio, responderão a perguntas numa conferência de imprensa, além de serem recebidos na Embaixada de Portugal, onde farão um novo workshop para mostrar como se trabalha na Avó. Por fim, as avós serão entrevistadas na televisão nacional, num programa da tarde.
Espírito de viagem de finalistas
Na capital ficarão hospedadas num hotel que se dedica à revitalização da comunidade e ao empoderamento das mulheres, e que apoia esta viagem. Como pagamento da estada, serão protagonistas de uma campanha publicitária. O mesmo tipo de “negócio” acontece com a guest house em que estão a dormir em Nagasaki – pela dormida farão um jantar português comunitário.
Até à hora da partida, ainda não tinham solução para as noites em Fukuoka. Mas o espírito da associação é ao estilo viagem de finalistas. “Vamos lá! É sempre uma aventura, mas havemos de conseguir! Nem é preciso muito conforto”, avisa Susana António, sem pinga de receio.
Nem tudo poderá ser apenas trabalho. Yukio garante que também haverá diversão pura e dura: “Vamos comer sushi, fazer karaoke e aprender origami.” E a Avó tem um desejo especial: ir a um Cafe of Mistaken Orders (café dos pedidos trocados), em Tóquio, onde alguns empregados têm demência e fazem confusões com os pedidos, sem que os clientes se zanguem por isso.
O orçamento para o périplo japonês mostrou-se, infelizmente, muito abaixo das necessidades. Lembraram-se, então, de criar um crowdfunding para recolher donativos que ajudem a fazer face às despesas do avião, o item mais caro, mesmo que haja três escalas pelo caminho. A adesão não tem sido extraordinária (ainda decorre até eles regressarem, em ppl.pt/causas/avonojapao), porque as pessoas encaram esta viagem como um luxo e poucos reconhecem a importância da deslocação. Mesmo assim, a horas de partirem já tinham recolhido mais de três mil euros. Só os bilhetes custaram seis mil. É claro que vão tentar fazer dinheiro por lá, com a venda dos produtos que levam.
Também por causa do dinheiro, a associação não pôde levar toda a gente, nem pouco mais ou menos. Pediu então às avós que estivessem interessadas em enveredar nesta aventura que fizessem uma apresentação, em que explicavam o seu interesse na viagem, sabendo que só três seriam escolhidas. A decisão final ficou a cargo da organização japonesa.
As três eleitas
Teresa Sousa, 80 anos (ninguém lhos dá), foi uma das eleitas e é uma das mais assíduas no atelier que agora fica junto à Rua Morais Soares. Sempre quis conhecer o Japão e foi isso que disse no seu vídeo de apresentação.
Esta aventura tem um culpado declarado: o jornalista japonês Yukio Mizutani, que atualmente vive com a sua família (mulher e dois filhos pequenos) em Torres Vedras
Há uns anos, já depois de se reformar, a filha descobriu-lhe este projeto que rapidamente se transformou num “vício”. E nem precisa de gastar muito latim para descrever como o ambiente aqui é muito bom, como se entreajudam e como se caminha “sempre para a frente”. Tudo isso se sente pouco tempo depois de passar a porta de entrada. As mulheres que aqui estão “tiveram a coragem”, realça Susana, de sair da tão chamada zona de conforto que, na reforma, costuma ser em casa, em frente a uma televisão. E ousaram aprender coisas novas (nem todas sabiam bordar, por exemplo), num convívio saudável.
Dinora Gomes, 74 anos, bastante viajada, também foi escolhida no casting e também chegou à Avó, em 2021, por causa da filha. No entanto, como tem nove netos e lhes presta muita assistência, não consegue cá estar tantas vezes como gostaria, pois sabe o bem que lhe faz. “Esforço-me por vir uma a duas vezes por semana, especialmente desde que fiquei viúva, em janeiro. É muito bom, tanto o convívio como a troca de saberes.”

Há quem ache que estas avós não têm idade para viajar para tão longe, nem para lidar com um fuso de nove horas. Mas elas estão tão empolgadas como umas adolescentes na véspera da primeira viagem longe dos pais. É apreciá-las a trocar dicas sobre o telemóvel e o uso de dados, a mostrar como sabem alguns costumes japoneses e outros comportamentos a evitar numa sociedade em que as pessoas se regem por princípios bastante diferentes dos latinos.
No caso de Elisa Marques, 76 anos, a terceira escolhida, foi a neta mais velha a descobrir o projeto na internet e a tirá-la de casa, depois de ter sido cuidadora da mãe durante sete esgotantes anos. Esta antiga costureira chegou aqui, pela mão da miúda, em 2022, e nunca mais saiu. O seu discurso está alinhado com o das companheiras de viagem: “O convívio é muito bom e aprendemos imenso, especialmente nos workshops. Apesar da minha profissão, apurei os bordados e ganhei criatividade.”
Elisa quis ir ao Japão para conhecer aquele povo e a sua cultura completamente diferente da nossa. Embora só tenha sabido da boa nova há um mês e meio, teve mais do que tempo para se mentalizar para a sorte que teve.
Malas feitas, a dois dias da partida? Ninguém. Afinal, o espírito é de improviso, não importa a idade.