A palavra desporto aparece em quase todas as linhas do currículo dos 75 anos de vida de José Manuel Constantino. Foi atleta federado, professor de Educação Física, dirigente desportivo em clubes e federações, presidente tanto da Confederação como do Instituto do Desporto, líder da empresa municipal de Oeiras que gere espaços e equipamentos desportivos, culturais e de lazer e, desde há uma década, presidente do Comité Olímpico de Portugal. É, por tudo isto, um observador atento da vida desportiva, mas também do País. Durante uma conversa de uma hora, revela-se, mais uma vez, um pensador lúcido e de discurso elegante, mesmo nos momentos em que aponta erros e chama a atenção para as carências que, ao fim de décadas, continuam a impedir um maior desenvolvimento do desporto português – e, com isso, da própria sociedade em geral.  

Quais as expectativas para Paris 2024? Como acha que a comitiva portuguesa vai ser vista pelos portugueses?

Se tiver sucesso, vai ser bem-vista. Se não tiver sucesso, vai acontecer aquilo que é habitual: vão chover as acusações de que os atletas foram fazer turismo, que estamos muito aquém de países com níveis demográficos equivalentes, que se gastou mal o dinheiro e que continuamos na cauda dos países em termos de capacidade competitiva. Se correr bem… o mérito será dos atletas.

A probabilidade de correr mal é superior à de correr bem?

Sou relativamente moderado nessa matéria. Recordo-me, e você porventura conhecerá esse problema bem melhor do que eu, da nossa missão olímpica aos Jogos de Pequim, com vários campeões do mundo, primeiras posições nos rankings internacionais. Tudo levaria a supor que iríamos ter resultados excecionais. E aconteceu o que aconteceu. Portanto, aquilo que acontece antes dos Jogos permite-nos estabelecer, de algum modo, algumas previsões, mas o que acontece depois é completamente distinto daquilo que nós estimávamos. E, portanto, temos de ter sobre esta matéria uma posição de muita moderação. A circunstância da comitiva ser mais curta – porque o número de provas foi reduzido e porque os critérios de seletividade aumentaram –, além de termos perdido dois elementos de topo, a Auriol Dongmon [campeã mundial de lançamento do peso em pista coberta] e a Patrícia Mamona [medalha de prata no triplo salto nos Jogos de Tóquio], naturalmente que nos debilita do ponto de vista competitivo.

Mas qual é, então, face às circunstâncias, a sua real expectativa?

A minha expectativa é de que aqueles que vão representar Portugal consigam, no mínimo, obter resultados equivalentes aos que estiveram na origem dos seus apuramentos. Se isso for conseguido, já será muito bom. Se isso não for conseguido, não será bom. Se for ultrapassado, será excecional.

Mas, mesmo sendo excecionais, serão sempre resultados inferiores ao dos países europeus de igual dimensão demográfica…

Eu sei que habitualmente é feita essa comparação, até com outros indicadores do PIB, etc. Mas o elemento mais relevante, do ponto de vista da construção de uma elite desportiva, não são esses indicadores, embora sejam condicionantes. O mais importante é a base de recrutamento. Não tem, por isso, grande relevância comparar-nos a países com dimensões demográficas similares, mas que têm uma base de praticantes que duplica ou triplica a nossa, ou seja, com uma capacidade de recrutamento incomensurável, que nós não temos.

O importante, na sua opinião, não é o número de habitantes, mas sim o número de praticantes desportivos?

A base demográfica é um fator influenciador, condicionante, como a base financeira, a cultura desportiva. Mas o número de praticantes é o indicador fundamental. É a base que permite selecionar os melhores e construir uma elite. Do que vale compararmo-nos com a Hungria, que coleciona centenas de medalhas olímpicas, só pelo lado da população? Temos é de comparar a base de praticantes no âmbito do alto rendimento na Hungria com a base de praticantes no alto rendimento em Portugal. Essa é a questão crítica fundamental. E se nós não percebermos isto, e não tivermos políticas públicas que aumentem a base dos praticantes, estruturas que os possam acolher ‒ com o respetivo enquadramento, com treinadores, equipas médicas de qualidade e de apoio ao alto rendimento ‒, nós podemos continuar a fazer essas comparações, mas elas não chegam a uma conclusão que seja crítica para alterar a situação da realidade desportiva nacional, do ponto de vista da competitividade externa.

Portanto, considera que o problema não se resolve só com melhor preparação no treino dos atletas, mas sim com melhores políticas?

São necessárias as duas coisas. Mas, a montante, é preciso que exista uma política de promoção da prática do desporto e critérios de seletividade que permitam identificar aqueles que, tendo melhor qualidade desportiva, possam e queiram dedicar-se ao alto rendimento. Sem isso, teremos muitas dificuldades de competir em condições de igualdade com países que têm indicadores demográficos ou produto interno bruto semelhantes. Podem ser indicadores academicamente muito utilizados, mas que, do ponto de vista funcional, têm pouco efeito.

Porque não existem essas medidas? Por falta de vontade política ou falta de cultura desportiva?

Eu creio que há aqui um problema transversal, que antes de ser político é cultural e que, portanto, condiciona todas as políticas. Por outro lado, o desporto padece também, por fatores de natureza histórica, de enormes fragilidades, porque não tem lobby.

E ter lobby é assim tão importante?

Veja o que se passa na Cultura, que tem fortíssimos lobbies, quer em torno da maçonaria quer em torno do lobby gay, o que não acontece no desporto. Nós já tivemos numa das orientações maçónicas uma importante figura do desporto nacional, mas que não teve qualquer consequência do ponto de vista da construção das políticas públicas. E nos últimos anos tivemos algum recrutamento na área maçónica, que não é propriamente bom exemplo para o País. E do ponto de vista dos movimentos gay, eles estão muito centrados nas questões da inclusão, da igualdade de género, da linguagem inclusiva e da cultura woke, e não propriamente no domínio das políticas públicas. Falta, portanto, na área do desporto, um movimento lobista que pressione a construção de políticas públicas em sentidos distintos daqueles com que elas têm sido construídas nos últimos anos.

Mas quer dizer que as políticas públicas em Portugal são construídas sempre com base em lobbies?

Bem, as políticas públicas em Portugal são, em primeiro lugar, construídas sem memória. A generalidade dos governantes, e não apenas no desporto, chega aos seus lugares de poder e acha que o País começa a partir do momento em que se inicia a sua governação. E, portanto, tem um défice de cultura histórica nas suas áreas de governação que prejudica a construção das políticas públicas. Ora, não é possível construir novas políticas sem fazer uma boa avaliação das razões por que as anteriores falharam. Dou-lhe um exemplo sobre um tema que é muito querido, até dos dirigentes desportivos, que é a questão do planeamento estratégico. Nós temos dezenas de planos estratégicos, temos alguns até, cerca de meia dúzia, em funcionamento e agora quer fazer-se mais um. Mas eu não conheço, até à presente data, qualquer estudo que avalie porque é que os outros falharam. Porque alguns eram, do ponto de vista doutrinário e teórico, muito bem construídos e muito bem elaborados. Existe esta tendência de não olhar para o passado, para a história, para o nosso trajeto e procurar construir novas políticas. Ou, em alguns casos, nem se constrói: anunciam-se novas políticas, desprezando completamente a memória. Não creio que isso seja positivo para Portugal.

Deveria haver um Ministério do Desporto?

Não creio, porque já houve e não resolveu nada. A questão, aqui, é mais substantiva, mais de construção das políticas públicas e de uma ideia desportiva para o País que não faça tábua rasa daquilo que é o seu passado, a sua trajetória, e que olhe para a realidade e estude as suas debilidades. Porque de nada servirá ter um Ministério do Desporto se continuar a repetir, até à exaustão, todos aqueles lugares-comuns com que habitualmente somos confrontados. Alguns dos quais, como a questão do desporto escolar, não têm qualquer evidência, do ponto de vista empírico ou científico. Porque Portugal, no caso do desporto escolar, tem até indicadores de prática muito superiores aos indicadores europeus. De resto, por insuficiente que seja a prática desportiva e escolar, o tecido associativo não tem capacidade de acolhimento de todos aqueles que querem continuar a praticar desporto. Portanto, o problema não reside tanto na escola, mas antes na debilidade do nosso tecido associativo e na incapacidade que tem de acolher o número de praticantes que desejam prosseguir uma via desportiva. Logo, acaba por ter uma lógica estritamente seletiva, acolhendo apenas os melhores, e com as dificuldades que nós conhecemos.

Desculpe a provocação: por que razão Portugal precisa de ter um desporto forte e ativo em todas as camadas da população? É só para ganhar medalhas nos Jogos Olímpicos ou é mais do que isso?

Bom, em primeiro lugar, porque o desporto é um elemento da cultura, da cultura do corpo. E é um elemento que, quando devidamente orientado, tem efeitos de natureza formativa sobre o caráter e a construção da personalidade do próprio cidadão. Em segundo, porque há algumas dimensões da prática do desporto que têm efeitos na promoção de estilos de vida saudável. Em terceiro, porque é um elemento de agregação e de identidade nacional. E, finalmente, porque é um elemento que hoje, à escala global, avalia a competitividade das nações. Creio, portanto, que todos estes elementos justificariam que a nossa política desportiva tivesse uma escala, uma dimensão, uma robustez, um músculo completamente distinto daquele que tem.

Considera que o futebol, e tudo o que gira em torno do futebol, acaba por ofuscar o resto do desporto?

Sim, mas o problema não é do futebol, que, à sua escala, desempenha o seu papel. O problema é que, na minha conceção, se existe um Estado é para corrigir assimetrias e debilidades, para ajudar os mais fracos e apoiar os mais necessitados. O Estado deve criar níveis de desenvolvimento equilibrados, designadamente sustentando os desportos e modalidades que, pela sua natureza e pelas suas características, não têm as possibilidades de aglomeração de recursos e de meios que o futebol como negócio tem. Portanto, deveria haver um papel corretivo do Estado. Mas o Estado, com exceção dos valores do iluminismo ‒ da igualdade, da liberdade e da fraternidade ‒, está hoje completamente vendido ao neoliberalismo e à escola de Chicago. O Estado vive do negócio, apoia o negócio e estimula o negócio. E não há, nas diferentes famílias políticas, diferenças significativas naquilo que o Mário Soares designava como capitalismo de casino. É pouco expectável que, mesmo aqueles que são herdeiros de um pensamento socialista ou social-democrata, corrijam esta rota e não se deixem embalar pelas teses do Silicon Valley, das startups, da globalização, enfim… todas essas teorias que têm dado cabo da Europa e do mundo.

E de que maneira o desporto em Portugal sofre desse excesso de neoliberalismo?

Pela forma como as políticas públicas são encaradas, e até à presente data, pelos míseros orçamentos com que é financiado, valendo-se daquilo que é o mérito da recolha de fundos por parte da Santa Casa da Misericórdia ‒ não é com os impostos dos portugueses. Através de uma manobra interna, conseguiram integrar a receita dos jogos no perímetro do Orçamento do Estado. É basicamente daí que vem o financiamento ao desporto. E que faz com que a dotação que o Estado central tem, até à presente data, para apoio ao desenvolvimento desportivo seja inferior ao orçamento de algumas federações, designadamente a do futebol.

Isso faz com que, por exemplo, Portugal raramente consiga levar desportos coletivos aos Jogos Olímpicos?

Não creio que seja por insuficiência financeira que o futebol e o andebol não estejam nos Jogos Olímpicos de Paris. Foi por insuficiência desportiva, não foi por falta de meios nem de recursos que não conseguiram o apuramento.

Como avalia o financiamento do Estado ao desporto, numa escala de 0 a 10?

Cinco. Em relação ao Estado central, porque as autarquias têm uma linha de apoio ao desporto que está num nível até ligeiramente superior aquele que é a média da União Europeia. E muito do financiamento que é feito ao desporto, sobretudo à escala local, é garantido pelas autarquias. Em relação ao Estado central, o financiamento é perfeitamente miserável, em relação aos valores alocados ao Instituto Português do Desporto e da Juventude (IPDJ) para este distribuir pelas diferentes federações desportivas.

Valores que se mantém mais ou menos iguais de ano para ano, numa repartição sempre feita com base no orçamento do ano anterior…

Sim, sim. De resto, posso estar enganado, e peço desculpa se estiver enganado, eu nunca vi nenhum técnico do IPDJ a acompanhar as competições desportivas das federações e a verificar no local o trabalho que está a ser feito, como é que os recursos são aplicados. É sempre à secretária, no computador, de um ponto de vista estritamente administrativo. Não levantam o rabo da cadeira. Estão ali, como burocratas, a olhar para os planos e, em função das disponibilidades financeiras que têm ‒ haja bom trabalho ou mau trabalho ‒, a avaliar se aquilo que foi pedido foi aplicado para o que se destinava, ou se estava bem fundamentado. São burocratas, não são técnicos desportivos.

Estamos agora a celebrar os 50 anos do 25 de Abril. E convém lembrar que, logo nos primeiros Jogos a seguir à Revolução, em Montreal 76, Carlos Lopes ganhou uma medalha que, na época, parecia que iria ser o sinal de uma nova era no desporto em Portugal. Cinquenta anos depois, como avalia a progressão que existiu?

São coisas distintas. Esse momento ocorreu numa circunstância em que o diretor-geral do Desporto era o Alfredo Melo Carvalho, era o Partido Comunista e o MDP-CDE, que tinham uma cultura marcadamente desportiva e que receberam, então, um conjunto de apoios excecionais para o apoio ao alto rendimento e à participação olímpica. Depois foram afastados…

Esse apoio foi, nessa altura, decisivo?

Muito importante. Muito mérito também do Moniz Pereira, com aquela sua atitude permanentemente chata, de reivindicar tudo.

Havia lobby nessa época…

O Moniz Pereira era um lobista encartado [risos]. Mas, nessas circunstâncias, as coisas correram bem. Depois a situação política alterou-se e houve mudança dos titulares. Mas eu não avalio estes 50 anos como um retrocesso. Acho que evoluímos de forma positiva em muitos setores ligados ao desporto, mas assente basicamente no papel das autarquias, que tiveram e têm um papel decisivo, quer na promoção da atividade física, quer na promoção do desporto, quer na promoção de apoios financeiros, logísticos, operacionais ao tecido associativo local. E, nesse sentido, nós temos hoje, 50 anos depois, um quadro desportivo completamente diferente, para melhor, daquele que tínhamos, naturalmente, quando em 1974 ocorreu o 25 de Abril.

Mas, na altura, pensou-se que poderia ser melhor, quer dizer, da mesma maneira que também há 50 anos os portugueses pensaram que Portugal ia ficar ao nível de outros países europeus numa série de setores, a esperança não foi cumprida totalmente no desporto?

Imediatamente a seguir a esse período há um governo do Bloco Central que decidiu construir escolas sem ginásios. Tem aí a resposta à pergunta que me está a fazer. Um País que toma esta decisão é inclassificável. De resto, fui professor de Educação Física durante 21 anos e, talvez durante 15 desses anos, dava aulas na rua e nos recreios.

Mas em que escolas? Da região de Lisboa?

Caxias e Miraflores. Dava aulas na rua, onde hoje é a estação da Carris. E, portanto, um País que num processo de democratização, de abertura ao mundo e à Europa, tomou a decisão de construir escolas sem ginásios não tem classificação. Sofremos as consequências.

E continuamos hoje a sofrer as consequências?

Hoje, já não. Hoje, há excelentes instalações de Educação Física por esse País fora. Mas há um problema. Há setores muito significativos da Educação Física que não gostam do desporto.

Quais?

Professores de Educação Física. O que é, de algum modo, uma reposição histórica daquilo com que o Pierre de Coubertin foi confrontado, quando ele propôs a renovação dos Jogos Olímpicos, no final do século XIX. Nessa altura, as principais oposições vieram das sociedades médicas, alegando que aquilo faria mal à saúde, e dos professores de Educação Física, centrados na ginástica voluntária, na ginástica respiratória e muito inspirados no modelo sueco. Ele teve imensas dificuldades para fazer valer a sua tese. Essa influência não desapareceu. De resto, tem o exemplo da Escola Superior de Educação Física de Lisboa que mudou de nome para Faculdade de Motricidade Humana, num exercício perfeitamente inovador à escala global, porque havia, naquela altura, hoje é diferente, uma tendência profundamente crítica relativamente ao desporto. E há escolas de formação superior onde alguns dos docentes foram responsáveis pela elaboração dos programas para o Ensino Secundário profundamente críticos relativamente a essa matéria. Nós, a seguir aos Jogos do Rio, fizemos uma reunião com todas as federações desportivas e as faculdades de desporto. Você não imagina como é que aquilo correu. Os tipos mandaram-se aos dirigentes de uma forma perfeitamente inqualificável.

Mas invocando o quê?

A seletividade, a competitividade, a alienação, a segregação, o elitismo… Enfim, um conjunto de críticas de quem não percebe o que é o desporto, a sua história, a sua evolução e, sobretudo, as dificuldades dos próprios dirigentes. Nunca mais repeti essa iniciativa, que não correu nada bem.

É também por causa disso que, sendo Portugal, segundo o Eurostat, um dos países mais sedentários da Europa, não existe um sobressalto na sociedade?

Mais grave é terem manipulado o estudo. Porque os dois únicos indicadores que nos prejudicam são a taxa de filiação associativa e a taxa de participação do movimento associativo na promoção da prática do desporto. Todos os outros indicadores, inclusive o da atividade física, inclusive o do desporto escolar, são superiores àquilo que é a média europeia. E, portanto, a construção das políticas públicas deveria incidir sobre os fatores que nos desvalorizam, que nos desqualificam e que nos colocam naquela posição, e não os outros. A prática da promoção da atividade física tem, à escala de Portugal, indicadores muito superiores à média europeia. Basta ir à rua e ver as pessoas a correr, a nadar, a andar de bicicleta. Só que isto não é desporto organizado…

… É atividade física.

… Atividade física que vai buscar alguns elementos à prática desportiva. Não é aí que está o problema, mas sim no facto de não termos um quadro associativo suficientemente robusto, capaz de acolher e desenvolver todos aqueles que, revelando disponibilidade de interesse e qualidade para a prossecução de uma carreira desportiva, o possam fazer.

E não temos esse quadro porquê?

Por insuficiência financeira e de recursos humanos. Precisamos de renovar o dirigismo desportivo, que está muito envelhecido.

Batemos sempre no ponto da insuficiência financeira…

Batemos nós e os outros setores. O desporto não é menos do que os outros, tem custos e precisa de apoios financeiros. Em especial, para os grupos sociais mais carenciados, que não têm possibilidade de agarrar nos filhos ou netos e pô-los na natação, na ginástica, no ballet, no voleibol, nas escolinhas de futebol…

Posso estar a ser injusto, mas sinto-o pessimista em relação ao futuro do desporto português…

Sou pessimista do ponto de vista da razão, mas sou otimista do ponto de vista da vontade, do sentido de alterar as coisas. E, portanto, procuro encontrar algum equilíbrio relativamente a esta matéria. Mas tenho a idade que tenho e passei por várias fases. Venho ainda do tempo da ditadura e, por circunstâncias várias, contactei de perto com vários titulares e responsáveis pela área do desporto. E, por obrigação profissional, também acompanhei sempre este setor. É natural que tenha alguma sensibilidade, umas vezes com razão, outras vezes de forma injusta, mas tenho alguma sensibilidade.

É um observador próximo desta temática há muitas décadas. Qual é a leitura que faz dessa evolução. Sentiu alguma vez que andou a pregar no deserto?

Isso sinto muitas vezes. E tenho alguma frustração, gostaria que as coisas pudessem ir por outro caminho. Da minha parte, dou tudo o que tenho, e coloco tudo o que aprendi à disposição do movimento desportivo do País. Em certos casos, com algum sucesso em outros casos sem qualquer sucesso.

Quais foram as derrotas que lhe custaram mais?

Eu tive dois momentos muito dolorosos, um do ponto de vista pessoal e outro do ponto de vista institucional. Do ponto de vista pessoal, foi a atitude que o comodoro Patrick Monteiro de Barros tomou nos Jogos do Rio, em que destratou o Comité Olímpico de Portugal por causa do vestuário oficial da missão, que era da Salsa Jeans, e que tinha sido escolhido pela comissão de atletas. As declarações públicas que ele fez magoaram-me profundamente. Eu sei que ele tem um problema pessoal comigo, relacionado com a circunstância de, por incúria pessoal, não ter declarado um medicamento que tomava para a hipertensão e ter tido uma sanção antidoping. Mas eu, pese embora as pressões políticas que tive para abafar o caso, cumpri aquilo que era a minha obrigação.

E do ponto de vista institucional?

Aquilo que se passou com o anterior titular da Agência Nacional Antidopagem, que colocou Portugal em termos internacionais pelas ruas da amargura. E que foi um processo profundamente doloroso de ser gerido. Com riscos, muito elevados, para a suspensão de Portugal na participação em competições internacionais. E que é uma história que nunca se vai escrever, quer pelas proteções que a personalidade em causa tem quer porque… já passou. Ninguém está interessado em perceber como foi possível o Estado português ter entregado uma área de tamanha responsabilidade a uma pessoa que não estava qualificada para o exercício daquelas funções.

E as vitórias que recorda?

O carinho dos atletas, o apoio da generalidade das federações desportivas e as manifestações de solidariedade que tenho recebido da parte de um número muito significativo de pessoas ligadas ao desporto.

O Estado, com exceção dos valores do Iluminismo — da igualdade, da liberdade e da fraternidade —, está hoje completamente vendido ao neoliberalismo. O Estado vive do negócio, apoia o negócio e estimula

Foi professor de Educação Física, que conselho daria aos professores de hoje?

Que estudassem a história da Educação Física. Que deixassem por uns tempos o computador e lessem.

E, com esse estudo, fazerem depois o quê com os alunos?

Em primeiro lugar, perceberem a origem da Educação Física, a origem do desporto, os seus fundamentos, não apenas de caráter sociológico, mas sobretudo de caráter filosófico. E, depois, perceberem que a Educação Física, ou a educação do corpo se quiserem, é um elemento essencial na construção da personalidade dos jovens, se bem orientada. Não é pelo simples facto de se distribuírem umas bolas às crianças que, por osmose, os valores que estão associados à prática do desporto são assimilados e interiorizados. É preciso uma ação pedagógica e essa tem de ser garantida por parte do professor.

Já disse que as autarquias foram fundamentais para o desenvolvimento desportivo do País. Também trabalhou muitos anos numa câmara municipal. Que conselhos daria aos autarcas nesta área?

Que se preocupassem com a promoção do desporto, equilibrando-a com a promoção da atividade física. A promoção da atividade física enche o olho, a promoção do desporto é complexa, difícil, trabalhosa e conflituosa. Ter 100 campos de minivoleibol ou de minifutebol no Estádio Nacional tem um grau de complexidade completamente distinto do que fechar a Avenida Marginal ao trânsito e permitir que as pessoas a usem. Sem perderem a perspetiva da promoção do estilo de vida saudável, perceberem que o desporto é um exercício complexo, trabalhoso, que exige qualificação e que pede uma intervenção mais equilibrada com as políticas de promoção da atividade física.

Também foi presidente do Instituto do Desporto, um cargo de escolha política. Que balanço faz desse período? Eu sei que foram apenas dois anos. Não deu para fazer nada?

Olhe, deu logo tempo para eu não aceitar os delegados distritais que, por acordo que havia entre o PS, o PSD e o CDS, já estavam pré-designados. Eu fiz questão de não aceitar ninguém sem previamente os entrevistar. E houve alguns que não aceitei. Deu oportunidade para uma separação de águas entre aquilo que é o Governo e aquilo que é a Administração Pública. Eu era funcionário do Estado, não era funcionário do Governo. Deu para ganhar autonomia, que me foi respeitada pelo secretário de Estado Hermínio Loureiro, para o exercício das minhas funções e das minhas obrigações. Deu-me oportunidade para pôr o meu lugar à disposição quando percebi que queriam entregar parte do Estádio Nacional aos privados.

Mas isso quer dizer que já nessa altura era contra o neoliberalismo no desporto?

Completamente. De resto, a primeira questão que coloquei ao governante foi esta: mas eu nem fui votante do PSD. Portanto, vocês estão a escolher uma pessoa que nem foi vosso votante? Disseram-me que isso não era problema, disseram-me. Depois, editei um livro em que coligi uns textos que escrevia para o jornal Record, em que manifestava posições críticas relativamente ao presidente do Governo Regional da Madeira. Ainda me perguntaram se era possível evitar a publicação. Eu respondi: não, já está impresso. E saiu. Ninguém me levantou qualquer problema. A minha autonomia foi inteiramente respeitada. Eu só tenho de dizer bem do Hermínio Loureiro, como de todos os titulares da pasta do Desporto, com uma pequena exceção, que também foi curta, que foi a do secretário de Estado de Desporto Alexandre Mestre.

Porquê?

Porque ele homologou um parecer da Inspeção-Geral de Finanças completamente assassino para o Comité Olímpico de Portugal, numa matéria em que ele é especialista, e em que nós éramos obrigados a repor cerca de meio milhão de euros, correspondentes ao período em que os meus antecessores, presidente, secretário-geral e tesoureiro foram remunerados. Matéria que está perfeitamente regulada em termos de Carta Olímpica, e em que Portugal e Andorra são as únicas exceções em termos europeus, cujos titulares não são remunerados. E, portanto, criou-nos imensas dificuldades. Isto, além de se ter envolvido numas conversações para tentar evitar a minha eleição para presidente do COP. Quanto ao resto, não tenho qualquer razão de queixa, com nenhum titular, do ponto de vista pessoal, do ponto de vista institucional. Mas com divergências políticas, naturalmente.

Quais divergências?

Temos, naturalmente, uma divergência de fundo em relação ao financiamento. Eu admito que os titulares do Desporto fazem tudo o que lhes é possível para melhorarem o orçamento. Mas os tipos das Finanças e do Orçamento estão-se completamente nas tintas para aquilo que eles dizem. E o ministro que os tutela não tem músculo suficiente para chegar à mesa e impor algo ao primeiro-ministro. Portanto, eles gerem aquilo que têm, fazem umas aritméticas e apresentam as coisas da forma que, do ponto de vista da argumentação política, lhes é mais favorável.

Acabámos de mudar de governo. Não sente diferenças substantivas?

Até à presente data, não. Não me ocorre nenhum facto político relevante que eu possa comentar. Só que tenho uma excelente relação de natureza pessoal e institucional com o secretário de Estado, dr. Pedro Dias. Mas, do ponto de vista político, não tenho ainda o que comentar.

O olimpismo criado por Pierre de Coubertin era quase uma filosofia. Acha que ainda tem essa capacidade de poder mudar o mundo?

O olimpismo hoje é um negócio.

É só um negócio?

Completamente.

Se o movimento olímpico invoca um estatuto pacificador de relações entre os povos e as nações, então não pode ficar mudo e quedo quanto ao que está a acontecer na Palestina

Já não tem presente os ideais de Coubertin?

Isso é apenas para ornamentar o discurso político. Quando nós vemos o Gianni Infantino, presidente da FIFA, como membro do Comité Olímpico Internacional a opinar sobre as grandes questões do olimpismo, fica tudo explicado. O olimpismo é hoje um negócio puro e duro, vendido aos patrocinadores, com muito dinheiro distribuído pelos comités olímpicos nacionais, e, portanto, está completamente subjugado ao neoliberalismo e ao negócio. E o exemplo mais gritante disto é essa ideia peregrina de integrar os desportos eletrónicos no sistema das práticas desportivas. Não há outra razão, que ajude a explicar esta circunstância, que não seja o negócio.

Os ideais de Coubertin foram traídos?

Esqueça isso! Esqueça isso! Quais ideais de Pierre de Coubertin? Esqueça isso! Os ideais de Pierre de Coubertin servem para pôr lá nas paredes e para invocar isto e aquilo. A maior parte dos titulares dos órgãos da decisão não é do Comité Olímpico Internacional nem tem cultura coubertiana. Não estudou o olimpismo nem se preocupa com essa matéria. Se verificar os recrutamentos que são feitos para o Comité Olímpico Internacional, o que vai encontrar são políticos ou homens de negócios. Não vai encontrar filósofos, não vai encontrar pensadores, não vai encontrar intelectuais, não vai encontrar gente que ajude a pensar o desporto e que o ajude a promover um mundo melhor e um mundo mais pacífico.

E, no atual momento do mundo, acha que estes próximos Jogos Olímpicos vão ser profundamente políticos também?

O Thomas Bach tem declarações contraditórias. Uma, que os Jogos são políticos e, outra, que os Jogos são apolíticos. Mas a melhor resposta para dar à pergunta que me está a fazer é olharmos para a posição do Comité Olímpico Internacional relativamente a Israel. Não está a acontecer nada na Palestina? Qual é a posição do Comité Olímpico Internacional? Conhece-a? Que haja uma cultura anti-Rússia da parte do Thomas Bach, por razões até de origens históricas e culturais, e por força da violação quer da trégua olímpica quer do direito internacional por parte da Rússia, você não vê algo semelhante relativamente aos israelitas ‒ que criaram um grupo terrorista chamado Hamas e o armaram, rejeitando as negociações com as forças moderadas palestinianas ‒, que estão a massacrar e a dar cabo na Palestina. Pergunto: qual é a posição do Comité Olímpico Internacional? Conhece-a? Eu não conheço.

E devia ter?

Deve ter em relação à Rússia, como deve ter em relação a todos os conflitos que violam direitos fundamentais dos cidadãos. Se o movimento olímpico invoca um estatuto pacificador de relações entre os povos e as nações, não pode ficar mudo e quedo relativamente ao que está a acontecer na Palestina. Portanto, tem de fazer o mesmo que faz o secretário-geral das Nações Unidas, que é denunciar. E, se for caso disso, castigar.

Vivemos também numa época em que o discurso xenófobo e racista se tornou mais visível. O desporto deve ser uma arma contra esse discurso?

Sim, claro.

Os atletas devem ter intervenção política?

O desporto tem uma capacidade inclusiva, como agora se diz, muito significativa. E nós observamos isso, nós olhamos para as seleções no Europeu de futebol e verificamos que há muitos atletas com origens diferentes, que estão socialmente integrados. O desporto seguramente que deu um contributo positivo ‒ e oxalá continua a dar ‒ para a inclusão dessas pessoas. Mas tendo também consciência de que, com a forma desregulada como a Europa absorveu as diferentes imigrações e com o crescimento da extrema-direita, se criaram imensas dificuldades a uma política inclusiva.

O Comité Olímpico de Portugal apoia atletas refugiados. É o sinal certo que a sociedade deve dar?

Claro, devemos fazer tudo aquilo que está ao nosso alcance para ajudar aqueles que precisam. Se há cidadãos que foram expulsos ou tiveram de fugir a guerras, Portugal, tendo condições, deve dar-lhes todo o apoio para que se sintam socialmente integrados e responsáveis perante o país que os acolhe.

Um atleta que use o palco dos Jogos Olímpicos para exprimir as suas opiniões políticas ou a defesa dos direitos humanos ou a denúncia de alguma atrocidade deve ser penalizado ou não?

Não. Os Jogos Olímpicos devem ser um espaço de liberdade e, portanto, os atletas devem ter toda a liberdade para poderem exprimir as suas opiniões, devendo, porventura, naturalmente fazê-lo em contextos próprios. Mas o princípio geral, o da liberdade de expressão, deve ser perfeitamente salvaguardado em relação aos atletas, aos dirigentes, enfim, às pessoas em geral. Era o que mais faltava que houvesse uma mordaça para que, durante os Jogos Olímpicos, os atletas não pudessem exprimir as suas opiniões.

Muito bem, quais foram os momentos mais importantes do desporto português nos últimos 50 anos?

Eu creio que os títulos internacionais que o País tem alcançado, nas mais diferentes modalidades. Para um país pequeno, com as dificuldades que temos, apesar de tudo, em algumas modalidades e em certos contextos, temos um nível de competitividade externa extraordinário. E isso deve ser valorizado, até pelas dificuldades de base com que somos confrontados.

E, em termos particulares, quais foram as vitórias que mais o marcaram?

As medalhas que alcançámos nos Jogos Olímpicos. E alguns diálogos que tive com os atletas que, por razões óbvias, ficam apenas entre mim e eles.

Alguma vez, Portugal conseguirá organizar os Jogos Olímpicos?

Durante os meus anos de vida, acho que não. A organização de uns Jogos Olímpicos envolve dimensões, escalas e valores para as quais não temos qualquer capacidade.

Há quem defenda que uma candidatura seria importante, porque obrigava o País a pensar o desporto de outra maneira, a criar planos de longo prazo.

É falar com os gregos, com os brasileiros e até com os chineses e perguntar quanto aquilo custou e para que serviu. A Grécia, então, é um caso paradigmático. Eu creio que os países ricos do Golfo Pérsico vão dinamitar completamente a organização deste tipo de acontecimentos e os petrodólares vão marcar o futuro do mundo desportivo.

Quem mensagem gostaria de deixar aos portugueses para os Jogos de Paris?

Que apoiem a missão olímpica portuguesa, que apoiem os atletas portugueses, que tenham presente que estar nos Jogos Olímpicos já não é como no passado, em que bastava ter dinheiro para pagar a participação. Participar nos Jogos Olímpicos é hoje um exercício extremamente difícil, complexo, trabalhoso, que demora muito tempo a construir. Só está nos Jogos quem já revelou um valor desportivo extraordinário. Estou seguro de que, se as coisas correrem bem, o carinho e o apoio não faltarão. Espero que, se não correrem bem, essa compreensão tenha algum peso na avaliação final aos resultados da missão.

(Entrevista publicada originalmente na VISÃO nº 1638)

Não tenho, mas gostava de ter, o conhecimento direto e único do Rui Tavares Guedes sobre os Jogos Olímpicos. Poucos viram o que ele viu e estiveram onde ele esteve. Mas de longe, a maior de todas as impressões com que fiquei destes jogos, que correram impecavelmente, foi a verdadeira utilização da cidade de Paris para a sua realização.

Estes foram mesmo os Jogos Olímpicos de Paris! A Torre Eiffel e todos os lugares históricos e imponentes da capital serviram de palco para memoráveis exibições desportivas, e isso encantou os locais e os que vieram do mundo para participar e assistir a estas Olimpíadas.

Percebe-se, por isso, o custo mais contido desta organização, que deve ter atingido os 10 mil milhões de euros. O Japão gastou 35 mil milhões de dólares, e o Brasil ultrapassou os 16 mil milhões. O retorno estimado e calculado ainda está por apurar, mas o turismo, o comércio e o investimento em infraestruturas impulsionaram e renovaram a cidade.

É um exemplo feliz a ser seguido. Paris sentiu diretamente os Jogos, nas suas ruas, nos seus palácios, nos seus estádios e no seu Sena (mais “lavado” apesar de tudo). Nada de construir, e depois abandonar, olímpicas “cidades” e “aldeias”. Foi uma grande ideia, uma grande organização e um grande sucesso. Como vão ser os Jogos em Los Angeles?

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

No consultório, situado na Avenida de Roma, em Lisboa, destacam-se várias gravuras emolduradas, feitas com tinta da china. Boa parte delas, da autoria do pai, convivem com desenhos oferecidos por pacientes. “É uma forma de reconhecimento”, esclarece o anfitrião, oferecendo a sua cadeira e sentando-se numa das outras, dispostas em círculo. O sotaque açoriano e o apelido sugerem uma ligação, que confirma, ao escritor João de Melo, presente no lançamento do novo livro: “O avô dele era primo do meu avô.”

Em Lugares Escondidos da Mente – Do mais sombrio ao mais luminoso da natureza humana (Bertrand, 208 págs., €16,60), o coordenador do Hospital de Dia do Serviço de Psiquiatria no Hospital Fernando Fonseca aborda as muitas facetas que nos definem enquanto humanos e convida os leitores a percorrerem os lugares mais recônditos e obscuros da psique. João Carlos Melo tem marcado presença em podcasts de saúde mental e, como na palestra sobre a cura pelo amor na personalidade borderline (TEDxLisboa), realizada no início deste ano, volta a sublinhar a função transformadora dos afetos e da esperança em tempos de brumas e de incertezas várias.

Após décadas de experiência clínica, que mudanças assinala na relação entre médico e doente?
Desde 2004 que estou no Hospital de Dia (do Amadora-Sintra), mas regressei ao Internamento durante a pandemia e notei grandes diferenças. O papel deu lugar ao computador e muitas pessoas queixam-se, porque o médico não olha para elas. O tipo de patologia também mudou. Em Lisboa e Vale do Tejo, por exemplo, há mais doentes graves. As urgências e os internamentos em Psiquiatria estão cheios, até nos hospitais privados. As pessoas sentem-se mais sozinhas, a vida é mais stressante e, com as redes sociais, tem-se a ilusão de comunicar em rede, mas falta contacto humano.

No novo livro, aborda as nossas facetas luminosa e sombria como se estivesse a conversar à mesa de um café. Qual é a sua técnica?
Procuro não me repetir na forma de escrita e nos temas que me interessam. Grande parte do meu dia é a atender pessoas e, quando tenho alguma pausa, vou juntando fragmentos e ideias, tomo notas, faço um índice provisório e, mais tarde, vem o texto corrido: escrevo, revejo, emendo, deixo de lado, volto lá. Neste livro, quis abordar o outro lado das coisas: o consciente e o inconsciente, o sadismo e o masoquismo, a bondade e a maldade, as questões do corpo e da mente e, ainda, quantos lados tinha a solidão. Como esse capítulo ficou maior do que os outros – e esse período coincidiu com a pandemia –, decidi transformá-lo numa obra autónoma [Uma Luz na Noite Escura]. Só então retomei o que estava em standby, sobre os mecanismos que estão por detrás da aparência.

Como explica a nossa faceta sombria e violenta?
No reino animal, há espécies que matam os seus – os suricatas, os veados e as gazelas e os primatas –, mas nenhuma o faz com gozo e sadismo como a humana. Um modelo que ajuda a explicar isso refere que, há seis milhões de anos, havia uma população de símios semelhantes a alguns chimpanzés, numa zona de África que compreende o atual Congo e a Etiópia. Fenómenos geológicos profundos separaram a população em duas: uma evoluiu até chegar a nós, a outra conduziu ao chimpanzé comum, descoberto há 400 anos, e ao bonobo, há cem. Estes, mais parecidos connosco em elegância e empatia, têm uma comunidade matriarcal e resolvem problemas com sexo. Os outros, guerreiros, hierárquicos e pouco empáticos, matam os da sua espécie. Temos um pouco de cada um deles.

Por que razão a psicopatia não está classificada como uma doença mental?
Classicamente, não se considera doença, mas não é normal. Na doença mental, a pessoa não tem responsabilidade sobre o seu comportamento ou sintomas, da mesma forma que não escolhe ter febre ou dores. A psicopatia é uma perturbação do caráter que se manifesta num funcionamento social, que não é harmonioso nem saudável. Porém, se sabe o que está a fazer, a pessoa deve ser responsabilizada por isso.

O que distingue um psicopata de um psicótico, já que os termos, parecidos, se prestam a confusão?
Um psicótico tem alucinações e delírios que o afastam da realidade. Um criminoso comete atos pelos quais pode ser preso. Alguns psicopatas não cometem crimes, mesmo que seja à custa de estudar o Código Penal, sabem o que fazer, ou não, para evitar serem apanhados, mas muitos serial killers são psicopatas, porque não têm empatia. Uma pessoa com síndrome de Asperger também não a tem, é capaz de chegar ao pé de alguém e dizer “estás tão gordo!” por lhe faltarem neurónios-espelho, sem perceber que pode magoar o outro e deixá-lo triste. Se lhe explicarem isso, pode comportar-se de outra forma, mas um psicopata não respeita nem tem sentimentos pelos outros, eles são um meio para ele obter o que quer.

Esse tipo de funcionamento é fomentado pelo ambiente?
Se houver predisposição, circunstâncias como a falta de valores e princípios e de educação, a competitividade, a rivalidade ou a necessidade de poder podem favorecer atos psicopáticos.

Já se cruzou com alguém assim, na clínica ou na vida pessoal? 
Tive doentes com algumas características psicopáticas. Um psicólogo francês construiu uma escala – mais usada em contexto forense – e, se a pontuação for superior a 30, pode dizer-se que a pessoa é psicopata, mas há que levar em conta os gradientes entre zero e trinta. Estima-se que existam 2% da população com estas características, mas não as identificamos se nos cruzarmos com indivíduos que as têm. Alguns são mais sedutores, mais fascinantes ou com mais carisma.

Quase se confundem com o perfil do narcisista.
Um indivíduo com características narcísicas que não tenha empatia, compaixão, culpa ou remorso também é um psicopata. Dou-lhe um exemplo: um homem que tem sentimentos de grande inferioridade, baixíssima autoestima e uma masculinidade devastadora, se for mais neurótico – mais normal –, isto manifesta-se de determinada maneira, porque tem consciência de que não vale nada, fica angustiado e a mente arranja forma de transformar isto em sintomas como a disfunção erétil ou ejaculação precoce. Quem é perverso não sente essa inferioridade, que se manifesta em comportamentos. Por exemplo, ir a escolas, abrir a gabardina e mostrar o pénis, que dá a ilusão de ter um poder fálico.

Como lida com psicopatas que recorrem à terapia?
Quem é psicopata não tem propriamente uma doença e não pede ajuda. Pode fazê-lo se estiver deprimido, ansioso ou com insónia – e falo no masculino, porque a maioria são homens – mas, assim que o problema fica resolvido, deixa de vir às consultas. Ou então faz falsos pedidos de psicoterapia: aparece porque a mulher lhe fez um ultimato e ele não quer perder a pessoa para evitar a perda. Nesses casos, digo que não vale a pena, pois, se não admite que quer mudar, o tratamento seria uma farsa. 

Assistimos ao avanço dos populismos e da direita radical, mas há também grandes grupos que resistem e têm influência para mudar esse rumo. O caminho faz-se entre a luz e as trevas

Pode explicar o que quer dizer quando fala em violência com máscara de sanidade?
O psicopata tem uma imagem confiante e dele se diz “é um grande líder”, “é autoritário mas tem de ser” e coisas do género, mas quem lida com ele queixa-se: humilha sem dó nem piedade, faz bullying e assédio e tem atitudes que enlouquecem os outros. Se lhe perguntam “porque me humilha?” vai negar e dizer “está a precisar de umas férias”, invalidando o que o outro sente. O abuso de poder também acontece em privado. Nas relações amorosas, escolhe a vítima, dá-lhe o que precisa para se fazer necessário e ligar-se a ela, e depois seduz quem está à volta.

A sociedade que temos está a atravessar um período mais negro?
Há fenómenos cíclicos e uma tendência para as sociedades e culturas se autorregularem. Assistimos ao avanço dos populismos e da direita radical, mas há também grandes grupos que resistem e têm influência para mudar esse rumo. O caminho faz-se entre a luz e as trevas.

Critica-se os media por só darem más notícias, levando a mais ansiedade e descrença. É assim?
O cérebro humano está programado para destacar as notícias que têm sangue e estimulam a curiosidade. Por exemplo, “sabias que fulano, que é diretor, bate na mulher?” De um modo geral, os jornalistas querem transmitir factos e acredito que muitos gostariam de divulgar coisas boas, mas, se alguns decidirem fazer isso, podem ser engolidos pelos que apostam nas notícias bombásticas. As boas também existem e há media que as divulgam. Costumo ouvir uma rubrica na Antena 1, Histórias com Final Feliz, mas o que vende é o Cristiano Ronaldo que falhou o penálti e o outro que o criticou.

Há um século, o lema era transformar o sofrimento histérico em infelicidade comum. E hoje?
Hoje, assiste-se à ditadura de ter de ser feliz. Ao mesmo tempo, há movimentos de oposição a isso. Ocorre-me o livro A Arte Subtil de Saber Dizer Que Se F*da [Mark Manson], que vendeu muito por ser um manifesto contra esta tendência. Aceitar a imperfeição é mais realista e saudável, pois quem se submete a uma fasquia criada por si e influenciada pelo meio social, centrado na felicidade, sente-se um falhado.

A proximidade dos clínicos com os seus públicos – nas redes sociais e número de seguidores, por exemplo – comporta riscos?
Na minha formação, aprende-se que o psicoterapeuta não deve falar de si nem expor coisas da sua vida, mas também é verdade que os pacientes mais graves apreciam ver a face humana dos seus terapeutas e se sentem orgulhosos por eles terem visibilidade.

Era um jovem no 25 de Abril. A democracia está na crise da meia-idade?
Eu tinha 13 anos e estava no liceu. Mandaram-nos para casa, por estar a haver uma revolução. Pensei que era uma coisa má, porque essa era a palavra que o meu pai usava quando chegava a casa e via os brinquedos dos miúdos espalhados pela casa. Mais tarde, ouvia os colegas do liceu a dizer “o professor tal é fascista” e assim fui ganhando outra visão dos acontecimentos. Lembro-me de, na escola primária, todos vestirem a farda da Mocidade Portuguesa no 10 de Junho e de o meu pai não deixar que isso acontecesse, porque éramos diferentes dos outros, e ninguém nos fez mal por causa disso. Dessa experiência retirei a coragem dele e o caráter pacífico daquela sociedade, que era pobre e com atraso a muitos níveis.

Mas voltando à democracia…
Não senti a crise da meia-idade e prefiro falar em maturidade, em que há lugar para desilusões e, também, entusiasmos. Noto a mesma coisa na sociedade: pode não haver aquele fascínio, a revelação do que foi a liberdade, mas ver o espírito de festa e tantos jovens nos 50 anos do 25 de Abril é um exemplo desse entusiasmo.

Há razões para ter esperança na Humanidade e admitir que há, mesmo, almoços grátis?
Acredito na capacidade de autorregulação e de renovação das sociedades. Sendo realista e baseando-me na minha experiência, posso concluir que, para algumas pessoas, não há almoços grátis, porque nunca dão ponto sem nó e, se dão alguma coisa, cobram mais tarde, mas outras fazem-no sem estar à espera de receber, e isso é um almoço grátis. As pessoas que têm apresentado os meus livros, nada tinham a ganhar com isso, fizeram-no por generosidade, e estou grato.

Portanto, que os lados bons não sejam apagados pelos maus, que chamam mais a atenção. É isso?
É. As coisas negativas da natureza humana destacam-se mais, mas as partes boas, luminosas e brilhantes existem e devemos agarrar-nos a elas.

Viva, bom-dia  
Bem-vindos a mais uma Arquivo VISÃO, newsletter através da qual recordamos os melhores artigos publicados na VISÃO desde 1993. Logo à noite, já saberemos o que a organização de Paris 2024 nos reserva em matéria de cerimónia de encerramento – depois do festim que foi a inauguração, há duas semanas, a fasquia está bem alta. Allez!    
Por cá, ainda se faz o balanço destas Olimpíadas e, sobretudo, fazem-se contas ao medalheiro nacional. Podíamos ter mais medalhas, merecíamos ter mais diplomas, a conversa é a do costume, quando o diagnóstico está mais do que feito. Acabaram os tempos dos sacrifícios sem limites (amanhã faz 40 anos que Carlos Lopes, o eterno, ganhou o ouro na maratona, em Los Angeles), se querem campeões, é preciso fazê-los, o que, diga-se de passagem, além do trabalho no corpo e na cabeça, também implica pagá-los. Como o campeonato nacional está prestes a começar, vem mesmo a propósito lembrar que há muito desporto para lá do futebol. Siga, rola a bola, daqui a quatro anos há mais. E parabéns aos vencedores, à Patrícia de bronzeao Iúri e ao Pedro Pablo de prata e, por fim, à dupla de Iúri/Rui de ouro!  

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A artista Charli XCX, de 31 anos, lançou no passado 7 de junho o seu novo álbum de música, intitulado “Brat”, que está a fazer sucesso nas plataformas musicais, tendo estreado em 3.º lugar no ranking da Billboard. A coletânea de canções, a sexta da cantora, tem sido bem recebida pelo público e dominado a cultura pop nos últimos meses através da cor verde – escolhida para a capa do álbum – e ao criar novos termo pelas redes socias, o “Brat Summer”.

Originalmente utilizado para descrever crianças e jovens mal-comportados, “Brat”, tornou-se, este verão, numa verdadeira “filosofia de vida”, inspirada nas tendências de moda dos anos noventa e na cultura rave. De forma semelhante a termos como “Hot girl summer” ou “Portuguese girl” – que se tornaram virais em 2023 – a denominação “Brat” pretende, através de um conjunto específico de características, dar nome a um “estilo de vida”, com ênfase no lado festeiro e desorganizado das jovens que com ele se identificam.

Do termo original rapidamente surgiram novos conceitos, como o “Brat summer” – em português, “verão brat” – descrito como um “estado de espírito” inspirado pelo álbum de Charli XCX. Segundo a cantora, uma pessoa “Brat” é alguém que é “um pouco desarrumado que gosta de festas e que talvez diga algumas coisas estúpidas por vezes. Que se sente ela própria, mas que também tem colapsos por vezes. É muito honesta, muito direta e um pouco volátil. Isso é Brat”, referiu. Acima de tudo, o novo sentido da palavra pretende encorajar a autenticidade e a aceitação pelas pequenas imperfeições, consideradas “provas da humanidade” da pessoa. Entre o essencial para viver um verdadeiro verão “Brat”, segundo a britânica, encontra-se “um maço de cigarros, um isqueiro Bic, um top branco de alças e sem sutiã”.

Com mais de 93 mil publicações, a hashtag “bratsummer” já inspirou múltiplos memes, danças e tendências da internet criados e consumidos, sobretudo, pelas camadas mais jovens. Entre o tipo de conteúdos partilhados mais populares na rede social TikTok encontram-se as danças, especialmente uma coreografia criada por Kelley Heyer ao som de “Apple”, uma das canções de maior sucesso do álbum de Charli XCX. O sucesso da coreografia foi tanto que a própria artista acabou por partilhar um vídeo, com amigos, em que realiza a dança.

“Kamala é Brat”

Desde o lançamento do álbum, a estética “brat” – e tom de verde que lhe está associado – tem dominado vários aspetos da cultura Pop, desde produtos verde-lima, a campanhas de marketing e até à sua utilização por políticos, como Kamala Harris. Desde que anunciou a intenção de entrar na corrida eleitoral pela liderança da Casa Branca, a ainda vice-presidente já reuniu um elevado número de fundos para a campanha bem como o apoio público de várias personalidades conhecidas. Uma das primeiras demonstrações de apoio surgiu de Charli XCX que, horas depois do anúncio de Kamala, escreveu na sua página pessoal da rede social X  “Kamala is Brat” – em português “Kamala é brat”. Uma frase que, em poucas horas, ganhou um alcance gigantesco na internet e que está a ser aproveitada pela equipa de campanha de Kamala para chegar aos eleitores mais jovens.

De forma a alinhar-se com a recente sensação da internet, a conta de Twitter da campanha de Harris mudou o seu nome de utilizador para KamalaHQ, bem como a sua fotografia de capa para a cor do álbum da cantora – verde -, optando pelo estilo “Brat”.

“A VISÃO tem de humanizar os imigrantes.” Estamos já no final da entrevista quando o investigador Pedro Góis se sai com este conselho. O especialista em migrações sabia que estávamos prestes a rumar ao Alentejo e adivinhou que o seu conselho, em tom de pedido, iria ficar a pairar nos dias seguintes – como não?

Como não nos desmancharmos ao ver o sorriso de Bhima, que diz logo à cabeça, orgulhosa, ter sido ela a levar outros nepaleses para o restaurante onde trabalha, na região de Odemira, ou ao darmos pelo ar triste do marroquino Rachid, enquanto abre o seu saco-cama, escondido entre casuarinas frondosas q.b., na mata de frente para o parque de merendas da cidade de Beja?

Dolly e Bhima
32 e 34 anos


Empregadas de mesa
Além da indiana e da nepalesa, há mais 17 imigrantes no restaurante A Azenha do Mar, perto de São Teotónio.

Como não nos comovermos com a solidão dos jovens timorenses Simão e Julião, que moram numa antiga estação de comboios, nas imediações de Aljustrel, cujos edifícios andam a reabilitar, ou com o olhar de curiosidade do bebé Ahmadou, filho de uma cabo-verdiana e de um senegalês, nascido há oito meses em solo alentejano?

E como, por favor digam-nos, como regressar indiferentes ao conforto das nossas casas, ao dia a dia passado na companhia de familiares e amigos, à segurança de um trabalho constante, depois de ficarmos a conhecer as histórias de vida dos imigrantes com que nos cruzámos?

“Eles são pessoas iguaizinhas a nós”, começara Pedro Góis, “mas que fazem grandes viagens para ir até um país que não conhecem. São muito empreendedores e com coragem para melhorar a sua vida”, lembra.

“É curioso que, 500 anos depois, a viagem seja feita ao contrário. Os marinheiros portugueses também iam à procura de uma melhor vida. Hoje, estamos a receber o retorno dessas caravelas, e sem conflitos”, nota o investigador. “Quantos são os casos de problemas com esta comunidade? Se pudéssemos escolher, escolhíamos este perfil de imigrantes tão trabalhadores. Experimentem entrar numa estufa… onde estão 50 graus.”

UM CAFÉ E UMA CHAMUÇA

De Odemira a Beja, este é um Alentejo em mudança “e que nunca mais voltará atrás”, vaticina o professor de Sociologia da Universidade de Coimbra (ver entrevista, pág. 47). Certo é que a onda, que começou no Litoral e entretanto chegou ao Interior, não encontra parança. Nem a extinção, em junho, do regime de manifestação de interesse, que permitia o pedido de autorização de residência, travou os imigrantes à procura de trabalho.

No concelho de Odemira, em meados de julho, foram detetados 66 estrangeiros que não tinham comunicado a entrada em território nacional, dentro do prazo obrigatório de três dias úteis. Em Beja, quem está no terreno garante que os imigrantes não param de chegar, diariamente. “Nem que se levantasse um muro, continuavam a entrar pessoas, todos os dias”, acredita Madalena Palma, da Estar, associação sem fins lucrativos, criada para dar resposta rápida e sem burocracias a quem precisa de ajuda.

Dois timorenses e uma linha parada

Os carris cheios de erva, frente ao apeadeiro Castro Verde-Almodôvar, no Carregueiro, servem de metáfora para a vida atual de Julião e de Simão

No verão de 2022, as notícias deram conta de um “fenómeno novo”. Entre junho e setembro, tinham chegado a Portugal cerca de três mil timorenses – quase dez vezes mais do que no ano anterior. Em outubro, eram perto de 600 só no Baixo Alentejo, que ali tinham aparecido sem contrato nem experiência na agricultura.

Os cidadãos de Timor-Leste não precisam de visto durante 90 dias em território nacional, podendo depois dar início ao processo de legalização. Alguns teriam viajado à boleia de promessas de trabalho; outros terão interpretado mal a mensagem deixada pelo Presidente português numa visita oficial a Timor, em maio desse ano.

Em Díli, Marcelo Rebelo de Sousa incentivara jovens universitários a visitar Portugal. A 31 de outubro, no final de um encontro com o Presidente de Timor-Leste, José Ramos-Horta, em Lisboa, sublinhou que o fizera nesse contexto, mas terão sido os trabalhadores indiferenciados a ouvi-lo com mais atenção.

Certo é que se fizeram ao caminho milhares de timorenses, e eram, então, notícia por terem ficado em situação de sem-abrigo em diversas localidades. Só em Beringel, a dez quilómetros de Beja, juntaram-se mais de 100, depois de terem sido apoiados pela associação Estar, chamada de urgência pelo presidente da junta, que andou a distribuir comida durante vários dias.

“Estivemos numa casa onde havia uns 50 timorenses, novíssimos, todos esganados de fome e sem falar português”, recorda Madalena Palma, uma das fundadoras da Estar. “Eram os pobres dos pobres, que se empenharam para viajar.”

Agosto de 2024. Quando alguém entra na antiga estação de caminho de ferro do Carregueiro, a nove quilómetros de Aljustrel, dá logo pelo pequeno altar a Nossa Senhora de Fátima que Simão e Julião improvisaram numa velha mesa de cabeceira, com imagens, uma vela, um terço e uma palma. Os dois primos-irmãos já foram a Fátima, “claro”, que conheciam de ouvir falar em Maliana, capital do município de Bobonaro, no Interior de Timor-Leste e a poucos quilómetros da fronteira com a Indonésia.

Simão dos Santos, licenciado em Economia e Empreendedorismo pela Universidade da Paz, em Díli, chegou a Portugal em outubro de 2022, quatro dias antes de Marcelo e de Ramos-Horta debaterem o drama dos timorenses. Estava nas obras, mas sem perspetivas, e vislumbrou uma boa oportunidade quando uns amigos lhe garantiram que havia trabalho para ele na Salvada, perto de Beja.

Andou na apanha da azeitona, até que o patrão, um marroquino, deixou de pagar. Sem dinheiro para a renda, acabou a dormir na rua, duas ou três noites de um dezembro gelado e que lhe pareceram uma eternidade.

Eram, ao todo, 15 timorenses, e no grupo estava também Julião Oliveira, mais novo um ano, já casado e com uma filha de 5 anos, que tinha começado por tentar a sorte em Santarém. Foram todos ajudados pela Cáritas e, quatro meses depois, os dois eram contratados para reabilitar os vários edifícios do antigo apeadeiro. Entretanto, também já trabalharam noutras obras, no Alentejo e no Algarve.

O patrão aparece ao domingo, diz-lhes quais são as tarefas da semana seguinte e leva-os a comprar comida, em Aljustrel. Noutros dias, pode calhar pegarem nas bicicletas para visitar uns amigos timorenses que trabalham nas minas da Almina. “Nos tempos livres, vemos coisas na net, no telemóvel, ou telefonamos à família.”

O território mudou. A paisagem humana mudou. Entre Vila Nova de Milfontes e Aljezur, onde antes havia mato, agora há mares imensos de estufas até onde a vista alcança, mais brilhantes do que o Atlântico ali à beira. E por todo o lado veem-se pessoas oriundas de paragens longínquas.

Em agosto de 2024, já poucos ficarão surpreendidos ao ler uma descrição atual do Largo Gomes Freire, em São Teotónio, que nesta vila do concelho de Odemira todos conhecem como Quintalão, mas para muitos visitantes ainda será novidade entrar na pastelaria Doce Amanhecer e poder pedir uma chamuça vegetariana e logo a seguir um quadradinho de barfi suficientemente doce para cortar o picante do frito.

Numa tarde quente de verão, claro que são vários os imigrantes à sombra das decorações coloridas, que sobraram do Festival dos Mastros de junho, a justificar encontrarmos aqui um kebab e um minimercado com produtos asiáticos, mas a coexistência com os habitantes de sempre parece pacífica. Na esplanada da antiga pastelaria, cujos para-ventos anunciam ter comida indiana e italiana, continuamos a ver alentejanos a beber o cafezinho depois do almoço.

Quando Rima Rabeya telefona a avisar que já chegou ao Quintalão, demoramos a reconhecê-la. Os estereótipos traem-nos, e ela, embora seja do Bangladesh, tem um aspeto europeu, muito provavelmente porque cresceu em Dakha, foi jornalista num canal de televisão e emigrou há oito anos.

Tinham-nos dito que Rima era “muito empoderada”, boa para falar sobre as mulheres imigrantes. Num instante, ficamos a saber que saiu do seu país por razões de segurança (“Lá não é fácil ser mulher e querer a liberdade”, diz, em inglês, enfatizando a palavra freedom) e que passou por 13 países antes de chegar a Portugal. 

Há quase cinco anos, entrou por Lisboa, onde tinha amigos, mas desiludiu-se com a cidade “demasiado populosa” e com o trabalho num restaurante, que sentiu ser “um negócio muito masculino”. Acabou por procurar emprego na região de Odemira, numa empresa que produz vegetais e ervas aromáticas para os mercados nacional e internacional, e pouco tempo depois tornou-se mediadora da Taipa, cooperativa para o desenvolvimento integrado que ajuda os migrantes que chegam a Odemira (tem protocolos com a câmara e parcerias com empresas).

Coabitação Na pastelaria Doce Amanhecer, em São Teotónio, há café português e doces indianos

“Vinha por três meses, com muitos livros na mala, mas fiquei três anos”, ri-se. Teve de regressar entretanto a Dakha, quando a mãe adoeceu, e há dois meses que está de novo em São Teotónio, onde espera, aos 38 anos, ter tempo para o mestrado em Estudos sobre as Mulheres, na Universidade Aberta, e conseguir voltar ao trabalho de mediação.

“As mulheres imigrantes, sejam elas do Bangladesh, da Índia ou do Nepal, veem o exemplo das portuguesas e querem o mesmo para elas, mas muitas ainda nem sequer conhecem os seus direitos”, diz. “As Três Marias levantaram as suas vozes há 53 anos, por cá, e nós só agora estamos a passar por isso”, compara, “mas há muitas Marias na nossa comunidade”.

A nepalesa Bhima, de 34 anos, é uma dessas Marias. Conhecemo-la no restaurante A Azenha do Mar, a uns passos do lindíssimo porto de pesca da povoação com o mesmo nome e a uma dúzia de quilómetros de São Teotónio. Mal acaba de servir umas lulinhas fritas, que cheiram pela vida, diz, batendo no peito: “Sou a primeira empregada daqui! E os outros nepaleses vieram por causa de mim.”

“TUDO NOVO, SEM AMIGOS…”

Oriunda de Pokhara, a 200 quilómetros de Katmandu, Bhima chegou sozinha a Portugal, há quase seis anos, e já se habituou a responder por Vilma. Antes, passou três anos na Dinamarca, cinco na Suécia e três meses em Espanha, a trabalhar no campo e em hotelaria. Portugal, mais barato do que os outros países europeus, só não é absolutamente perfeito porque não conquistou o filho, Sanjal, hoje com 17 anos.

No ano passado, Sanjal esteve quatro meses em São Teotónio e não se adaptou. “Tudo novo, sem amigos, com uma língua diferente na escola… E é uma zona demasiado tranquila para um jovem, eu entendo”, ri-se Bhima.

O futuro próximo de ambos deverá, por isso, passar pelo Reino Unido ou pela Noruega, onde têm familiares. Uma pena, diz ela, porque gosta do seu emprego. “Noutros lados, força-se muito a trabalhar. Aqui, se não temos o que fazer, podemos descansar. E é o que fazemos, não andamos a gastar o dinheiro que é para mandar para a família.”

Retrato de família

O sonho do senegalês Mame Gor Sene era ter em Portugal todos os filhos

Aos 42 anos, o senegalês Mame Gor Sene é um homem realizado, embora ainda não completamente feliz. “O meu sonho era o resto de a minha família estar cá amanhã, mas o reagrupamento é muito difícil; com o IRS do ano passado, só consigo trazer duas pessoas.”

Em Dakhar, deixou a primeira mulher, Coumba, e três filhos, de 16 anos, 13 e 3. Já tentou convidar o mais velho, Bassirou, para 20 dias de férias, mas o pedido de responsabilidade foi-lhe recusado. Pediu, entretanto, o reagrupamento familiar e acredita que o miúdo vai conseguir frequentar cá o Secundário.

Em Beja, Mame celebrou uma cerimónia religiosa com Fatu, de origem cabo-verdiana, mas que cresceu no Senegal. Os dois conheceram-se no Alentejo, através de um amigo comum, e são pais de um bebé, de oito meses.

Mame trabalhou em Marrocos, Espanha e Itália, antes de rumar a Portugal. Começou logo pelo Alentejo, a apanhar azeitona e uvas, e depois quase fazia carreira como soldador, mas não desistiu até conseguir abrir uma loja de produtos senegaleses, a dois passos do Luiz da Rocha, o café mais antigo de Beja.

Há quase quatro anos, quando Carla Dâmaso decidiu tomar conta deste restaurante famoso pelo arroz de marisco e o peixe grelhado, apareceu-lhe logo Bhima, que foi passando palavra a amigos e a conhecidos. Hoje, dá emprego a 16 nepaleses (mais homens do que mulheres), duas indianas, uma cubana e duas portuguesas. “O nosso chefe de cozinha, o Hari, é nepalês. Tem só 24 anos e é uma máquina, aprendeu os pratos todos só a observar. Já lhe disse que devia fazer formação com um grande chef, mas ele ri-se, envergonhado.”

De início, Carla foi criticada por dar emprego a imigrantes, mas com o tempo vários colegas seguiram-lhe o exemplo. “Se não fossem eles, eu não conseguiria ter o restaurante aberto”, garante. “Os clientes gostam muito deles, e são todos tratados como família, até porque estão cá sozinhos. Defendo-os sempre, em qualquer situação.”

Agora, de cada vez que precisa de um empregado, aparecem-lhe dez, muitos com histórias de exploração laboral. “Aqui, o ordenado é bom. Comem cá, as gorjetas dão para pagar o quarto, o dinheiro do salário é para guardar. Já todos foram aos seus países e antes não conseguiam ir”, nota.

“Na restauração fazemos muitas horas, comprei umas carrinhas para as viagens de ida e volta dos que moram em São Teotónio, mas nem sempre há tempo. Então, ficam pela Azenha e descansam, jogam à bola num campo aqui perto ou fazem doces que comemos juntos”, conta. “Não vão à praia, porque têm vergonha de se despir, mas divertimo-nos a dançar as músicas deles, e já está prometido que vou ao Nepal quando algum se casar.”

Dolly, hoje com 32 anos, nunca tinha visto marisco na vida. Há cinco anos, depois de uma experiência curta em Londres, veio de Nova Deli, na Índia, quase diretamente para São Teotónio, após uns dias em Lisboa. Antes de trabalhar como ajudante de cozinha na Azenha, passou pelo armazém de uma empresa de floricultura. “Uma sorte, porque era um bom patrão”, recorda. “E, agora, a Carla é uma amiga.”

Já no restaurante, Dolly percebeu que era importante começar a aprender português com maior afinco. Há dois anos, quando houve uma falha no serviço de mesas, estava pronta a explicar o menu. “Faz tudo para não me desiludir”, emociona-se Carla, “e quer integrar-se na nossa cultura”.

Bhima e Dolly chegaram ao Alentejo sozinhas, mas a maioria das mulheres vem ao abrigo do reagrupamento familiar, e o desafio de as integrar tem sido mais complexo, porque o choque cultural ainda é maior, explica-nos Teresa Barradas, vice-presidente da Taipa, com quem nos encontramos em Odemira.

A nova paisagem humana Ao final do dia, há indianos siques com o turbante e roupa de trabalhadores nos estendais

“O projeto Mulheres Numa Só Voz, que tivemos entre 2020 e 2021, nasceu da necessidade de as empoderar e, agora, já andam na rua e muitas trabalham. Mas também foi bom para conseguirmos chegar aos homens e aos filhos, porque percebemos que a mulher era a gate keeper (a guardiã) da família.”

Nos últimos 11 anos, a Taipa tem criado projetos para dar resposta às necessidades sentidas no terreno. A lógica é sempre igual, mas a realidade mudou. “Em 2013, tínhamos aqui uma grande comunidade búlgara. Havia o choque da língua e o choque cultural, porque eram de etnia cigana. Hoje, temos imigrantes do Sudeste Asiático; já foram mais indianos, agora são mais nepaleses.”

O reagrupamento familiar, a acontecer com mais intensidade há cinco anos, é um indicador positivo de integração. “A família vai ser uma âncora para a integração”, já ouvíramos a Pedro Góis. “Enquanto houver 20 homens metidos no T2, não há integração, porque é como viver num estaleiro.”

Teresa Barradas perspetiva o mesmo: “O filho leva a língua e a cultura para casa. E não temos a ilusão de que as famílias ficam para sempre, mas a possibilidade aumenta se os filhos pedirem para ficar.”

Em São Teotónio, a freguesia onde a realidade migratória tem sido mais intensa e onde havia muitas crianças e adolescentes a chegar, a Taipa tem o projeto ST, numa relação próxima com o agrupamento de escolas, para promover o sucesso escolar, e um espaço comunitário que funciona um pouco como um ATL. 

DERRUBAR BARREIRAS

Às duas da tarde de uma segunda-feira boa para uns mergulhos refrescantes na praia, 15 miúdos imigrantes juntam-se num rés do chão, a um minuto a pé do Quintalão. Hugo Gomes, o professor de serviço, recorre ao inglês para ensinar os pronomes pessoais em português e vai pedindo ajuda a quem está mais avançado.

“How do you say ‘beautiful’ in portuguese?”, ainda não acabou de perguntar e já se ouvem vários “bonito!” pela sala, à mistura com palavras em hindi. Quem não sabe inglês precisa de tradução simultânea. “Eles são sempre muito prestáveis”, nota Hugo, mesmo que, em tempo de férias, estejam desertos por ficar na sala dos computadores.

A Taipa também gere o Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes (CLAIM) de Odemira, onde se dão os primeiros passos do processo de legalização. Além de ter um gabinete fixo, os seus técnicos trabalham em itinerância por várias freguesias, porque a mobilidade dos imigrantes é grande, e sempre com o apoio de uma equipa de mediadores que anda um pouco por todo o lado (escola, Finanças, Segurança Social), sempre que for preciso ultrapassar a barreira da língua.

Fragilidade É fácil um imigrante “desorganizar-se”, diz Filipa Duarte, coordenadora do projeto Estou Tão Perto que Não Me Vês, da Cáritas de Beja

Como todos os anos chega gente nova, a cooperativa mantém ainda ações de sensibilização nas empresas, desde a segurança rodoviária à questão do lixo, passando pelo acesso à saúde. “É importante repeti-las, porque os movimentos migratórios são voláteis”, nota Teresa Barradas. “São sobretudo compostos por homens avulso que levam essa bagagem cultural, mas ela não se transmite.”

O acesso à saúde tornou-se uma questão crucial com a chegada de mulheres e crianças. “Estamos, por isso, a capacitar os profissionais para lidarem com esta população, a fazer a ponte com a medicina do trabalho nas empresas e a promover atividades na comunidade sobre a importância da atividade física e a alimentação saudável”, desfia o enfermeiro Vítor Gomes, há 17 anos em Odemira.

Em junho, foi feito um inquérito à população imigrante no centro de saúde. Os dados ainda não estão disponíveis, mas já se sabe que a grande maioria é por norma jovem, em idade ativa e está a ter muitos filhos. “Em 2022, dois terços das crianças que nasciam no concelho eram de mãe estrangeira”, sabe de cor o enfermeiro.

Vítor Gomes também sabe que a maioria trabalha na agricultura, mas já começa a ter outros empregos, seja em hipermercados (na reposição e no talho) seja em empresas de mármores, construção civil e gestão florestal (no corte de árvores).

“Grosso modo, já temos imigrantes em todos os setores”, há de corroborar o presidente da Câmara Municipal de Odemira, Hélder Guerreiro, eleito em setembro de 2021, pelo PS. “Precisamos da mão de obra, mas a pressão sobre os serviços públicos é enorme”, queixa-se.

Zakaria Cahkay
31 anos

Trabalhador agrícola

Em Melilla, “Ziko” tanto era mecânico de automóveis como estucador. Em Beja, onde chegou há três anos, tem trabalhado sempre no campo. “Saí de Marrocos há sete anos. Era um miúdo, queria conhecer o mundo.” Fala quatro línguas.

Os fluxos migratórios não são uma novidade em Odemira, onde coabitam mais de 80 nacionalidades. De início, o concelho foi procurado por russos, ucranianos, polacos, búlgaros e romenos. Também houve – e há – tailandeses, hoje uns 600, instalados nas quintas onde trabalham.

Atualmente, mais de um terço da população do concelho é imigrante, sobretudo do Sudeste Asiático, já se escreveu, e a maioria a trabalhar na agricultura. Só a produção de frutos vermelhos no concelho gera €300 milhões ao ano, mas as empresas acabam por pagar apenas €70 mil em derrama municipal, porque têm as sedes no estrangeiro.Quando os imigrantes eram quase só homens, a pressão sobre a saúde era pouca. Agora que há muitas crianças e já houve mais nascimentos de mulheres de nacionalidade estrangeira do que portuguesas, a câmara investiu numa construção modular temporária e vai em breve duplicar o serviço básico urgente. “Mas não chega fazer as infraestruturas, precisamos de mais médicos”, alerta o autarca.

“O número crescente de casos de reagrupamento familiar também tem um forte impacto sobre a oferta da educação. No ano letivo passado, foram abertas mais nove turmas e, no próximo, deverão abrir mais umas seis”, contabiliza Hélder Guerreiro. “É uma situação insustentável, porque implica reabilitar escolas que estavam fechadas, além de ser necessário recrutar mais professores.”

“O GOVERNO DEVIA INVESTIR”

O desafio passa, agora, por conseguir vincular as famílias ao território, “o que é mais fácil do que um homem sozinho”, nota. “E queremos criar o sentimento de que toda esta comunidade é bem-vinda, porque há qualidade de vida para todos. Os serviços públicos de interesse geral, que foram diminuindo ou mesmo saindo do concelho, têm de regressar em força, para acompanhar o aumento da população em quantidade e em complexidade. Se Odemira representa €300 milhões em exportações, o Governo devia investir, como contrapartida, neste território.”

A necessidade não é exatamente de hoje. “Comecei a alertar para isto há seis anos, em Odemira, porque já era coordenador da ANAFRE [Associação Nacional de Freguesias] no distrito de Beja”, lembra Vítor Besugo, presidente da Junta de Freguesia de Beringel. “Na altura, o colega de São Teotónio dizia que não havia disponibilidade para toda a gente no serviço de Finanças, na Segurança Social ou no médico de família.”

Nessa altura, o problema era “lá longe”, em Odemira, no Litoral. “Agora, eles estão por todo o lado”, sublinha o mesmo autarca. Em Beringel, vila a uns 15 minutos de carro de Beja, o Censos de 2021 contabilizou 1 188 habitantes. Chegados a agosto de 2024, a junta estima haver cerca de 1 500 fregueses, sendo perto de um quinto deles imigrantes.

Ataques racistas

Os imigrantes têm sido vítimas de crimes por xenofobia

Na noite de 5 de novembro do ano passado, Shahil Gurpreet Singh estava na casa que partilhava com outros cinco indianos, em Praias do Sado, uma localidade a sete quilómetros de Setúbal, quando foi morto com um tiro de caçadeira no peito. Tinha 25 anos, trabalhava na agricultura e teve o azar de ficar na mira de dois jovens irmãos portugueses, com antecedentes criminais, que confessaram a intenção de matar os seis imigrantes por ódio racial.

No início de maio deste ano, no Porto, Lakehal Zakaria e vários outros imigrantes magrebinos foram agredidos por homens encapuçados que, na mesma madrugada, protagonizaram três ataques violentos. No primeiro, usaram tacos de basebol para bater em dois argelinos, na zona do Campo 24 de Agosto; no segundo, munidos também de facas e de uma arma de fogo, invadiram uma casa na Rua do Bonfim, onde morava uma dezena de imigrantes e espancaram-nos, enquanto proferiram insultos; no terceiro, lincharam um marroquino, nas imediações de um kebab, na zona da Batalha. Um português, com pena suspensa por crimes violentos, foi detido logo após as agressões, tendo confessado as motivações racistas dos ataques.

Longe vão os tempos em que o “Rossio”, como é ali conhecida a Praça Dr. Carlos Moreira, se enchia apenas ao fim de semana ou ao final da tarde, por famílias à coca de ar fresco ou de brincadeiras no parque infantil. Agora, há permanentemente homens jovens, oriundos do Sudeste Asiático, sentados na relva e nos bancos de jardim de cimento, à conversa uns com os outros, de cerveja ou telemóvel na mão.

E o mesmo acontece por todo o lado, repete Vítor Besugo. “Numa destas tardes, em Beja, passei por 22 bancos, contei eu, da Praça da República até ao tribunal [são 500 metros, seis minutos a pé], e não havia um livre. Estavam todos ocupados por homens imigrantes.”

Na noite em que chegámos a Beja, lembramo-nos daquilo que o presidente da câmara de Odemira disse ao fechar a entrevista: “A criminalidade não aumentou, mas os habitantes sentem-se inseguros. O Governo tem de investir na segurança.” Será um paradoxo?

A paisagem humana também mudou radicalmente nesta cidade. São dez horas de uma noite quente da semana e o centro histórico está quase deserto, à exceção de alguns homens de origem asiática ou africana, isolados ou em pares, a percorrer as ruas. Na Praça da República, meia dúzia de adolescentes portugueses conversa animadamente, aparentemente indiferente aos vários imigrantes sentados nos bancos.

Uma imensa maioria Os imigrantes são sobretudo homens jovens do Sudeste Asiático. Na cidade de Beja, também já se veem africanos

Destes últimos, nem todos terão casas em condições ou sequer um quarto onde dormir; há um número crescente de estrangeiros em situação de sem-abrigo em Beja. Na manhã seguinte, imaginamos que lhes saberá bem entrar na sede da associação Estar, onde Madalena Palma, de 48 anos, e Inês Féria, de 41, recebem como se estivessem em suas casas.

Num espaço aberto, dividido por estantes com livros, há duas zonas com grandes sofás, um mapa de Portugal e outro do mundo. Para lá de uma porta, outro espaço faz as vezes de armazém, cheio de comida e de bens essenciais. Quem entra é cumprimentado, muitas vezes, pelo nome próprio.

Fez em julho cinco anos que as duas assistentes sociais decidiram tentar fazer a diferença. “Pensámos ‘O que faz falta? Estará tudo inventado?’ e começámos a encontrar buracos na rede – a verdade é que não havia uma resposta de emergência”, conta Madalena. “Aqui, a pessoa chega com fome, e colmatamos logo essa necessidade básica. Depois, vamos perceber o que a levou àquela situação, e não estamos cá a fazer agendamentos, a abrir processos no sistema.”

“RECEBEMOS O REFUGO”

Hoje, esta associação sem fins lucrativos apoia pessoas em situação de sem-abrigo, não só imigrantes mas sobretudo imigrantes. “Recebemos o refugo do refugo”, diz Madalena. “Pessoas que não reúnem condições para serem ajudadas por outras instituições, porque já se portaram muito mal ou estão completamente indocumentadas.”

Como são uma entidade privada, ajudam quem querem – e trabalham 24 horas por dia, não dá para ser das 9h às 5h. Ainda na véspera, quase de noite, Madalena tinha ido com a polícia até um dos grandes cubos de contraplacado de uma exposição junto à Casa da Cultura. Passara por lá a pé e dera com umas mantas e um saco com produtos de supermercado no seu interior. “É de alguém novo em Beja, porque não identifiquei material nosso. Vamos ficar atentas.”

Como tem dois filhos de 24 e 25 anos, custa-lhe particularmente receber jovens. “É desolador. Vieram de barco ou a pé, de muito longe. E, quando cá estão, são miúdos tão subservientes que dá pena. Tivemos dois rapazes argelinos que foram chicoteados nas costas por um encarregado português”, conta.

Números

Sempre a aumentar

Os imigrantes continuam a rumar ao Alentejo, sobretudo ao distrito de Beja

28,6%
Percentagem de estrangeiros a residir em Odemira, segundo o Censos 2021 (mais 13,5% do que em 2011)

76,1%
Peso dos estrangeiros no total de trabalhadores por conta de outrem, no concelho de Odemira em 2023

2/3
Proporção de filhos de mãe estrangeira entre as crianças nascidas no concelho de Odemira, em 2022

17 813
Número de imigrantes no distrito de Beja, em 2022 (mais 11% do que no ano anterior)

450
Atestados de residências passados até ao final de julho deste ano pela junta de freguesia de Beringel, Beja

“Mudem-se as leis ou os governos, Portugal continua a ser o sítio mais fácil para se obter documentos falsos. Há um ano, sei que havia imigrantes a pagar €800 por um atestado de residência. Nós já deixámos de comprovar as moradas deles, estávamos a alimentar o problema. Por exemplo: agora em agosto, sabemos que quem não está já a trabalhar é porque está cá a mais.”

No entanto, continuam a chegar imigrantes ao Alentejo. “E, nem que se levantasse um muro, continuariam a entrar pessoas, todos os dias”, acredita Madalena Palma. “É o negócio do século, dá dinheiro a ganhar que é uma coisa louca. As empresas de trabalho temporário arranjam 200 pessoas, que são dispensadas quando acaba essa campanha. Passado um mês e meio, chamam outras 200, porque o que dá dinheiro é mandar vir esta malta para Portugal – cada pessoa vale 14 ou 15 mil euros.”

FAMÍLIAS ENDIVIDADAS

Sem trabalho nem sítio onde morar, os imigrantes batem-lhes à porta sem nada, só com uma pequena mochila. “Conhecem-nos do passa-palavra e eles sabem que nunca os trairíamos”, diz Madalena. Ela e Inês ouvem-nos, então, contar como endividaram a família para conseguirem viajar e como o número de telemóvel de alguém, que iria arranjar-lhes trabalho, nem sequer funciona.

“Nós dizemos-lhe ‘Vocês estão cá, estão em casa’ e damos-lhes cabazes de comida, roupa, produtos de higiene pessoal, mobília, eletrodomésticos… Temos apoios da câmara e da Caixa de Crédito Agrícola, a Sonae dá-nos €12 mil por mês de alimentos, o grupo Pestana dá-nos 150 litros de leite por semana e mobiliário. Daqui a dois dias, vamos ao Alvor buscar 30 sommiers e colchões. A Força Aérea cedeu-nos três armazéns, e o Politécnico um. Temos ainda 35 voluntários, sem eles nada disto seria possível.”

Até ao final de agosto, a Estar irá submeter um projeto de balneário social, cacifos e oito camas de emergência, ao abrigo do programa Portugal Inovação. O CAES (Centro de Alojamento de Emergência Social), criado pela Cáritas Diocesana de Beja, em parceria com a Segurança Social, na antiga Casa do Estudante, no centro da cidade, só tem 35 camas.

Rachid Boukarch
44 anos


Trabalhador agrícola
Saiu de Marrocos em 2008 e andou pela Europa até chegar a Portugal, no final de 2023. Em Beja, encontrámo-lo a dormir numa mata, mas nunca deixou de se exercitar. “Fui boxeur, sei como treinar é muito importante para a cabeça.”

Acrescente-se que o município anunciou recentemente a criação de um centro de acolhimento temporário, com mais umas três dezenas de camas, num antigo lar, em Santa Clara do Louredo, a cerca de cinco quilómetros de Beja, mas ainda não há data de abertura. “Temos procurado evitar a solução dos contentores”, sublinhou entretanto o presidente da Câmara Municipal de Beja à VISÃO. “Ocupar pavilhões municipais ou despejar na rua as pessoas, porque estão em casas sem condições, também não seria uma solução.”

Tudo isto já Madalena nos conta dentro do seu carro, numa volta pela cidade que tem como pontos-chave locais onde os imigrantes foram ou são notícia, começando pelo antigo edifício da Refer, propriedade da Cruz Vermelha Portuguesa, um gigante, agora entaipado, que chegou a albergar 40 pessoas, todas realojadas em março, nuns contentores instalados no Estádio Flávio Santos e geridos pela Estar.

Passamos por uma vivenda, com oito quartos, arrendada a imigrantes pelo tutor legal de um rapaz que vive na Cerci Beja, pelo chamado Jardim do Bacalhau, onde param as carrinhas que transportam os trabalhadores entre a cidade e as explorações agrícolas, e ainda pelo hostel, cuja filha da dona se apaixonou por um homem de origem africana que ali esteve realojado (estão de casamento marcado, também há histórias que acabam bem).

Só depois rumamos ao centro histórico, cujas ruas estreitas estão cheias de quartos usados em “sistema de cama quente” (porque por vezes o emprego inclui alojamento no local), e há um majestoso solar que todas as noites “esconde” 40 imigrantes.

Nem um minuto de carro e estamos na Praça da República, onde vamos almoçar de frente para a antiga Residencial Coelho, devoluta já há dois anos. Segundo Madalena, alguém tem a chave e cobra €150 por mês a cada um dos mais de 30 imigrantes que ali partilham quartos em muito mau estado. “Já denunciámos, mas ainda não aconteceu nada.”

Na belíssima praça, reedificada a mando do rei D. Manuel I, no local onde antes se ergueu o fórum romano, cruzamo-nos com o jovem marroquino Zakaria Cahkay, com quem tínhamos passado umas horas, nas instalações da Cáritas de Beja, e que Madalena trata por “Ziko”.

UM MÚSICO EM ODEMIRA

Em Odemira, bastam-lhe as tablas e o harmónio para ensinar a tocar e a cantar música clássica indiana

“Portugal é a minha segunda casa. Ao início, sentia que não gostavam de mim aqui, por ser asiático, mas, agora que já me conhecem, sei que gostam.” Inderjeet Singh diz isto tudo de seguida, em inglês, e pede desculpa. Um ano depois de chegar a Odemira, entende português, mas ainda não o suficiente para conseguir conversar.

Antes de aqui rumar, passou pela Bélgica, Nova Iorque, Japão, Coreia do Sul e China, sempre a tocar e a ensinar, muitas vezes do atelier da holandesa Helena Loermans, onde pousou para a fotografia. Tem a própria escola na Índia e continua a dar aulas online. Gosta muito dos doces portugueses, mas faz por ter uma alimentação equilibrada. “O meu avô dizia: ‘Se tiveres boa saúde, tocas melhor’, e eu acredito nisso.”

“Já o conheço há muito tempo… A situação aqui agudizou-se há dois anos, em termos de quantidade e de más condições de vida dos imigrantes. A dignidade desapareceu”, lamenta, “e nós contribuímos para este estado de coisas. Somos todos responsáveis. Claro que eles vêm porque não estão bem nos seus países, mas, se precisamos da mão de obra, devemos acolhê-los condignamente. Nós, portugueses, quando emigrávamos para França, sabíamos que íamos para os bidonvilles [bairros de lata]. Eles não sabem ao que vêm.”

É essa também a perceção de quem recebe imigrantes em situação de sem-abrigo no espaço Estórias, da Cáritas. Naquele rés do chão, em pleno centro histórico, onde é possível tomar o pequeno-almoço, tomar duche e trocar de roupa, os relatos não diferem muito uns dos outros. Todos vinham à procura de uma vida melhor, e todos acabaram a dormir na rua.

UM NÃO E UMA PROMESSA VAGA

“Estou aqui porque preciso de ajuda: de trabalho, casa, comida, documentos, tudo”, diz o senegalês Samba Mbaye, num português hesitante, e logo conta como saiu em novembro de 2021 de Dakar, onde era motorista de táxi, para arranjar um trabalho melhor e ajudar a família.

Com 27 anos, passou dez meses em Espanha, antes de rumar a Beja, porque lhe disseram que “havia muito patrão” no Alentejo. Já trabalhou na apanha da azeitona e da amêndoa, na vinha, no que calhou. É o mais novo de nove irmãos. Sempre que conseguiu um emprego, guardou €150 e enviou aos pais o resto do salário.

Apoio “Nem que se levantasse um muro, continuavam a entrar pessoas, todos os dias”, diz Madalena Palma, da Estar, associação sem fins lucrativos

Na véspera, ao final da tarde, ouviu mais um não, com uma promessa vaga: “Volta daqui a uma semana.” Não valia a pena aparecer na manhã seguinte, à procura de lugar numa das muitas carrinhas que transportam os imigrantes até às explorações agrícolas, nos arredores de Beja. Tinha, por isso, pela frente mais umas noites ao relento.

“Estamos a ajudá-lo, porque deixou passar os prazos do processo de legalização”, explica Filipa Duarte, coordenadora do projeto Estou Tão Perto que Não Me Vês, da Cáritas. “Ele quer vingar na vida, é um bom trabalhador.”

Além do Estórias, que funciona como um centro drop-in, o projeto inclui uma equipa de rua, laboratórios de expressão artística e cultural, e sensibilização da comunidade e empoderamento dos sem-abrigo. A Cáritas tem ainda um refeitório social e gere o CLAIM de Beja, com financiamento comunitário.

A técnica de reabilitação e inserção social também sabe ser fácil um imigrante “desorganizar-se”. A expressão é sua e faz todo o sentido quando Zakaria Cahkay conta como bastou ter ficado sem telemóvel para perder o trabalho. Já só era chamado ao dia, e nunca em dias seguidos, mas o patrão deixou de poder contactá-lo e ele caiu na rua.

“VENHAM CÁ FISCALIZAR”

Este ano, a junta de Beringel já passou 450 atestados de residência

Manda a lei que, perante a declaração de honra de duas testemunhas, recenseadas na freguesia, os presidentes das juntas têm de assinar os atestados de residência. Na ausência de documentos que comprovem a morada, são as testemunhas que se responsabilizam pela veracidade da informação.

“Este ano, já passei 450”, sabe de cor Vítor Besugo, presidente de Junta de Freguesia de Beringel, a dez quilómetros de Beja.

Só na última semana de julho, o autarca assinou duas dezenas. “Aqui em Beringel, vemos no sistema que a mesma pessoa já se responsabilizou 180 vezes e outra pessoa, outras 180. E não é só aqui”, nota. “Sou coordenador da Associação Nacional de Freguesias (ANAFRE) no distrito de Beja, represento 75 freguesias, e ainda há pouco tempo levantámos esta questão. Venham cá fiscalizar, saiam dos gabinetes e venham ver a realidade.”

Em Melilla, onde nasceu há 31 anos, Zakaria tanto era mecânico de automóveis como estucador. No Alentejo, onde chegou há três anos, trabalhou sempre no campo. Fala árabe, espanhol, francês e português, e já esteve imigrado na Bélgica, Holanda, Alemanha, Luxemburgo e França. “Saí de Marrocos há sete anos. Era um miúdo, queria conhecer o mundo”, diz, com um sorriso.

Nessa noite, havemos de voltar a encontrá-lo, talvez já a caminho de “casa”. Ultimamente, não tem poiso certo. Dorme ora na rua ora numa casa qualquer que encontre desabitada. “Podia usar a cama de um dos meus amigos que está numa herdade, mas não gosto de dividir quarto com cinco ou seis pessoas, é sempre uma grande confusão”, já havia justificado.

Mas no Estórias é “Ziko”, sempre prestável, quem ajuda a traduzir a nossa conversa com Rachid Boukarch. O marroquino, de 44 anos, conta que saiu de Errachidia em 2008 e andou um pouco por toda a Europa, a comercializar cristais e outras pedras de coleção, até entrar em Portugal no final do ano passado.

Pelas ruas de Beja Os bancos da cidade são ocupados por imigrantes, à espera do providencial telefonema de trabalho para mais uma jorna

Há oito meses em Beja, Rachid chegou sem nada à Cáritas, ficando logo a aguardar processo de alojamento e refeição. “É muito organizado, mas teve azar”, conta Margarida Canudo, assistente social. “Tem um processo na ACT, porque não lhe pagaram no último local onde trabalhou.”

Quando o conhecemos, estava ainda a dormir na rua, imaginámos que abrigado num qualquer vão da cidade, mas bastou mostrar-nos um vídeo a fazer elevações na mata de frente para o parque de merendas da cidade para percebermos que pernoitava ali mesmo.

Vamos, então, até um pequeno bosque de casuarinas frondosas q.b., a uns passos do ginásio ao ar livre, onde vemos o saco-cama e o lençol para proteger dos mosquitos, mais o meio garrafão de água para usar após o treino. “Fui boxeur, sei como treinar é muito importante para a cabeça”, diz, com um ar triste.

Como não nos impressionarmos com as vidas difíceis destes imigrantes que vêm à boleia da agricultura e estão a mudar para sempre o Alentejo?

Pedro Góis

— Professor de Sociologia das Migrações, na Universidade de Coimbra

“Se eles se forem embora, ficaremos pior”

No Litoral Alentejano, encontramos sobretudo imigrantes do chamado subcontinente indiano.

Como se explica?
É sobretudo uma migração laboral e tem que ver com a forma como se obtém trabalho: através do passa-palavra. Mas sabemos que são os grandes supermercados, nomeadamente britânicos, a induzir a imigração, porque a produção depende de quem a compra. São eles que provocam a necessidade de uma migração. E as empresas de trabalho temporário fornecem-lhes a mão de obra.

Nada disto é exatamente novo, pois não?
Estudo migrações há mais de 20 anos, não apenas em Portugal, e sei que é um padrão. O fenómeno no Alentejo não é muito diferente do que aconteceu na Andaluzia, por exemplo; a fonte é que deixou de ser a África subsariana e passou a ser muito o subcontinente indiano. Também já estamos com quilómetros de estufas, vê-se bem no Google Maps.

Tem sido muito rápido.
Os terrenos estavam disponíveis e eram suficientemente baratos. Há mão de obra também disponível e constante, ou até crescente, o que mantém o preço baixo. O que eu temo que tenhamos? Algum subpagamento – o pagamento feito às empresas não chega aos trabalhadores, retiram-lhes uma parte do salário para alojamento, despesas inventadas… Estes povos não projetam a sua voz no espaço mediático, por isso são invisíveis, o que pode estar a jogar contra eles. Há uma ausência dos nossos sindicatos nestas relações laborais. Deviam estar mais presentes nestes territórios, porque estes jovens trabalhadores precisam de ser protegidos.

O que mudou quando olhamos para o território?
Mudou a paisagem humana. Quem parar ao final do dia naquelas povoações vai ver indianos siques com o turbante, muitas pessoas com o tom de pele diferente da nossa e uma população jovem. Também vai ver muitas casas habitadas, com roupas nos estendais, mas provavelmente são roupas de trabalhadores, não são de família, porque são dormitórios destes imigrantes. Além disso, espaços que estavam quase ao abandono são hoje oportunidades de exploração agrícola. Este processo está a fazer voltar o Alentejo ao que ele não tinha sido nas últimas décadas.

Porque era uma região em envelhecimento, desde o 25 de Abril.
Sim, nessa altura as pessoas foram para a Margem Sul de Lisboa, e a região nunca mais se recompôs. Esta gente que está a chegar traz esta nova paisagem humana diferente e que nunca mais vai ser outra. E se eles se forem embora, por causa de uma crise económica, ficaremos pior.