Há pouco mais de meio ano, escrevi uma carta aberta ao então Ministro da Saúde, Dr. Manuel Pizarro, sobre os graves problemas que afectavam o sistema de saúde em Portugal, com destaque para a crise nas urgências e a falta de recursos nos hospitais. Infelizmente, apesar das promessas eleitorais e da recente mudança no governo, a situação continua alarmante e com pouco ou nenhum progresso visível. A chegada de Ana Paula Martins ao Ministério da Saúde trouxe a esperança de uma nova abordagem, mas a realidade parece resistir a qualquer tentativa de mudança.

Quando o governo atual assumiu funções, a promessa de uma reforma significativa no Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi central na campanha. Ana Paula Martins, conhecida pela sua competência técnica, foi vista como a pessoa certa para implementar essas reformas. No entanto, os primeiros meses do seu mandato mostram que, apesar das boas intenções, o sistema permanece inflexível. As dificuldades em fazer diferente, mesmo com uma liderança experiente, revelam que o problema não está apenas nas pessoas, mas num sistema que parece não permitir mudanças eficazes.

O cenário nas urgências hospitalares, um dos principais focos da carta aberta enviada, permanece crítico. O setor da saúde continua a receber um número crescente de reclamações dos utentes, com mais de 2.500 queixas registadas, só este ano. Entre as especialidades mais afetadas, a obstetrícia é líder, o que sublinha a gravidade da situação nos cuidados às grávidas e recém-nascidos. Relatos como o de Sara Martins, no Portal da Queixa, que foi recusada numa urgência em Leiria, são exemplos concretos de como a crise se perpetua.

As razões para as queixas mantêm-se inalteradas: demoras inaceitáveis no atendimento, que frequentemente ultrapassam as 12 horas; mau atendimento por parte dos profissionais de saúde; e uma falta crónica de informação clara e precisa para os utentes. Esses problemas, já destacados anteriormente, continuam a gerar frustração e sofrimento, sem que as soluções prometidas pareçam estar a caminho.

Por sua vez,Ana Paula Martins, que apesar de toda a sua experiência e conhecimento, enfrenta a dura realidade de um sistema de saúde onde as mudanças prometidas esbarram numa estrutura inflexível e num SNS que resiste à modernização. As expectativas eram elevadas, mas a incapacidade de implementar reformas rápidas e eficazes coloca em risco a confiança que a nova ministra poderia ter conquistado.

Conclui-se, portanto que Portugal continua a gritar por socorro na área da saúde. A promessa de mudança que acompanhou a chegada da nova liderança parece estar a dissipar-se, confrontada com a realidade de um sistema que não se permite mudar. Enquanto o governo não consegue encontrar uma forma de superar estas barreiras, o futuro da saúde em Portugal permanece sombrio, com os cidadãos a pagar o preço pela sua inércia.

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Palavras-chave:

O PM teve um discurso conseguido na tradicional festa de Verão do Pontal. Deu novidades, assumiu as dificuldades, em particular no SNS, que levarão tempo a resolver, e mostrou-se empenhado num ritmo de governação acelerado e eficaz. Luís Montenegro tem uma característica política importante: não gosta de perder tempo.

Quer governar, deseja dialogar, mas está indisponível para vergar, e esse teste de resistência chegará muito brevemente com o Orçamento de Estado para 2025. Sabe como vai ser o seu, mas não antecipa crises cenarizadas. O que vier vem.

No Pontal, a única nota fora da pauta foi o sucessivo desconforto verbalizado contra os comentadores, quase comentadores, e futuros comentadores. Isso não deveria ser assunto para um PM. Ou para este PM. Genericamente são os mesmos que sempre disseram que não iria ganhar, formar Governo, e governar. Cada um no seu papel, e todos fazem falta. Aqui e em todas as democracias.

Finalmente, a nota alta do discurso: o Governo vai abrir mais vagas em Medicina. Até que enfim que alguém percebeu! Levará mais de uma década a produzir efeito, mas para se terem mais graduados que formem os futuros especialistas é necessário começar pela base da pirâmide. E autorizar rapidamente mais Faculdades de Medicina privadas, mas não ridiculamente inacessíveis, como o caso de uma que está a formar médicos em inglês, certamente para preencherem as vagas na Europa ou Estados Unidos. Que ideia mais do que generosa: nós formamos aqui, e os outros contratam lá para fora.

No início dos anos 80, quando os corredores portugueses davam cartas nas competições de meio-fundo e fundo, existia apenas, e há pouco tempo, uma pista de tartan em Portugal. Nessa época, todos os que quisessem seguir os passos de Carlos Lopes, Fernando Mamede e outras estrelas do atletismo não tinham instalações convenientes para o fazer fora de Lisboa. Indignada, Rosa Mota chegou a liderar uma forte campanha para obrigar o governo a construir uma pista de tartan no Porto, única forma de satisfazer a procura de todos os que sonhavam vir a ser atletas. Algumas décadas depois, em 2008, a motivação dos dirigentes do ciclismo e da Câmara Municipal de Anadia foi de sentido inverso, mas com os resultados que se conhecem: apesar de não terem ciclistas de pista, decidiram elevar a aposta e construir um velódromo, em Sangalhos. E em grande: um edifício em forma de elipse, quase todo de madeira, com uma pista inspirada no de Bordéus, França, considerado, então, o mais emblemático do mundo velocipédico.

Quando, a 11 de setembro de 2009, o edifício cuja construção teve um custo superior a 12 milhões de euros, desenhado pelo arquiteto Rui Rosmaninho, foi inaugurado com uma volta simbólica à pista pelo histórico Alves Barbosa, o primeiro português a participar no Tour de France, também ainda não existiam ciclistas em Portugal especializados em provas de velocidade em circuitos fechados. Sobrava, no entanto, por parte dos responsáveis pelo projeto, a vontade de desenvolver uma das modalidades mais populares, em todas as suas vertentes.

Histórico Iúri Leitão e Rui Oliveira conquistaram o ouro, logo na estreia do ciclismo de pista masculino português em Jogos Olímpicos Foto: COP/ Francisco Paraíso

“Ainda bem que houve um maluco que aqui há uns anos pensou em arranjar uma pista, custasse o que custasse”, exultou, por isso, Artur Lopes, pouco depois de Iúri Leitão ter ganhado a medalha olímpica de prata em omnium, na quinta-feira, 8, no Velódromo de Saint-Quentin-en-Yvelines. Para o vice-presidente do Comité Olímpico de Portugal, esse foi o primeiro grande momento de concretização do sonho que ele teve e pelo qual lutou, há década e meia, quando era presidente da Federação Portuguesa de Ciclismo.

O Velódromo de Sangalhos, que alguns temeram poder ser um “elefante branco” semelhante a outras infraestruturas desportivas construídas nesses anos, por causa do Euro 2004, acabou por se tornar, afinal, uma espécie de ponto de inflexão para o desenvolvimento do ciclismo. A pista coberta de 250 metros, que continua a ser a única em Portugal e que permite que os ciclistas treinem e compitam nas mesmas condições que encontraram agora nos Jogos Olímpicos, é um dos pilares do Centro de Alto Rendimento do Ciclismo que, entretanto, ganhou também a companhia da pista olímpica de BMX e, ali bem perto, da pista permanente de BTT (XCO), na Curia. Essas infraestruturas permitiram desenvolver uma equipa de ciclismo de pista, então inexistente em Portugal, e, mais importante ainda, criar na Anadia um polo dinamizador daquele desporto em todas as suas vertentes, estabilizando um trabalho com técnicos de grande qualidade, num ambiente propício à progressão dos atletas, semelhante ao que se encontra nos países em que o alto rendimento é encarado com responsabilidade e como uma prioridade.

Começar do zero

Quando no sábado, 10, a dupla Iúri Leitão e Rui Oliveira se sagrou campeã olímpica, após 100 voltas emocionantes à pista, ficou comprovado que, há década e meia, valeu a pena pensar em grande e acreditar que era possível vir a ter bons resultados numa modalidade em que foi preciso, literalmente, começar do zero. Em 2009, já havia velódromo, mas quase não existiam ciclistas. Nem sequer um treinador a quem se pudesse confiar o projeto.

Uma das formas de resolver essa lacuna foi, porventura, a menos óbvia, mas que acabou por se revelar completamente acertada: a Federação de Ciclismo abriu um concurso para o preenchimento de uma vaga de treinador, que teria como função o desenvolvimento do ciclismo de pista.

Mais do que ouro

Os campeões olímpicos portugueses que ganharam mais de uma medalha

Carlos Lopes
Medalha de prata nos 10 000 metros,em Montreal 1976, e medalha de ouro na maratona,em Los Angeles 1984

Rosa Mota
Medalha de bronze em Los Angeles 1984 e medalha de ouro em Seul 1988, ambas na maratona

Fernanda Ribeiro
Medalha de ouro em Atlanta 1996 e medalha de bronze em Sydney 2000, ambas nos 10 000 metros

Pedro Pichardo
Medalha de ouro em Tóquio 2020 e medalha de prata em Paris 2024, sempre no triplo salto, atletismo

Iúri Leitão
Medalha de ouro em madison e de prata em omnium, no ciclismo de pista, em Paris 2024

Foi dessa forma que, em 2010, o atual selecionador nacional Gabriel Mendes entrou pela primeira vez no Velódromo de Sangalhos, depois de ter sido o escolhido. Na bagagem trazia uma licenciatura em Ciências do Desporto, na Universidade da Beira Interior, um mestrado em Biomecânica e Fisiologia, na Universidade de Coimbra, e já anos de trabalho técnico-científico no estudo do ciclismo, de que chegou a ser praticante federado, embora sem resultados dignos de nota. Após mais umas especializações no estrangeiro, passou a ser o treinador da equipa que, aos poucos, se foi formando e que hoje já conta com mais de 60 medalhas em importantes provas internacionais.

Todos os especialistas concordam que a melhor maneira de desenvolver o desporto de alto rendimento é através da criação de equipas fortes, em que os melhores podem treinar uns com os outros, no dia a dia. E a existência de um velódromo, com as valências e características dos melhores, ofereceu ainda outra vantagem: permitiu que grandes nomes do ciclismo internacional por ali passem, aproveitando as instalações até para realizarem estágios antes de grandes competições. Essa partilha de experiências é fundamental para aprofundar o conhecimento, testar novos métodos e procurar corrigir pequenos erros que outros, mais experientes, já ultrapassaram.

“A existência do Velódromo Nacional foi a oportunidade de o ciclismo português assumir uma verdadeira cultura global de alto rendimento, alinhada com as melhores práticas internacionais”, gosta de afirmar, publicamente, o presidente da Federação Portuguesa de Ciclismo, Delmino Pereira. E lembra que o benefício não se restringe à pista: “Esta infraestrutura veio permitir desenvolver também o trabalho de qualidade, científico, nas restantes vertentes do ciclismo, contribuindo para mostrar novos talentos nacionais ao mundo e para a conquista de resultados de relevo.”

No desporto, cada vez menos as coisas acontecem por acaso. Para se alcançar a glória olímpica, é preciso criar estruturas sólidas, que saibam integrar e desenvolver talentos, num ambiente atento a todos os pormenores. A seguir ao 25 de Abril de 1974, o prof. Mário Moniz Pereira foi, no atletismo, o primeiro a anunciar que era esse o caminho. Foi ele quem primeiro disse que se dessem condições de treino aos portugueses, eles também poderiam ser campeões, como outros, recusando qualquer sentimento de inferioridade.

Meio século depois, essas premissas são mais verdadeiras do que nunca. E, por isso mesmo, a medalha de ouro de Iúri Leitão e Rui Oliveira não foi fruto de um golpe de sorte ou de acaso, mas antes o corolário de uma estratégia de longo prazo, que soube, sem alardes, ir caminhando, passo a passo, até à glória olímpica final. E tudo começou, não nos esqueçamos, com a insistência na construção de um velódromo para o qual, na época, não existiam atletas. Mas eles apareceram. E vão continuar a aparecer.

Foto: Francisco Paraíso/LUSA

Iúri Leitão

Campeão olímpico de madison e primeiro português a ganhar duas medalhas (ouro e prata) numa única edição dos Jogos Olímpicos

Data de nascimento
3/7/1998 (26 anos)

Local de nascimento
Viana do Castelo

Altura
1,75 m

Peso
70 kg

Treinador
Gabriel Mendes

Clube
Caja Rural – Seguros RGA

Principais resultados em pista
2024 Medalha de ouro de madison e medalha de prata de omnium, em Paris 2024; Campeão europeu de scratch

2023 Campeão do mundo de omnium

2022 Campeão europeu de scratch

2020 Campeão europeu de scratch

2016 Campeão nacional de juniores

Resultados em estrada
2024 Duas etapas na Volta à Grécia, vencedor da classificação por pontos na Volta ao Alentejo

2023 Vencedor da Volta à Grécia

2022 Vencedor de etapa na Volta ao Alentejo

2021 Vencedor de duas etapas na Volta ao Algarve

2018 Vencedor de etapa na Volta a Portugal do Futuro

Rui Oliveira

Campeão olímpico de madison, na sua estreia em Jogos Olímpicos, e fiel escudeiro do campeoníssimo Tadej Pogacar, em grandes voltas

Data de nascimento
5/9/1996 (27 anos)

Local de nascimento
Vila Nova de Gaia

Altura
1,84 m

Peso:
70 kg

Treinador
Gabriel Mendes

Clube
UAE Team Emirates

Principais resultados em pista
2024 Medalha de ouro de madison, em Paris 2024

2023 Vice-campeão europeu de eliminação

2021 Campeão europeu de scratch

2020 Vice-campeão europeu de madison

2019 Vice-campeão europeu de eliminação

Resultados em estrada
Três vezes medalha de bronze nos nacionais de fundo (2021, 2023 e 2024)

Participou em duas edições da Volta a Itália (2024 e 2022)

Participou em três edições da Volta a Espanha (2023, 2021, 2020)

Campeão nacional de fundo sub-23, em 2018

Tudo começou em 1993 com um punhado de amigos e um sonho, o de criar um festival de rock independente na ruralidade intocada da praia do Taboão. Agora, Paredes de Coura ganha um registo eterno em Paraíso de Coura, um tributo fotográfico de Alfredo Cunha, fotorrepórter do “dia inicial inteiro e limpo” do 25 de Abril de 1974. Pontuado por textos de Valter Hugo Mãe, do jornalista Mário Lopes, da investigadora Sandra Maria Teixeira e do presidente da Câmara Municipal de Paredes de Coura, Vítor Paulo Pereira, este volume é uma poderosa peregrinação visual.

Aqui, contempla-se tanto a celebração orgiástica da multidão de braços no ar como o bulício vivido nas tendas, as tribos diferentes, as performances de bandas que fizeram a educação sentimental de várias gerações – vejam-se as fotografias dos festivaleiros veteranos e de gente com filhos pela mão também a celebrar o “Couraíso”. 

Foto: Alfredo Cunha

Mas há ainda retratos fortíssimos que denunciam o olhar atento, herdeiro da tradição documental humanista, de Alfredo Cunha: o “cromo” de garrafa nos lábios, o agricultor de picareta ao ombro que passa incólume entre festivaleiros, a geometria dos corpos no esplendor na relva, as muitas raparigas captadas em júbilo igualitário, os momentos irrepetíveis – como o da gargalhada da rapariga loura, anjo ancorado numa rocha-asa à beira da água, capa de Paraíso de Coura. “Monumento fotográfico”, capaz de “transformar uma multidão numa nação”, chama-lhes Valter Hugo Mãe. O escritor que escreveu já que Coura devia ser prescrito pelos médicos e descontado no IRS “porque tudo no Festival nos cura”, declara: “O Festival de Coura é o Entroncamento das Sortes, o lugar onde dá certo qualquer estranho e o esplendor humano se nota em qualquer nico de gesto. Já fui mais feliz em Coura do que em dez Venezas ou Novas Iorques.” A felicidade festivaleira continua até 17 de agosto. 

Álbum de glórias  

Paraíso de Coura regista igualmente muitos dos momentos em palco, que construíram a história e a magia dos 31 anos de edições de Paredes de Coura, com Alfredo Cunha a captar retratos de proximidade dos grandes protagonistas. Vejam-se as imagens poderosas de Patti Smith, de braços abertos em comunhão com o público, ou dos Franz Ferdinand, de guitarra a tiracolo, a eletrizar uma multidão, vistos da primeira linha do público, ou ainda da silhueta familiar de Manuel Cruz, vocalista da banda nacional Ornatos Violeta, de microfone na mão e sob os holofotes.

O festival foi palco das primeiras atuações em Portugal de “nomes orelhudos que, com o tempo, se agigantaram”, nas palavras da investigadora Sandra Maria Teixeira. Dessa listagem extensa, constam bandas como Arcade Fire, The National, Coldplay, LCD Soundsystem, Queens of The Stone Age, Sex Pistols, Flaming Lips, Korn, Tame Impala, Yeah Yeah Yeahs, Caribou e The War on Drugs, entre outros.  

Sonho de Verão

Se a história do festival inclui interrupções e sobressaltos, por exemplo, causados por dificuldades económicas, mudanças de estrutura ou ainda os constrangimentos resultantes da pandemia Covid-19, o certo é que Paredes de Coura sobreviveu e se afirmou como um dos incontornáveis acontecimentos estivais.  

“Um sonho de uma noite de verão”, uma experiência com algo de “místico”, resultado de “um desejo inquieto” “de nos sentirmos perdidos entre dois infinitos, entre aquilo que somos e aquilo que queremos ser”, descreve Vítor Paulo Pereira, um dos fundadores do festival, hoje Presidente da Câmara Municipal de Paredes de Coura.

Outra descrição cabe assim no texto de Valter Hugo Mãe, em Paraíso de Coura: “Ano após ano, na religião livre e sã do rock, rumamos à santa terra de Coura para o templo natural do Taboão, e somos abençoados pela falta de peneiras e pela disponibilidade para sermos iguais. É o que mais se aprende em Coura, que isto não é para cagões a mostrar vaidades. Isto é para o amor.” 

Paraíso de Coura (Tinta-da-China, 216 págs., €27,90) estará disponível nas livrarias a partir de 22 de agosto. O livro tem um formato intimista e um design sóbrio, o que deixa brilhar as cerca de 180 fotografias captadas num preto-e-branco irrepreensível por Alfredo Cunha 

Alejandro Cencerrado, físico, especialista em Big Data e analista do Instituto da Felicidade de Copenhaga, tomou, em janeiro de 2005, uma decisão que mudou a sua vida: “medir” a felicidade através de um diário.

A ideia era simples: todos os dias pontuava, no seu diário da felicidade, numa escala de 0 a 10, como esteve nas 24 horas que antecederam a monitorização. Se colocasse menos de 5 pontos significaria que o dia não tinha sido bom, se colocasse mais de 5 teria sido um bom dia.

Os resultados inspiraram-no a escrever o livro “Em defesa da infelicidade”, que apresenta como “o maior estudo científico jamais levado a cabo sobre a felicidade do dia a dia”.

Num artigo que intitulou “Ando há 20 anos a medir a minha felicidade num diário e isto é o que aprendi”, publicado no El País, Cencerrado explica que além de classificar os dias, apontava o que se tinha passado e com quem tinha estado. Assim sabe, por exemplo, como se sentiu quando usou um smartphone pela primeira vez ou quando foi declarado o estado de emergência aquando da pandemia de Covid-19.

Todo esse processo deu-lhe uma visão geral de como tinha sido, até então, a sua vida, permitindo-lhe retirar seis grandes ensinamentos, que transformou em lemas e que partilha no livro e no artigo publicado esta quarta-feira no diário espanhol.

Os que amamos também nos fazem chorar

Alejandro percebeu, por exemplo, que os dias maus não eram necessariamente passados com pessoas de quem não gostava. Pelo contrário. As pessoas que ama também estavam presentes e eram, muitas das vezes, a razão pela qual se sentia mal.

“Eu revi o meu diário de todas as maneiras possíveis tentando descobrir o que me faz feliz ou infeliz, e uma e outra vez eu encontrei a mesma coisa: nos dias mais felizes havia as pessoas que eu mais amo, e nos infelizes, também”, analisa.

“O meus amigos e companheiros fizeram-me sentir muito especial, mas ninguém me fez sentir tão sozinho quanto eles. Os anos em que a palavra “amor” aparece mais no meu diário são os mesmos anos em que a raiva aparece mais. Parece que quanto maior intensidade de um relacionamento, mais fortes são os contrastes, algo que me levou a concluir que na vida é preciso escolher entre dois tipos de amor: o amor turbulento da adolescência, cheio de paixão e medo, ou o amor maduro e chato da vida adulta. Hoje eu escolho o segundo”, escreve no El País.

Provavelmente, aquela relação não foi assim tão má…

O lado bom de ter todas os dias da vida analisados é que, mais tarde, se pode ter uma ampla perspetiva sobre os sentimentos. “Ter um diário por tantos anos permitiu-me jogar um jogo estranho”, recorda o autor. O exercício passa por questionar as emoções: Esta viagem com amigos foi tão emocionante quanto eu me lembro? Eu tive relacionamento assim tão mau?

“Quando eu releio o meu diário naqueles dias, a resposta a essas perguntas é quase sempre negativa, nada é tão mau ou bom quanto eu me lembro. Do passado, só temos recordações dos momentos mais intensos e os últimos dias, e é por isso que, em geral, tendemos a pensar erroneamente que nossos antigos relacionamentos foram um desastre, quando a realidade é que só nos lembramos do fim, que é sempre a pior parte”, explica, deixando um conselho. “Se quiser deixar uma boa recordação nas pessoas, esforce-se, especialmente quando a despedida chegar.”

O diário como um filtro de amizades tóxicas

Ao analisar o seu diário da felicidade, Alejandro descobriu que sempre que estava com um certo casal de amigos, o seu diário enchia-se de inseguranças. “A razão, da qual eu não estava ciente na época, é que esse casal ia frequentemente ao ginásio e criticava o físico dos outros à minha frente, algo que, por um lado, me fez sentir digno da sua confiança, mas, por outro, tornava-me muito auto-consciente do meu próprio corpo”, nota.

Agora, o autor consegue perceber que foi algo recorrente. “Não há problema em as pessoas dizerem as coisas que fazemos mal e que podemos melhorar, mas quando o amor próprio se ressente ano após ano frente a certas pessoas, elas realmente querem o melhor para nós? Não me parece”, diz.

O diário não age por si mesmo

Entre 2018 e 2019, ao escrever no seu diário, Alejandro conseguiu analisar como a sua felicidade se foi dissipando no trabalho, por se sentir desvalorizado e sem apoio, mas, ainda assim, não conseguiu deixá-lo. “Todos os dias eu achava mais confortável ir ao escritório e tomar o café habitual, do que tomar decisões difíceis que eu não sabia se iriam ser boas”, relembra. “Até ao dia em que me despediram, eu não era feliz”.

O analista percebeu assim que este tipo de casos não só acontece com o trabalho, mas também com os nossos hábitos alimentares, rotinas e casais. Assim, chegou a uma grande conclusão: “Se quiser melhorar a sua vida, concentre-se em ter hábitos benéficos desde o início, porque uma vez que eles assentem, será muito difícil mudá-los”.

Paternidade não é 100% sinónimo de felicidade

Para quem já foi pai ou mãe sabe a felicidade que um pequeno ser pode trazer. Mas também sabe como o início da parentalidade é um período muito difícil. Alejandro relembra essa época. “Nos primeiros quatro anos em que fui pai, o meu diário foi preenchido com dias abaixo de 5. Antes de ter filhos, tinha 100 dias bons por ano e 80 dias maus. Desde que sou pai, é o contrário, 100 dias maus e 80 dias bons”, analisa.

“Parece que ser menos feliz implica que não se ama os filhos, mas isso não é verdade. Eu daria a minha vida pelos meus filhos, mas isso não invalida que minha vida quotidiana agora consista em poucas horas de sono, fazer coisas que eu não quero e ver minha esposa lentamente tornar-se apenas a minha colega de quarto”, explica.

Todas as emoções são importantes

Como nota final, Alejandro deixa a ideia de que não existe uma chave secreta para a felicidade. “Depois de duas décadas a medir a minha felicidade, não consegui eliminar o tédio, a tristeza nem a solidão da minha vida. O que quer que faça, os dias maus voltam”, conta, dando exemplos. “Terminei uma corrida a penar que finalmente ficaria feliz, mas a felicidade não veio. Casei-me, tive filhos, comprei uma casa e um carro… mas a paz completa e duradoura também não veio”.

“Depois de 20 anos de análise, o único conselho que posso dar é que, se algum guru da felicidade lhe diz como ser eternamente feliz, desconfie de tudo o que vem a seguir”, diz. “As emoções negativas têm uma função nas nossas vidas, como tudo o que acontece no nosso cérebro, e eu não consigo encontrar uma mensagem mais importante para dar nestes tempos de aparência: a infelicidade é uma parte natural e inevitável da vida. Vamos parar de enganar-nos”.

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Ao longo dos anos, Elon Musk tem protagonizado várias polémicas, assumindo posições políticas radicais e populistas. Que leitura faz desta comunicação?
O Elon Musk é, acima de tudo, um homem de negócios. O seu objetivo, em primeiro lugar, é a obtenção de lucro. Não é um político, não é um académico, não é um entertainer, mas apenas um homem de negócios. Pode não parecer, mas tudo o que ele diz e faz é pensado para ganhar dinheiro.

As posições de Elon Musk nas redes sociais podem, então, ser explicadas como uma estratégia empresarial?
Do ponto de vista da comunicação, Elon Musk é um exemplo perfeito do que designamos por “capitalismo comunicacional”. E o que é isto? Quando ele faz uma declaração, é para fazer mexer com os mercados financeiros. Ele sabe que, qualquer que seja o tema, isso vai fazer subir ou descer os valores de ações, de preços dos produtos e bens. Ele tem noção disso, e usa os seus milhões de seguidores para isso.

Sabemos que a sociedade norte-americana está polarizada. Musk apoia Trump. Não pode ser alguém que, simplesmente, se foi tornando mais radical?
Ele não apoia Donald Trump, é apenas porque sente que é o candidato mais próximo da visão que ele tem do mundo. Pode achar isso, de facto, mas, para ele, o mais importante é estar perto de quem vence, para obter vantagens para si e para as suas empresas.

Muitas das suas últimas declarações parecem mais ideológicas do que estratégicas…
Sem dúvida. Seja ideológico ou estratégico, a verdade é que Musk e Trump estão alinhados. Mas também é verdade que todo o discurso de Donald Trump, comparando com o dos seus adversários, vai mais ao encontro de uma proteção dos mais ricos. E, neste momento, não há ninguém mais rico do que Elon Musk. Em termos económicos, é natural Musk identificar-se com os republicanos.

Mas Elon Musk também tem feito muitos comentários sobre política externa (ainda agora, sobre os motins racistas no Reino Unido). Isso já não vai para lá da lógica dos negócios?
Não, tem muito a ver com essa posição. Mas é fácil de explicar. Primeiro, está a demonstrar o seu poder perante terceiros, depois, está a usar o exemplo do Reino Unido para dizer aos norte-americanos que aquilo também pode vir a acontecer no país.

Musk tem 193 milhões de seguidores no X. Estas posições põem em risco as democracias do mundo?
Sinceramente, acho que Elon Musk tem mais impacto nos Estados Unidos do que noutros países. É verdade que se existe, hoje, uma internacional política, ela é de extrema-direita. E, por isso, ele sabe que o seu discurso vai ser escutado noutras partes do mundo.

Consegue fazer uma ligação entre o que Elon Musk diz, o que se passa nas redes sociais e o que acontece no mundo, como, por exemplo, os motins racistas no Reino Unido?
Acho isso exagerado. À velocidade a que estamos a tentar responder a tudo o que acontece no mundo, se calhar, estamos a confundir as causas do que se está a passar no Reino Unido. Diz-se que as redes sociais têm responsabilidade, que é preciso travar os discursos de ódio, criminalizar as partilhas… OK, tudo isso tem impacto. Mas os motins não acontecem por causa das redes sociais. Acontecem porque há pessoas disponíveis para participar nos motins. É preciso não confundir…

Mas, neste caso, as redes sociais foram usadas para espalhar desinformação que levou a ajuntamentos da extrema-direita, e a partir daí à violência…
Sim, claro. As redes sociais são uma ferramenta para partilhar mensagens, juntar e organizar pessoas… Mas vamos ser práticos: se todas as pessoas alinhassem pelo que diz Elon Musk, não haveria nada a fazer. Com ou sem redes sociais! Claro que isso seria muito mau para quem valoriza as democracias, mas essas pessoas de extrema-direita não são, neste momento, a maioria. E, como se tem visto, o Estado tem forma de responder, a estas situações, através da polícia, das Forças Armadas…

Se se chegar à conclusão de que o X prejudica, de facto, as democracias, através do discurso de ódio… Acha possível esta rede social ser proibida em países como os Estados Unidos ou da Europa?
Se na situação da guerra na Ucrânia, que é fora das fronteiras da União Europeia, se proibiram canais russos [como o canal RT e a agência de notícias Sputnik], então, claro, é possível proibir redes sociais. Na minha opinião, essa não seria a melhor solução. Iríamos, uma vez mais, punir a maioria pela minoria. E, pior, isso serviria para reforçar o discurso dessa minoria, que iria vitimizar-se, deixando, certamente, de ser uma minoria.

Qual é, então, a solução para travar as fake news, a desinformação e o discurso de ódio nesta rede social?
Viver em democracia é estar constantemente em confronto com ideias contrárias. Acho que, hoje, temos condições para criminalizar o discurso de ódio nas redes sociais. Não podemos dramatizar. E recordo que, embora existam fake news e desinformação, as pessoas são manipuláveis, mas não são hipnotizáveis.

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Elon Musk, o influencer do caos

Palavras-chave:

A Elon Musk basta uma frase para dizer o que quer dizer. Por vezes, quatro palavras são-lhe suficientes. Durante anos, o dono da rede social X (antigo Twitter) – plataforma que adquiriu, em outubro de 2022, por 44 mil milhões de dólares – insistia querer envolver-se “o menos possível” em política. Hoje, no entanto, tornou-se no principal influencer mundial dos movimentos radicais populistas, alinhado com líderes como Donald Trump nos Estados Unidos, Javier Milei na Argentina, Jair Bolsonaro no Brasil ou Giorgia Meloni em Itália. Musk tem mais de 193 milhões de seguidores, e cada uma das suas publicações parece querer questionar o funcionamento das democracias ocidentais, que acusa de terem sido atingidas por um “vírus woke”, como repete com insistência, lançando dúvidas sobre sistemas progressistas e multiculturais. O homem mais rico do mundo – com uma fortuna estimada em 232 mil milhões de dólares (segundo as listas da Bloomberg e Forbes de 2023) – provoca, diariamente, abalos sísmicos à escala global: ataca governos (quase todos de esquerda), tribunais, jornalistas e ativistas; sugere “planos de paz” para regiões em conflito, muitas vezes à revelia dos interesses de Washington (como aconteceu nos casos da Ucrânia e de Taiwan); e gosta de apontar o dedo às agendas das minorias raciais, sexuais e de género. Agarrado ao argumento da “liberdade de expressão”, reabriu a porta da rede social da qual é dono a contas extremistas que se encontravam suspensas ou banidas. Neste momento, conteúdos racistas, xenófobos, homofóbicos e transfóbicos circulam livres e velozes pelo X. Nas últimas duas semanas, os motins racistas no Reino Unido alertaram para o problema.

Influencer “Brilhante”, bem-sucedido e bilionário. Elon Musk tornou-se o “melhor amigo” de políticos como Trump, Javier Milei ou Jair Bolsonaro Foto:EPA/CAROLINE BREHMAN/LUSA

À VISÃO, o politólogo José Filipe Pinto considera que “é nítida” a ligação de Elon Musk “a uma deriva radical populista, próxima da extrema-direita norte-americana”. “Depois de se ter sentado à mesa com o poder democraticamente eleito, afastou-se, e está agora mais próximo dos movimentos contracorrente e antissistema. Sabemos que, hoje, essa linha de pensamento está também muito próxima da agenda republicana de Donald Trump”, sublinha. Especialista em Movimentos Extremistas e Populismo, José Filipe Pinto destaca que, apesar de tudo, Elon Musk mantém algumas “cautelas” quando escreve nas redes sociais. “Ele não aponta diretamente o caminho, preferindo deixar pontas soltas, apenas questionando ou sugerindo. Isso permite-lhe manipular os seus seguidores, dando-lhes a sensação de que são eles quem toma as decisões. É isto, na prática, o populismo”, refere. “Uma estratégia”, sublinha José Filipe Pinto, que permite ao influencer “dizer o que quer”, mas “nunca ser responsabilizado por ser o autor de discursos de ódio”, muito menos “pelo caos e pela violência que possam, eventualmente, surgir nas ruas, provocados pela extrema-direita, na sequência do que se diz online”. “A plataforma da qual ele é dono [a rede social X] garante-lhe isso, e de forma muito simples. Basta-lhe desbloquear contas de pessoas e de movimentos que ultrapassam os limites que ele não pode ultrapassar, que chegam mesmo a dar ordens diretas aos seus seguidores. Basicamente, Elon Musk utiliza outros para que ataquem, efetivamente, o sistema, que ele próprio considera o inimigo que tem de ser derrotado”, afirma.

Uma radicalização digital

Elon Musk nem sempre pensou desta maneira. O bilionário admitiu ter chegado a ser um “significativo” financiador dos democratas, partido em que votava por considerar “ser o mais bondoso”. Musk sentou-se à mesa com Barack Obama e, na última década, fechou contratos milionários com Washington, que lhe permitiram reconstruir o programa espacial da NASA e criar o serviço de internet por satélite Starlink, uma constelação artificial com três mil aparelhos, tornada indispensável pelas Forças Armadas dos Estados Unidos e seus aliados, em ações nas zonas de conflito. Neste período, Musk pôde encher as estradas do país de carros elétricos, numa fase em que a Casa Branca fez do combate às alterações climáticas uma das suas prioridades. Talvez nunca ninguém tenha acumulado tanto poder.

Para se compreender este homem, é preciso recuar ao início. Elon Musk nasceu em junho de 1971, em Pretória, numa África do Sul partida (e ferida) pelo Apartheid, filho de pai sul-africano e de mãe canadiana. Com ascendência inglesa e holandesa, a família vivia entre o luxo e a extravagância. O pai, Errol, engenheiro e empresário bem-sucedido, chegou a explorar uma mina de esmeraldas na Zâmbia, o que lhe permitia comprar iates, carros de topo, passar férias na neve ou adquirir os computadores mais avançados, apenas acessíveis a uma minoria. Os Musk eram a “elite”.

Radical Musk sentou-se à mesa com Barack Obama, financiou e apoiou os democratas, mas hoje alinha com a direita radical populista Foto: EPA/CAROLINE BREHMAN/LUSA

Mas as condições naturais não evitaram que Elon sofresse os dissabores da infância e da adolescência. A criança-prodígio – que, com apenas 11 anos, foi capaz de criar seu próprio videojogo, o qual vendeu, por 500 dólares, a uma empresa sul-africana – era também vista como “estranha”, propensa a obsessões, e adorava passar o tempo a construir foguetes e a tentar fabricar explosivos, como recordam aqueles que conviviam com ela. Encontrou nos livros os seus melhores amigos, devorando páginas durante horas infindáveis. No colégio privado que frequentava, exclusivo para a elite branca, Musk viveu os maiores tormentos, vítima de bullying de colegas que não queriam (ou conseguiam) compreender aquela maneira de ser. Chegou a ser hospitalizado, depois de atirado escadas abaixo e agredido violentamente, até ao ponto de perder a consciência.

Os sinais estavam presentes, mas apenas há quatro anos, numa entrevista no programa Saturday Night Live, Elon Musk confessou ter síndrome de Asperger, uma doença do espectro do autismo que afeta as capacidades de comunicação e relacionamento.

Depois do divórcio dos pais, quando tinha apenas 8 anos, ficou a viver com o pai nos subúrbios de Pretória, decisão que lamentaria amargamente. “Não foi uma boa ideia”, admitiu, anos mais tarde. Em adulto, cortou mesmo relações com o seu pai. E também com a terra natal, que parece ter dificuldades em reconhecer como sendo sua.

Ainda antes de fazer 18 anos, partiu para o Canadá, obtendo a cidadania canadiana através da mãe. Dois anos depois, pediu transferência para a Universidade da Pensilvânia, em Filadélfia, Estados Unidos, onde se formou em Física e Economia. Em 1995, com apenas 24 anos, mudou-se de malas e bagagens para Silicon Valley, na Califórnia. Ainda se inscreveu na Universidade de Stanford, com intenções de completar um doutoramento, mas desistiu da ideia passados apenas dois dias, ansioso por se lançar no mundo das empresas tecnológicas.

Em 2002, tornou-se cidadão norte-americano. O resto é conhecido.

Elon Musk é um dos empresários mais bem-sucedidos do mundo, acumulando prestígio e riqueza. O espírito inovador deu-lhe aura de estrela rock. Hoje, o rapazinho rico de Pretória controla a fabricante de automóveis Tesla, a empresa espacial privada SpaceX e a rede social X. Mas a sua criatividade parece inesgotável. Musk aposta forte na Neuralink, empresa que pretende implantar chips nos cérebros humanos, projeto que já está numa fase de ensaios, com vista a permitir que doentes recuperem funções corporais, desde o movimento das pernas e dos braços até à visão. Nos últimos anos, o bilionário chegou a comercializar um lança-chamas ou a anunciar a intenção de produzir uma tequila chamada Teslaquila. Continua a alimentar o sonho de, um dia, colonizar Marte.

O reino contra-ataca

Elon Musk pode vir a ser convocado para prestar declarações no Parlamento britânico no âmbito das investigações aos motins racistas no Reino Unido

Extrema-direita O extremista Tommy Robinson vive num resort de luxo no Chipre, mas é acusado de estar por detrás dos motins racistas que provocaram o caos no Reino Unido Fotos: LUSA

O Parlamento britânico promete investigar o papel da rede social X nos motins de extrema-direita no Reino Unido. O jornal norte-americano Politico avança que Elon Musk pode mesmo vir a ser convocado pelos deputados para prestar declarações, no âmbito do futuro Comité de Ciência, Inovação e Tecnologia, que será eleito no próximo dia 11 de setembro.

As deputadas trabalhistas Chi Onwurah e Dawn Butler, candidatas à presidência do comité, admitem a intenção de “pressionar” o patrão do X e outros responsáveis por empresas de tecnologia para responderem às questões da Câmara dos Comuns. “Devemos questionar todos os proprietários de plataformas de redes sociais”, afirma Dawn Butler. “É uma ferramenta muito poderosa e temos de compreender esse poder e garantir que é responsável”, acrescenta. A tarefa, no entanto, não se prevê fácil de concretizar. A comissão tem o poder de convocar pessoas e requerer acesso a documentos ou registos. E pode, até, como último recurso, emitir uma convocatória formal. Os efeitos práticos, porém, esgotam-se para lá das fronteiras do Reino Unido, o que tem permitido aos responsáveis por plataformas tecnológicas evitar os interrogatórios. Foi o que aconteceu com Mark Zuckerberg, fundador e proprietário do Facebook, que chegou a ser convocado por uma comissão parlamentar, na sequência do escândalo da Cambridge Analytica – consultora britânica que acedeu e explorou os dados pessoais de 87 milhões de utilizadores do Facebook para influenciar a opinião de eleitores em vários países, durante campanhas políticas –, mas o fundador daquela rede social recusou-se sempre a comparecer. Na altura, a comissão ponderou emitir uma convocatória formal para que lhe fosse exigida a comparência. Mark Zuckerberg arriscou ser detido por desrespeito ao Parlamento do Reino Unido, se pisasse solo britânico. O caso, entretanto, caiu no esquecimento. O alvo, agora, é Elon Musk. Perante as provocações do homem mais rico do mundo – que chegou a dizer, no X, que “a guerra civil [no Reino Unido] era inevitável” –, o governo britânico tem reagido duramente. A ministra da Justiça, Heidi Alexander, classificou a postura de Musk de “profundamente irresponsável”. Numa entrevista à Times Radio, a governante chamou-o à atenção: “Se tens uma grande plataforma de redes sociais, também tens uma grande responsabilidade.” Numa entrevista à BBC, Alexander adiantou que o executivo de Keir Starmer iria analisar a possibilidade de reforçar a atual Lei de Segurança Online, que entra plenamente em vigor em 2025. “Temos trabalhado com as empresas de redes sociais, e algumas das medidas que já tomaram, como a remoção automática de certas informações falsas, são bem-vindas”, disse. “Mas há, sem dúvida, muito mais que as empresas de redes sociais poderiam e deveriam fazer”, sublinhou.

O poder de Elon Musk transcende a sua fortuna. O tempo parece tê-lo mudado, seja por questões ideológicas ou financeiras. Aos 53 anos, Musk já teve 12 filhos – o primeiro, Nevada, faleceu vítima de síndrome de morte súbita infantil, com apenas 10 semanas –, de três mulheres, de quem, entretanto, já se separou. O “novo” Elon tem uma relação com a família tão complexa como o “antigo”. O exemplo de Vivian Wilson, a filha transgénero de 20 anos, choca frontalmente com o seu novo ideário. “O meu filho Xavier (o nome anterior de Vivian) está ​morto, assassinado pelo vírus da mente woke”, afirmou Musk, numa entrevista dada a Jordan Peterson, psicólogo-estrela da direita radical, no final do mês passado. Se antes era discreto, agora as polémicas passaram a fazer parte do seu quotidiano (ver caixa O Bilionário das Mil Polémicas).

Num artigo publicado no Washington Post, 20 altos funcionários do governo norte-americano são unânimes em descrever Elon Musk como “brilhante”, mas igualmente “excêntrico”, “arrogante” e “caprichoso”. O carácter “impulsivo” e “imprevisível” do bilionário parece causar receios em Washington, mas também no mundo. “Ele continua a dar tiros no próprio pé, faria melhor não se meter na política. Como toda a gente, fiquei chocada ao vê-lo envolver-se em alguns assuntos, nos últimos meses”, refere uma fonte escutada para o artigo.

“Elon Musk tem uma posição tremendamente narcisista”, realça José Filipe Pinto, que descreve o bilionário como alguém que pensa “não ter de se submeter à lei, mas ter o direito de impor a lei”. “Musk vê os líderes políticos como obstáculos, porque acredita ter mais poder do que os próprios Estados, e sente ter, não só o direito de impor as regras, mas também a capacidade para regular o mundo. E, de facto, falamos de alguém que tem mais poder do que governos”, sublinha. José Filipe Pinto considera que o norte-americano demonstra “um narcisismo exacerbado, que se torna doentio, próximo da psicopatia”. “Ele tem um poder financeiro imenso, tem uma ferramenta para difundir as suas ideias [a rede social X], tem seguidores… É alguém que tem uma ideia messiânica de si próprio”, conclui o politólogo.

O problema inglês

O último capítulo da história radical e populista de Elon Musk atravessou, não só o oceano mas também as fronteiras digitais. Os motins racistas espalharam-se pelo Reino Unido. Enquanto o caos e a violência tomavam conta das cidades da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, as trocas de acusações entre o bilionário e o governo de Keir Starmer faziam manchetes por todo o mundo. Musk continua a “incendiar” o ambiente, promovendo desinformação e teorias da conspiração. Chegou mesmo a afirmar que “a guerra civil [no Reino Unido] é inevitável” [“Civil war is inevitable”, escreveu no X]. Como já tinha feito, aliás, pelo menos mais cinco vezes, entre outubro de 2023 e o passado dia 4 de agosto. Musk insiste que a culpa da violência “é do governo britânico”, compara as prisões de extremistas pela polícia inglesa com as detenções feitas pelos nazis e insinua que a justiça britânica tem critérios de tratamento diferentes para muçulmanos. O Parlamento britânico promete investigar estas ações (ver caixa O Reino Contra-Ataca).

Cátia Moreira de Carvalho refere que as posições de Elon Musk estão “escudadas no argumento da liberdade de expressão”, mas admite que “há uma linha que, uma vez ultrapassada, torna essa liberdade de expressão algo que tem potencial para prejudicar outras pessoas, que, normalmente, se sentem mais ameaçadas”. A investigadora em Psicologia, Extremismo e Radicalização, da Universidade do Porto, alerta que “ao atacar e incitar à violência contra estas pessoas [muçulmanas], o discurso de ódio provoca divisões perigosas na sociedade, prejudica a participação e a inclusão daqueles que são alvo dele e coloca a democracia em risco”.

Neste caso, a rede social X parece ter cumprido o guião de Musk. Apontado como o líder dos motins racistas, Tommy Robinson, nome de guerra de Stephen Yaxley-Lennon, ​foi banido, entre 2018 e 2019, das plataformas Facebook, Instagram e Twitter, mas depois da compra do Twitter por Elon Musk a sua conta foi-lhe restituída. O ex-hooligan de Luton, 41 anos, com passagens por vários partidos e movimentos extremistas (como a Liga da Defesa Inglesa), é visto como o líder da extrema-direita britânica, e embora continue fora do Reino Unido (passou pelos Estados Unidos e, segundo informações mais recentes, viverá atualmente num resort de cinco estrelas no Chipre), continua a publicar conteúdos racistas e xenófobos na rede social X, sem aparente verificação. Os conteúdos podem ser lidos e partilhados pelos seus mais de 975 mil seguidores.

Fortuna O homem mais rico do mundo, com um património avaliado em 232 mil milhões de euros, promete doar €41 milhões/mês para reeleger Trump

Conhecido pelas suas posições anti-imigração e anti-islão, Tommy Robinson tornou-se figura popular e acarinhada nos Estados Unidos, chegando a ser descrito por Steve Bannon, antigo diretor de campanha de Donald Trump nas eleições presidenciais de 2016 – a cumprir pena de prisão de quatro meses (condenado por desafiar uma intimação do Congresso que investigava o ataque ao Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021) –, como uma vítima “da elite liberal” e um “preso político”, depois de ser detido. Musk parece concordar com a descrição.

Os motins no Reino Unido começaram na sequência de um ataque de um homem de 17 anos a um centro comunitário, em Southport, localidade no Noroeste de Inglaterra, que provocou a morte de três meninas (uma das quais com nacionalidade portuguesa). A tragédia foi aproveitada pelos movimentos de extrema-direita para espalharem fake news sobre a identidade do autor dos crimes, apontado como um refugiado muçulmano, recém-chegado ao país. Na realidade, o homem – atualmente detido – nasceu em Cardiff, no País de Gales, filho de pais ruandeses, e residia em Lancashire. As mentiras foram replicadas em Portugal. O esclarecimento de nada serviu. 

Segundo Cátia Moreira de Carvalho, o episódio comprova que “é impossível parar a disseminação deste conteúdo” nas redes sociais, quando estas “estão sob o domínio de empresas privadas, com as suas próprias regras e muito difíceis de controlar”. A especialista afasta, porém, que a solução passe por proibir o X. “Dentro desta temática, não acredito em proibições”, sublinha. Cátia Moreira de Carvalho considera que “a solução passa, sim, por uma aposta na literacia digital, por programas educativos de prevenção do discurso de ódio e por combater as razões que estão na base da propagação deste tipo de narrativa”. “Demora bem mais tempo do que proibir, mas os seus efeitos a médio e longo prazo são mais benéficos”, realça.

Um mal necessário?

Lenda Em 2021, Elon Musk foi a Pessoa do Ano da revista Time. A criatividade para os negócios do dono da Tesla e da SpaceX parece infinita

Em declarações à VISÃO, Susana Salgado desdramatiza o problema, considerando que o discurso de Elon Musk se enquadra no que considera ser “uma reação”. Daí que tantos o acompanhem. “Numa sociedade orientada por valores mais à esquerda, temos de assumir que há uma camada da população que não se sente representada, e que reage. Os discursos populistas de direita vieram dar visibilidade a essa camada da população, que não concordava com a narrativa dominante”, defende. Apesar dos receios, a investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL) alerta para o facto de que “este tipo de discursos existe e também faz parte” das sociedades democráticas. “As pessoas têm o direito de ter opiniões diferentes, isso é que é democracia”, acrescenta. Em relação aos excessos nas plataformas, Susana Salgado afirma que a proibição “não resolve um problema que existe no mundo real”, e que tudo o que se enquadra como discurso de ódio já está previsto na lei e deve ser punido. “É uma questão da aplicação da lei”, conclui. É isso que começa a acontecer no Reino Unido.

Elon Musk promete não pôr “pimenta na língua” para reeleger Donald Trump para a Casa Branca nas presidenciais de 5 de novembro. Ainda assim, na rede social X, já começou a atacar ferozmente Kamala Harris, que diz defender políticas “comunistas”. Enquanto esgrime argumentos com Nicolás Maduro, vai deixando farpas à candidata democrata.

Apesar de toda a dedicação, há republicanos que continuam a duvidar da sua paixão pelo partido. A possibilidade de os magnatas “todo-poderosos” controlarem Washington – não só Musk, mas também Jeff Bezos, Marc Benioff ou Pierre Omidyar, donos de impérios tecnológicos e mediáticos – parece desagradar a todos.Donald Trump não se mostra incomodado, e aproveita. Esta semana, concedeu uma entrevista a Musk, transmitida, em direto, no X. O Wall Street Journal tinha garantido que Musk pretende doar cerca de €41 milhões/mês para a campanha do Partido Republicano. Os astros parecem alinhados.

O bilionário das mil polémicas

Elon Musk não deixa ninguém indiferente. Adorado por uns, odiado por outros, o empresário sul-africano, naturalizado norte-americano, tem o currículo ilustrado por um sem-número de escândalos

O “pedo guy”
Em julho de 2018, Elon Musk quis participar no socorro das 12 crianças de uma equipa de futebol juvenil presas numa caverna, na Tailândia. Construiu uma cápsula de resgate, mas o aparelho revelar-se-ia inútil. O britânico Vernon Unsworth, um dos mergulhadores presentes nas operações, descreveu a ação como um “golpe de marketing”. Musk não gostou da referência e usou a rede social Twitter para lhe chamar “pedo guy” [“gajo pedófilo”, numa tradução para português], sem nenhuma razão aparente. Perante as reações negativas, Musk pediu desculpa. Vernon ainda o processou por difamação, mas um tribunal de Los Angeles arquivaria o caso.

“Venda” da Tesla
Em agosto de 2018, Elon Musk anunciou no Twitter estar a considerar tirar a Tesla da bolsa, vendendo cada ação da empresa a 420 dólares. O empresário chegou a afirmar que o financiamento para a operação estava “assegurado”. O negócio que envolvia o fundo de investimento público da Arábia Saudita não aconteceu. As ações da empresa caíram a pique. As autoridades abriram uma investigação e Musk teve de pagar uma multa de 20 milhões de dólares para evitar ir a tribunal. Foi ainda obrigado a abandonar a presidência do conselho de administração da Tesla, mantendo-se, porém, como CEO da empresa.

Negacionista
O ceticismo de Elon Musk em relação à pandemia de Covid-19 causou polémica e indignação. Em março de 2020, o empresário escreveu no Twitter: “O pânico do coronavírus é idiota” [“The coronavirus panic is dumb”], e previu (erradamente) que os casos nos Estados Unidos chegariam a zero no espaço de apenas um mês. Estas posições levaram profissionais de saúde e cientistas a criticarem Musk, acusando-o de espalhar desinformação sobre a doença. Em maio desse ano, Musk não cumpriu as ordens das autoridades para o encerramento dos serviços não essenciais, decretadas pelo Condado de Alameda, retomando a produção da Tesla na unidade de Fremont, na Califórnia. O empresário chegou a descrever o lockdown como “fascismo”.

No mercy
“O pássaro foi liberto.” [“The bird is freed”.] Em apenas quatro palavras, Musk anunciou, em outubro de 2022, a conclusão da aquisição do Twitter. Alegando a necessidade de reduzir custos, o empresário não hesitou em avançar para um processo de despedimento em massa. No espaço de apenas um ano, despediu cerca de 80% dos trabalhadores da empresa, que passaram de oito mil para apenas 1 500. Em julho de 2023, mudou o nome da plataforma para X.

Canábis
Em setembro de 2018, Elon Musk foi convidado para o podcast de Joe Rogan – influenciador associado à direita radical norte-americana –, mas o conteúdo da entrevista de duas horas e meia passou para segundo plano. A determinada altura, Musk surge no ecrã a fumar canábis. As ações da Tesla caíram 8%. O episódio chegou a pôr em causa os contratos da SpaceX de Musk com o Exército dos Estados Unidos da América.

Paz “à Musk”
Elon Musk parece acreditar ter todas as soluções. Os “planos de paz” propostos por Musk para a Ucrânia e para Taiwan previam cedências territoriais à Rússia e à China, respetivamente. A posição recebeu críticas de Kiev e Taipé. Nos bastidores de Washington, funcionários irritados acusaram-no de “estar a intrometer-se” demais.

Pró-Bolsonaro
Elon Musk tornou-se ídolo dos apoiantes de Jair Bolsonaro depois de acusar o juiz do Supremo Tribunal Federal brasileiro, Alexandre de Moraes, de “violar a Constituição” e “promover” a censura no país. Na sequência destas declarações, Moraes anunciou a abertura de uma investigação ao dono do X no âmbito do inquérito sobre as notícias falsas online que terão contribuído para a invasão da sede dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023.

Boicote a ataque ucraniano
Na sua mais recente biografia, da autoria de Walter Isaacson, Elon Musk revelou que mandou desligar o sistema de satélites Starlink durante uma ofensiva ucraniana, que tinha como alvo a frota marítima da Rússia, estacionada na Crimeia. Musk justificou a decisão com o facto de o embaixador russo nos Estados Unidos lhe ter dito “explicitamente” que, em caso de ataque, isso resultaria “numa resposta nuclear” por parte de Moscovo.

Antitrans
“Esta é a gota de água.” Musk não escondeu o desagrado depois de ver aprovada uma lei na Califórnia que reverte a obrigatoriedade de os professores avisarem os pais sobre possíveis mudanças na identidade de género de um estudante. No X, Musk, que tem uma filha transgénero (com quem não tem relação), anunciou a intenção de transferir as sedes principais da SpaceX e da rede social X para o Texas.

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