O Conselho Europeu de hoje faz verdadeiramente história ao incluir pela primeira vez na agenda de uma reunião de chefes de Estado e de Governo a habitação como problema comum europeu.

Durante décadas de construção europeia, a questão da habitação foi considerada um problema dos Estados que, de acordo com os níveis de descentralização, era resolvido a nível nacional, regional ou local, sem necessidade de intervenções específicas de Bruxelas. Mais ainda, a fé profunda na racionalidade dos mercados levava a que o assunto, salvo a habitação a custos controlados ou de iniciativa pública nas grandes cidades, fosse deixado à dinâmica própria do sistema financeiro, que tanto financiava a construção pelas empresas como a aquisição de casas pelos cidadãos.

A evolução dos últimos dez anos, sobretudo nos anos a seguir à pandemia, veio alterar radicalmente a situação tornando a habitação um dos principais entraves à coesão social, à competitividade e à mobilidade à escala europeia. Daí o decisivo relatório publicado a semana passada pela Comissão Europeia sobre “Habitação na União Europeia: Evolução do Mercado, Tendências Subjacentes e Políticas”, bem como o original agendamento formal do assunto para um Conselho Europeu.

Parte dos problemas é comum a todos os Estados-membros, mas com as dramáticas evidências de que em Portugal a escala do impacto é das mais elevadas, o desajustamento entre a evolução dos preços da habitação e os rendimentos é o maior a nível europeu e que, face a maleitas que são comuns, o Governo de Montenegro se destaca por fazer quase tudo o que é possível para agravar ainda mais a dramática situação.

Os nossos baixos índices de habitação pública, sem paralelo a nível europeu, a dependência do crédito bancário e a total desregulação dos preços dos novos arrendamentos contribuem para a tempestade perfeita.

Ontem o INE assinalou mais uma marca histórica. Os preços médios das transações no segundo trimestre de 2025 ultrapassaram pela primeira vez os 2 mil euros/m2 (mas com o concelho de Lisboa perto dos 5 mil euros/m2), com uma variação homóloga de 19% relativamente a 2024, a maior desde o início da série estatística.

Os preços da habitação na Europa triplicaram desde o início do século XXI, mas Portugal destaca-se com uma valorização superior a 200% só nos últimos dez anos e uma aceleração da tendência nos últimos dois anos.

O aumento dos preços supera imenso o dos rendimentos, provocando uma retração da mobilidade, uma degradação das condições de habitabilidade pelo recurso crescente à partilha de casas e uma permanência até tarde dos jovens na casa dos pais.

A Comissão Europeia diz que os preços dispararam enquanto a oferta de novas casas baixou relativamente ao início do século. Sobretudo nas cidades e nas áreas com pressão turística, a generalização do alojamento local e o peso crescente dos fundos de investimento imobiliário são responsabilizados pela retração do número de casas disponíveis e pela escalada dos preços.

A liberal Comissão Europeia diz que a solução exige a mobilização de todos os esforços para aumentar a oferta de casas e que se devem evitar apoios ao crescimento da procura como benefícios fiscais, apoio no acesso ao crédito e subsídios que favorecem os que têm rendimentos mais altos e fazem subir ainda mais os preços.

Tudo o que tem sido feito por Luís Montenegro e Miguel Pinto Luz parece retirado de um manual de como fazer tudo errado e agravar ainda mais a situação.

Fracasso na utilização dos recursos do PRR para a habitação e substituição dos apoios com subvenções a fundo perdido, a utilizar até 2026, por empréstimos do BEI até 2030. Os valores destinados à habitação foram já reduzidos na reprogramação do PRR de janeiro, mas mesmo assim a taxa de execução é só de cerca de 50% para obras que têm de estar concluídas até agosto de 2026.

Criação de uma política restritiva da contratação de trabalhadores estrangeiros, e da sua integração em Portugal, que paralisa as empresas por falta de mão-de-obra e promove o recurso à imigração ilegal e à informalidade sem direitos.

Estímulo ao aumento dos preços com as medidas fiscais e a garantia pública dadas aos empréstimos para jovens até aos 35 anos.

Adoção de conceitos de construção a custos moderados até 640 mil euros e de renda moderada até 2300 euros, muito superiores aos preços médios do mercado que, ao nivelar por cima o acesso a benefícios fiscais, são fortíssimos estímulos à continuação da cavalgada dos preços.

Redução de 23% para 6% do IVA da construção sem qualquer discriminação positiva destinada ao arrendamento ou à venda a custos controlados. Todas estas medidas estão no pacote de exemplos dados pelo relatório da Comissão Europeia como incentivos ao endividamento e à redução da acessibilidade da habitação.

Enquanto as áreas metropolitanas, o Algarve, a Madeira e o Litoral Alentejano superam já os 2 mil euros por m2 nas novas transações, mas com várias freguesias de Lisboa a superar já os 6 mil euros/m2, o ministro Pinto Luz vai tentar conhecer os problemas habitacionais do eixo interior numa excursão de Chaves a Faro ao longo da Nacional 2.

Pela insensibilidade à necessidade de promover a oferta, pública e privada, e arrefecer os preços da habitação, em contradição com o diagnóstico europeu e o desespero dos portugueses, o prémio Laranja Amarga de hoje vai de novo para o ministro do imobiliário Miguel Pinto Luz.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

“A tolerância não era desprezada como sinal de moleza e fraqueza, mas sim celebrada enquanto força moral.”

A frase foi escrita por Stefan Zweig no extraordinário O Mundo de Ontem, Recordações de um Europeu. As memórias do vienense que consta na galeria dos meus heróis e não só por ser um dos mais brilhantes autores da Humanidade. 

Há demasiadas parecenças, descontando os normais anacronismos, entre os tempos que estamos a viver e as primeiras décadas da vida do genial escritor para que se possa destacar apenas um aspeto deste extraordinário livro. Dois mundos onde a segurança, o conforto, o crescimento económico, a conquista de direitos, a democratização no acesso à cultura, eram vistos como dados adquiridos e irreversíveis. Dois mundos cosmopolitas, progressistas, com extraordinários avanços nas várias áreas de conhecimento.

No entanto, olhar para a tolerância como fraqueza e não como força moral foi uma espécie de condição sine qua non que levou às duas guerras mundiais do séc. XX e que promete destruir as nossas comunidades.  

Não falta quem culpe, em larga medida, as redes sociais pelo clima polarizado e radicalizado em que vivemos.

De facto, a manipulação rápida e em massa tem tido efeitos terríveis no espaço público. A capacidade de se transformar a mentira em verdade (aproveito para recomendar a uma editora que esteja por aí a tradução do livro Invisible Rulers, de Renée DiResta, sobre este assunto), a facilidade com que se pode insultar e difamar sem consequências e o anonimato que faz de qualquer cobarde um valentão são potenciadores brutais de dissensão. E, já se sabe, quanto mais radicais, mais insultuosas, mais violentas forem as mensagens, mais efeito têm, mais tráfego geram e mais dinheiro dão a ganhar aos donos das plataformas.

Ninguém ganha nada com posts moderados ou a vender a chata da verdade. Nas redes sociais não há diferentes pontos de vista ou adversários, há só inimigos e amigos. Há só trincheiras.

No mesmo sentido, nas redes sociais não há ninguém simplesmente de direita ou esquerda (sim, cá estou eu outra vez a usar conceitos que estão desprovidos de sentido), o inimigo é sempre um extremista: o inimigo ou é de extrema-direita e fascista ou de extrema-esquerda e comunista. 

Não serei eu, portanto, a desresponsabilizar as redes sociais pela rápida degradação do espaço público. Bem pelo contrário.

As últimas eleições autárquicas, por exemplo, mostraram que há políticos que não hesitam em chamar radical ao seu adversário sem explicar em que se consubstancia essa acusação, que trocam epítetos por argumentos, que preferem discussões vagas sem ligação direta à vida das pessoas. E não poucas vezes isso resulta.

As pessoas estão muito recetivas a acreditar em mentiras, sobretudo nas que confirmam os seus preconceitos e, claro, esses podem ter sido amplificados por grandes ações de propaganda. No entanto, exploram sempre preconceitos.

As redes sociais apenas alimentam rápida e eficazmente sentimentos que são tão velhos como o mundo. 

Não há crise social que não tenha este tipo de fenómenos, esta parte negra da natureza humana na sua génese. Podem, claro está, ser alimentados por outras circunstâncias: problemas económicos, choques civilizacionais, etc., etc., mas este lado lunar é sempre imprescindível. A capacidade de destruirmos o chão comum, a comunidade, sempre teve Xs, Facebooks e afins.   

Por outro lado (ou não), a imensa concentração de riqueza ajuda hoje, como ajudou noutras alturas como a de Zweig, a definir narrativas – o poder imenso dos recursos infinitos consegue quase tudo.

O culpado da desigualdade, das crises económicas, do desemprego, da falta de expectativas é sempre um inimigo facilmente identificável: o imigrante, o judeu. Mas não só. É fundamental culpar as elites, e a narrativa define que nunca são as económicas, são sim as que chamam a atenção para os problemas das sociedades, os que não culpam os alvos do costume, mas apontam para causas que não se explicam num cartaz ou num tweet.

Que ninguém duvide: o investimento em propaganda e nos seus meios para a criação de um discurso político é também uma estratégia empresarial. Basta um exemplo: Trump e a sua clique.

Tudo isto, rigorosamente tudo, precisa de que não vejamos o outro como igual, como alguém que não vive com as mesmas angústias e desejos, que não tem como nós o mesmo direito a ser ouvido. É fundamental que não toleremos o outro e que o desprezemos. Um homem ou uma mulher como deve ser é um fraco se não gritar mais alto, se não insultar de forma mais violenta, se não olhar para o lado contrário. A tolerância tem de ser um defeito, não uma virtude.

Sim, querido Stefan Zweig, não aprendemos nada.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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“Por favor, apaga as imagens políticas horríveis que partilhei contigo, infelizmente ainda temos de voltar aos EUA.” Final da tarde de sábado, 18, em Portugal e o meu interlocutor no WhatsApp lembrava-se de que Donald Trump é um “agente laranja intocável” e que o Big Brother pode estar sempre a observar-nos.

Dois minutos antes, eu rira-me à gargalhada com os dois cartoons que me enviara. Num deles, Trump aparece mascarado de Mickey, de chupeta na boca e pistola na mão, orgulhoso de um cocó. No outro, o inquilino da Casa Branca está sentado no edifício do Capitólio feito retrete, preparando-se para usar papel higiénico com a bandeira dos Estados Unidos impressa.

Dentro de pouco tempo, este meu amigo e a sua mulher vão ter de sair de Portugal porque ainda não obtiveram a autorização de residência. Logo que possível, contam regressar ao País onde vieram procurar refúgio a seguir à tomada de posse da segunda Administração Trump. Mas, enquanto não estiverem escudados legalmente, todo o cuidado é pouco, lembram amiúde.

É uma amizade recente, esta, nascida por causa de um artigo a que demos capa na VISÃO, no início de fevereiro, sobre “refugiados de Trump” que aqui foram chegando nos últimos meses. Tudo pessoas que se sentem indignadas com o rumo do seu País e confessam ter vergonha de se dizerem norte-americanas.

Manhã de domingo, 19. Quando acordei, já tinha uma nova mensagem no grupo de WhatsApp criado por um outro casal também entrevistado para o mesmo artigo e também temporariamente de volta aos EUA: “Viste as manifestações? Nós não podíamos faltar!”

Nesse grupo, predeterminámos que as mensagens desaparecem ao fim de pouco tempo. Eu não tenho nada a perder com o que ali partilhamos; eles confessam algum receio, mas que não os travou de participarem no megaprotesto No Kings (sem reis) que, no sábado, 18, encheu de gente as principais cidades norte-americanas, pequenas vilas e subúrbios.

Não os travou a eles nem aos milhares de pessoas, de todas as idades, que se manifestaram contra a Administração Trump, a empurrar carrinhos de bebé, em cadeiras de rodas, de cães pela trela e cartazes alusivos (“Ninguém está a comer cães”), num ambiente festivo onde não faltaram as piadas. Foram mais de 2 600 manifestações, um pouco por todo o país, sem relatos de ilegalidades ou violência.

“Queremos expulsar o fascista Donald Trump e mandá-lo para onde ele pertence – direto para o lixo da História”, tinham anunciado os organizadores do No Kings. “Ele é a personificação do motivo pelo qual a 25ª Emenda e o impeachment [destituição] foram criados. Se o Congresso tivesse coragem, ele seria relegado para o caixote do lixo da História”, já defendera Bruce Springsteen, numa entrevista à Time.

O que talvez ninguém esperasse era ver Trump publicar na Truth Social um vídeo gerado por IA em que aparece de coroa na cabeça, a pilotar um caça e a deitar cocó sobre os manifestantes. Aconteceu logo na noite de sábado e escrevi “talvez”, embora já se espere tudo dele – sobretudo cocó e (suposto) humor para disfarçar mais uma ação de propaganda.

Transformar a violência num meme faz com que as pessoas deixem de a ver como violência, sabem de cor os ditadores.

Há momentos que mudam vidas, impulsionam carreiras e, quando ocorrem em países poderosos e com influência global, podem até definir novas regras, criar tendências e, com isso, gerar mudanças planetárias.

Embora tudo indique que sim, ainda não sabemos se se confirma que, dentro de menos duas semanas, Zohran Mamdani vai ser eleito presidente da câmara de Nova Iorque, a maior cidade dos EUA e que muitos ainda querem continuar a ver como um dos centros de uma certa ideia do mundo: uma metrópole cosmopolita, culta e vibrante, apesar de todos os seus inegáveis problemas e até de alguns muito maus exemplos. A verdade é que um imigrante de classe alta, filho de uma realizadora famosa e de um emérito professor universitário, conseguiu, em menos de um ano, passar do quase extremo anonimato a possível líder da cidade que é, provavelmente, a mais famosa do planeta – aquela que se tornou, no século XX, símbolo do sonho americano e que no início do atual sofreu o ataque terrorista que, nesse momento, uniu o mundo num mesmo horror e nos levou a sentirmo-nos (sabemos agora fugazmente…) como se fôssemos “todos americanos”, conforme escreveu, no dia seguinte ao 11 de Setembro, Jean-Marie Colombani no seu editorial-manifesto no parisiense Le Monde.

Apesar da sua tradição democrática, foi em Nova Iorque que se deu o primeiro ato da atual deriva autoritária que varre a América: a 16 de junho de 2015, Donald Trump desceu a escadaria da sua Trump Tower e anunciou que era candidato à Presidência dos EUA. Esse momento, desvalorizado na altura, foi o prenúncio daquilo que se seguiu: no seu discurso, o milionário referiu-se aos milhares de pessoas que estariam a escutá-lo – quando não passavam, segundo todos os relatos imparciais, de algumas dezenas, algumas delas contratadas para o efeito; nas suas primeiras palavras, focou-se logo no combate à imigração, afirmando que o México estava a enviar deliberadamente “violadores” para os EUA – algo que, nos dez anos seguintes, nunca conseguiu provar. Estava dado o tom para uma nova era de efabulações, mentiras e inverdades.

Entre todos os que assistiram a essa proclamação, ninguém apostava um cêntimo em como estariam a presenciar a entrada em cena do futuro Presidente dos EUA. Tudo aquilo parecia tão irracional, desproporcionado e suficientemente falso para alguém poder levá-lo a sério. Mas sabemos todos o resto da história: não só Trump acabaria por ganhar, como impôs um estilo que tem agora muitos seguidores.

Com Zohran Mamdani não se coloca a questão de se estar a assistir à ascensão de um próximo inquilino da Casa Branca. Nascido no Uganda, só aos 7 anos veio viver com a família para os EUA e, portanto, está constitucionalmente impedido de aceder ao mais alto cargo da nação mais poderosa do mundo. Podemos, no entanto, estar a assistir a algo igualmente revolucionário: uma nova forma de lidar com o populismo, com propostas dirigidas especialmente às classes trabalhadoras e a quem foi vítima da exclusão, num mundo pós-liberal.

E o mais interessante dessa revolução é que ela foi iniciada, há mais ou menos 11 meses, de uma forma que merece ser estudada: Mamdani foi para as ruas, com uma câmara e um microfone, ouvir as pessoas que, nos bairros tradicionalmente democratas de Nova Iorque, tinham decidido mudar o seu voto e eleger Trump para a Casa Branca. Uma a uma, ouviu as suas queixas, quase todas elas relacionadas com o aumento do custo de vida e com a descrença no sistema político. Em vez de lhes dizer que Trump lhes tinha mentido, preferiu ouvi-los e perguntar se concordavam com as soluções que ele propunha para resolver esses problemas – e todos concordaram com elas.

Por mais que a América polarizada continue a querer pintar Mamdani como um “perigoso socialista” ou um “100% comunista”, como lhe chama Trump, a verdade é que as suas propostas principais são cristalinamente de bom senso e, de uma forma ou de outra, já foram experimentadas ou introduzidas em muitos países ocidentais: transportes públicos gratuitos e mais eficientes, congelamento das rendas de casa, acesso universal a creches e a ensino pré-escolar, criação de uma mercearia municipal, em cada bairro, com produtos ao preço diretamente do produtor. Em vez de ostracizar os eleitores de Trump, Mamdani preferiu ouvi-los e apresentar-lhes soluções práticas para os seus problemas e dificuldades – sem se enredar em devaneios ideológicos nem fazendo alimentar a polarização. Num mundo impaciente, cada vez mais desigual e injusto, a experiência de Mamdani pode ser um bom exemplo de como combater o populismo.

Resta saber para que lado irão soprar os ventos em Nova Iorque.

Palavras-chave:

O filósofo Slavoj Žižek gosta de contar uma velha história sobre um operário suspeito de roubo. “Todas as tardes, ao sair da fábrica, o carrinho-de-mão que ele empurra é cuidadosamente revistado. Os guardas nada encontram; o carrinho está sempre vazio. Até que se fez luz: o operário roubava um carrinho-de-mão por dia! Os guardas não viam a mais visível verdade…”

André Barata, presidente da Sociedade Portuguesa de Filosofia e professor na Universidade da Beira Interior, não precisou de ir aos sites Goodreads, Citador, Pensador, BrainyQuote, Wikiquote e afins, nem andar horas a fazer scroll no Facebook ou no Instagram para nos citar Slavoj Žižek. A história contada pelo filósofo esloveno surge-lhe de repente, já a conversa vai longa, a propósito destas modas de andar a citar frases soltas de grandes pensadores como quem procura máximas de autoajuda. “O problema não está nas citações com que enchemos o carrinho-de-mão. O problema está no carrinho-de-mão que as leva – um produto descartável da sociedade de consumo”, explica.

Carl Jung

“Quem olha para dentro desperta”

O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) é, juntamente com Friedrich Nietzsche, o rei das redes sociais. Jung, o fundador da psicologia analítica, tem outra particularidade: as suas frases, algumas belíssimas, são amiúde capturadas pela pseudociência (e não só), e tão descontextualizadas que o trabalho de uma vida, denso e profundo, acaba reduzido a uns “bitaites” de autoajuda. É o caso da muito famosa “Quem olha para fora sonha; quem olha para dentro desperta”. Podia estar aqui tudo dito, uma espécie de “conhece-te a ti mesmo”, mas a frase, escrita numa carta a uma paciente, tem um contexto em que Jung desenvolve a ideia fundamental da projeção (ler texto principal).

Carl Jung e Sigmund Freud corresponderam-se em centenas de cartas, mas as suas ideias acabaram por divergir bastante. Jung introduziu o conceito dos arquétipos, um inconsciente coletivo herdado e universal, e é aqui que muita pseudociência se mascara de “jungiana”, prometendo-nos uma vida mais feliz depois de trabalhar a nossa “sombra”. Na espuma dos dias da internet.

“As pessoas farão qualquer coisa, não importa o quão absurda, para evitar enfrentar as suas próprias almas”

“A sua visão só se tornará clara quando você puder olhar para dentro do seu próprio coração. Lá fora, tudo parece discordante; somente dentro se aglutina em unidade. Quem olha para fora sonha; quem olha para dentro desperta”

“Toda a adição é má, não importa se o narcótico é álcool, morfina ou idealismo”

Que vazio é esse que carregamos num carrinho-de-mão e que nos leva a esta ânsia de querer preenchê-lo com sentidos, valores ou ensinamentos de vida que não conseguimos encontrar em nós próprios ou na contemporaneidade que nos rodeia? Será que Deus morreu outra vez?

Abrimos as redes sociais e temos ali a guerra em direto, as guerras, na verdade. A pele e o osso das crianças de Gaza, a palavra genocídio, os escombros de um povo. Temos também a desumanização de grupos sociais, os imigrantes expulsos como mercadoria, as palavras de ódio ditas, já sem pudor nenhum, contra ciganos, contra as mulheres, seja qual for a sua etnia, a ascensão da extrema-direita. E lembramo-nos da banalidade do mal, dos homens em tempos sombrios, dos títulos e das frases da grande filósofa política Hannah Arendt, que fugiu ao holocausto.

“Fast thinking” para a alma

Um dos livros mais marcantes de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal, publicado em 1963, é um conjunto de cinco artigos que a filósofa escreveu para a revista New Yorker, acompanhando o julgamento de Adolf Eichmann, um tenente-coronel nazi que acabaria capturado pela Mossad e julgado em Jerusalém.

O mais arrepiante do relato de Arendt é que Eichmann apresentou-se como um funcionário público obediente, que se limitou a cumprir ordens, um burocrata. Não o esperado psicopata sanguinário e cruel nazi. Para a filósofa, essa era a “banalidade do mal”, só possível mediante a cumplicidade (ou indiferença) de milhares de pessoas “normais”. Mas como? Porque, escreveu a filósofa, “o mal advém da incapacidade de pensar”.

Friedrich Nietzsche

“Deus está morto. E nós matámo-lo”

O grande pensador das frases sonantes, Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) tem tudo para ser uma estrela na era das redes sociais. Um domínio de metáforas e ironias em frases cortantes anuncia-nos uma perda de sentido na vida através da afirmação bombástica de que “Deus está morto”. Do fim dos valores, do desamparo e da desesperança, num niilismo que cola bem com este século XXI, emerge a figura do “Übermensch”, o super-homem em tudo formidável, que cria a sua própria ética, num caminho de autossuperação da própria condição humana.

Tristemente, após a morte do filósofo, a sua irmã Elisabeth Forster-Nietzsche deturpou os seus escritos. Antissemita e defensora da raça ariana pura, Elisabeth dedicou-se a divulgar a obra do irmão sob a lente do racismo e, já nos anos 30, do nazismo. De uma forma simplista, era como se o Übermensch representasse uma raça superior.

Hoje em dia, o pensamento de Friedrich Nietzsche tenta ser captado tanto pela esquerda como pela direita. Porque se uns anseiam pela mão de ferro de um super-homem, os outros não se esquecem de que, no final das contas, Deus está morto.

“Aquele que luta contra monstros deve tomar cuidado para não se tornar um monstro. Quando se olha longamente para um abismo, o abismo também nos olha de volta”

“Nos indivíduos, a insanidade é rara; mas nos grupos, partidos, nações e épocas, é a regra”

“Deus está morto. Deus continua morto. E nós matámo-lo. Como nos consolaremos, nós, os assassinos de todos os assassinos?

“No final das contas, é o desejo, não o desejado, que amamos”

Este medo do “mal que está dentro de nós”, pessoas comuns, encontra paralelismo com os tempos que vivemos e com a gritaria a que assistimos nas redes sociais. Não são os psicopatas que andam a mandar os imigrantes para a sua terra, com palavras de ódio; é o vizinho do lado.

Muitas das frases soltas de Hannah Arendt que encontramos na internet não foram escritas assim. Não é que deturpem o seu pensamento, mas condensam-no, cosem ideias recolhidas em obras diferentes, simplificam os conceitos para caberem no tamanho de um tweet. Ou seja, para as tornar atrativas o suficiente de forma a serem lidas em dois segundos antes do próximo scroll.

É o caso da muito partilhada “Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança.” A citação completa está na obra As Origens do Totalitarismo (Homens em Tempos Sombrios é outro livro) e diz assim: “Talvez nada distinga as massas modernas tão radicalmente daquelas dos séculos anteriores como a perda da fé no juízo final: os piores perderam o medo e os melhores perderam a esperança.” E ainda assim, completa, não chega, é uma frase fora do contexto e seria aconselhável ler toda a obra.

Gabor Maté

“O silêncio não é neutralidade”

Nascido na Hungria em 1944, Gabor Maté tinha 11 meses quando a mãe o entregou a um estranho, que o levaria para ser cuidado pela sua tia. A mãe achava que ele não aguentaria as duras condições de vida do gueto judaico em Budapeste. Ser “abandonado” pela mãe é uma ferida impossível de sarar? “Trauma”, diz o médico e autor best-seller húngaro-canadiano, “não é o que acontece connosco; é o que acontece dentro de nós como resultado do que aconteceu connosco. Não é a pancada na cabeça, mas a contusão com que eu fico.”

Autor de O Mito do Normal ou de Quando o Corpo Diz Não, Gabor Maté recusa a separação entre corpo e mente, na área da saúde, e dedicou-se a explicar a forma como os nossos bloqueios mentais afetam a nossa saúde física, desde logo através da ligação comprovada entre stresse, ansiedade e inflamação. Tem também um extenso trabalho sobre a adição, retirando-lhe a capa negativa de cair na tentação do vício, e mostrando a verdadeira face dos comportamentos aditivos: a dor. Gabor Maté é uma estrela das redes sociais, também pelas palestras que dá sobre trauma e cura. Uma das suas frases que dá o título a este texto diz:

“O silêncio não é neutralidade. Em contextos de trauma, é traição.”

“Convicções fortes não sinalizam necessariamente uma identidade poderosa: frequentemente é o contrário. Crenças intensamente arraigadas podem não ser mais do que um esforço inconsciente de uma pessoa para construir uma identidade que preencha o que, por baixo, é vivenciado como um vácuo”

“Não pergunte por que o vício existe, pergunte por que a dor existe. Para entender a dor das pessoas, é preciso entender a vida delas. O vício é uma resposta normal ao trauma”

“As pessoas acham muito mais fácil projetar aquela parte de que não gostam em si mesmas numa determinada população desprezada. O que elas estão, na verdade, a desprezar é uma parte de si mesmas que não ousam olhar”

“Independente de serem verdadeiras ou falsas, estão a utilizar-se as frases dos pensadores apenas como um produto de consumo que serve para o efeito de valorização instantânea de um discurso. Há uma espécie de validação pelo facto de estarmos a invocar o nome de alguém que se sabe, de uma forma muito difusa, ser uma grande pensadora. E, portanto, se eu consigo introduzir uma menção à Hannah Arendt, ou a qualquer outra, no meu discurso, de repente, sem ter de me esforçar por argumentar mais, tenho o ponto demonstrado. E isto não vale apenas para as redes sociais, mas também acontece em discursos académicos, na opinião jornalística, etc.”, continua André Barata, que fala de “uma espécie de pensadores ‘prêt-à-porter’, qualquer coisa que a gente usa e descarta como uma colher de plástico”.

Vamos ali às prateleiras dos supermercados que são os sites de citações e consumimos um pensamento como quem come um pacote de batatas fritas. “Fast thinking” para a alma.

A fome da narrativa

E isto não podia ser mais contrário à filosofia, realça Carlos Café, professor de Filosofia no Ensino Secundário, finalista do Global Teacher Prize Portugal 2023 e divulgador da disciplina. “O mais importante na filosofia é a dúvida e a pergunta que provoca desassossego. Já as pessoas procuram nas citações certezas e respostas que as tranquilizam nas suas dúvidas, como um bálsamo. A filosofia valoriza as ideias novas que nos fazem pensar; estes leitores procuram os pensamentos que se adequam ao que eles pensam”, afirma.

Ou seja, procura-se “uma espécie de déjà-vu filosófico: a sensação reconfortante de que aquele filósofo famoso está, afinal, a defender o que eles próprios sempre defenderam. Que até parece que aquelas palavras foram ditas e escritas mesmo a pensar em si. Creio que o sucesso do estoicismo reside também aí”, acrescenta.

Hannah Arendt

“Não há pensamentos perigosos…”

Hannah Arendt (1906-1975) é uma das mais influentes pensadoras do século XX na área da filosofia política. Nascida na Alemanha, com origens judaicas, foi presa pelos nazis, fugiu para Paris, voltou a ser presa na França ocupada e levada para um campo de concentração, acabando por escapar para os Estados Unidos da América, onde viveu quase 20 anos como refugiada apátrida, depois de ter passado por Lisboa.

Os seus livros mais conhecidos são Eichmann em Jerusalém (1963), onde desenvolve o conceito de “banalidade do mal”, Homens em Tempos Sombrios (1968) e As Origens do Totalitarismo (1951), com a sua extraordinária frase: “Os piores perderam o medo e os melhores perderam a esperança.” As suas citações mais conhecidas são, regra geral, falsas. Não deturpam as suas ideias, mas agrupam-nas e descontextualizam-nas em frases sonantes que ela nunca disse daquela maneira. Ainda assim, o pensamento de Hannah Arendt assenta que nem uma luva nestes anos 20 do século XXI.

“No momento em que não tivermos uma imprensa livre, tudo pode acontecer. O que torna possível que uma ditadura totalitária ou qualquer outra ditadura governe é as pessoas não estarem informadas”

“Não existem pensamentos perigosos pela simples razão de que pensar em si é uma tarefa muito perigosa”

“A triste verdade é que a maior parte do mal é feita por pessoas que nunca decidem ser boas ou más”

“O revolucionário mais radical tornará-se-á conservador no dia a seguir à revolução”

“O mal nunca pode ser radical, só pode ser extremo, pois não possui profundidade (…) O mal advém da incapacidade de pensar”

E mais: “Isto pode levar à convicção de que todos somos filósofos ou, no mínimo, de que todos poderemos sê-lo. Esta ideia, além de falsa, é perigosa, porque conduz à relativização de todas as opiniões. Pelo facto de todos termos direito à nossa opinião, daí não se segue que todas as opiniões valham o mesmo. Ora, a filosofia é exatamente o contrário: nem todas as opiniões valem o mesmo e nem todas estão acertadas, a começar provavelmente pelas nossas.”

Como assim, nós não temos sempre razão? Perdoe-me o leitor, mas tantas vezes é esta a postura atual dos discursos no espaço público (e incluímos aqui redes sociais, comentários nas televisões, debates na Assembleia da República, tertúlias académicas ou conversas na tasca). André Barata chama-lhe a “absolutização das referências”.

“Vivemos num contexto de perda de narrativas, digamos assim, narrativas que conferem o sentido da nossa ação e do nosso estar no mundo. Era esse o papel das ideologias ou das religiões, formas pelas quais se conduzia a vida no quadro de uma narrativa que ligava tudo. A perda de narrativa cria uma espécie de fome. Vai-se então à procura das referências e das orientações. Só que estas, colocadas assim, sem contexto nem sentido mais amplo, ou seja, relativo, tornam-se absolutas”, explica o filósofo.

Lúcio Aneu Séneca

“Até viver é um ato de coragem”

Contemporâneo de Jesus Cristo, Lúcio Aneu Séneca (4 a.C.-65) é um dos mais conhecidos pensadores estoicos, pregando a vida simples e despojada, a virtude, a coragem e a razão. A corrente filosófica do estoicismo transformou-se numa grande tendência dos tempos atuais, não só nas redes sociais, mas também nas prateleiras das livrarias, cheias de livros sobre como viver uma “vida estoica”. Por conter ensinamentos muito específicos sobre como alcançar a felicidade, o estoicismo brilha entre as correntes de autoajuda dos tempos modernos. Aceitar o que a vida nos traz, focando-nos apenas naquilo que podemos controlar (as nossas ações e não as ações dos outros), parece algo básico para uma existência menos angustiada, mas é das coisas mais difíceis de alcançar.

Séneca teve uma vida tumultuada como orador e senador em Roma. Exilado na Córsega pelo imperador Cláudio, desenvolveu aí as suas teorias sobre a renúncia de bens materiais, embora se diga que tenha sido um homem abastado antes de ter caído em desgraça. Foi mais tarde precetor de Nero e depois conselheiro do imperador. Acusado de conspiração contra Nero, este ordena-lhe que se suicide, ordem que Séneca cumpriu.

“Há mais coisas, Lucílio, que podem assustar-nos do que esmagar-nos. Sofremos mais frequentemente na imaginação do que na realidade”

“A vida é muito curta e ansiosa para aqueles que esquecem o passado, negligenciam o presente e temem o futuro”

“As necessidades do corpo são poucas: livrar-se do frio, acabar com a fome e a sede com conforto; se desejamos algo mais, estamos a esforçar-nos para servir aos nossos vícios, não às nossas necessidades”

“Às vezes, até viver é um ato de coragem”

Até porque é justamente assim que “conversamos” nas redes sociais. “Uma conversa não é o início de uma conversa, assistimos e participamos em discussões em que as posições são postas de um ponto de vista sempre incondicional, não há forma de relativizar, tudo é absoluto, é simplesmente a contraposição de posições a outras posições”, continua André Barata. Não nos ouvimos, estamos sôfregos para fazer valer a nossa opinião e nada como rematar a conversa com uma frase de um grande pensador, “figura de autoridade”, para matar qualquer adversário.

Em contraste absoluto com os “mestres”. “Apenas alguns exemplos. Sócrates defendia que ‘só sei que nada sei’. Platão submetia as suas ideias a um vigoroso contraditório e terminava alguns diálogos, designados de ‘aporéticos’, admitindo que não tinha resolvido o problema filosófico a contento e que talvez estivesse errado. Descartes correspondia-se com os seus pares, a quem pedia que apontassem as falhas das suas teorias. Bastaria uma rápida visita pelas redes sociais para verificarmos que a maior parte das pessoas que se envolve num debate de ideias pretende ‘vencer’ o debate e impor as suas ideias e reage muito mal (muitas vezes, com agressividade ou insultos) se lhe provam que está errada”, nota Carlos Café.

“Aguenta e não chora”

Se os estoicos vissem isto!

Às vezes há adaptações impossíveis à vida dos tempos atuais, mas nem por isso – ou justamente por isso – elas deixam de ser tão desejadas. É o caso da grande moda da corrente filosófica estoica, que corre não só pelas redes sociais como pelas prateleiras das livrarias, bem ao jeito das secções de autoajuda. Muito se escreve sobre os estoicos, apesar dos seus pensamentos terem mais de dois mil anos.

Zygmunt Bauman

“Sou visto, logo existo”

Sociólogo e filósofo polaco, Zygmunt Bauman (1925-2017) é um dos grandes teóricos da pós-modernidade, tendo desenvolvido o conceito de “modernidade líquida”, os tempos, nas décadas finais do século XX, em que as relações, sejam sociais ou económicas, se tornaram fugazes, fluidas, maleáveis, por oposição às relações sociais e pessoais sólidas e rígidas do período anterior. E agora? Estaremos em estado gasoso?

“(…) A versão atualizada do cogito de Descartes é “sou visto, logo existo” – e quanto mais pessoas me veem, mais eu existo…”

“As relações são cada vez mais vistas através do prisma das promessas e expectativas, como uma espécie de produto para os consumidores”

“O verdadeiro diálogo não consiste em falar com pessoas que acreditam nas mesmas coisas que nós”

“Há uma grande sabedoria de vida na filosofia dos estoicos. Mas viver de acordo com esses pensamentos é bem mais difícil agora do que na Grécia Antiga. Porque um dos aspetos fundamentais é a ideia de que devemos ter serenidade para distinguirmos, entre o que vai acontecendo nas nossas vidas, aquilo que depende de nós daquilo que não depende. Esse facto leva a que os estoicos tenham ficado conhecidos não só pelo que defendiam, mas pelo que faziam, nomeadamente a forma de lidar com o que lhes causava mais sofrimento”, refere Carlos Café.

Terá sido Zenão, um rico mercador da cidade de Cítio, no Chipre, o fundador da escola filosófica estoica, em Atenas, no século III antes de Cristo, após sobreviver a um naufrágio em que perdeu tudo o que tinha. O caminho para a felicidade é extremo: simplificando, há que dominar as emoções, dar primazia à razão, comportar-se de forma virtuosa, adaptar os desejos à realidade e renunciar ao ímpeto de tudo controlar. É a “calma no meio do caos”, um “sustine et abstine” (suporta e abstém-te, máxima atribuída a Epicteto) ou, em bom português, “aguenta e não chora”.

James Baldwin

“O amor é uma guerra”

Escritor, poeta, ensaísta, dramaturgo e ativista dos direitos civis, James Baldwin (1924-1987) tornou-se um ícone do pensamento sobre o amor e o ódio na sociedade. E são lindíssimas as suas frases, em que explica que “o amor não começa e acaba da maneira como pensamos”. Porque “o amor é uma batalha, o amor é uma guerra, o amor é um amadurecimento”. Outra frase, escrita num ensaio publicado pelo New York Times, ficou para a posteridade: “Nem tudo o que é enfrentado pode ser mudado, mas nada pode ser mudado até que seja enfrentado.”

“O amor nunca foi um movimento popular. E ninguém jamais quis, de verdade, ser livre. O mundo mantém-se unido pelo amor e pela paixão de pouquíssimas pessoas. Caso contrário, é claro que podemos desesperar”

“Imagino que uma das razões pelas quais as pessoas se apegam tão teimosamente ao ódio é porque elas sentem que, quando o ódio acabar, serão forçadas a lidar com a dor”

Como é que esta filosofia se tornou tão popular neste século XXI? Num artigo da VISÃO, publicado em 2021, a psicoterapeuta Gabriela Alonso notava que “aceitar a ordem natural das coisas e adaptar os desejos à realidade envolvente é de grande utilidade para pessoas extremamente ansiosas. Mas uma das consequências nefastas pode ser o conformismo”.

Talvez a resposta esteja na tentativa de controlar as muitas ansiedades à solta nestes anos 20. Mas há aspetos ligados à forma que também contribuem, acrescenta Carlos Café. “Além desta espécie de refúgio na espiritualidade, há razões de caráter formal. Por exemplo, de Epicteto chegaram-nos fragmentos. O Marco Aurélio escrevia também pequenos fragmentos. E parecem que foram feitos para o Instagram. Aquilo é perfeito. Porque são muitas vezes frases iluminadas, de grande valor. Essas frases curtas e sábias funcionam como um ‘pin’ que se exibe, não na lapela, mas no nosso mural do Facebook ou página do Instagram. É uma ilusão pensar que esta moda traduz um crescente interesse na filosofia”.

E faz mal?

E porque não, questiona Nuno Miguel Proença, investigador da Universidade Nova de Lisboa na área de Humanidades e História da Cultura? Não poderão ser as citações “o ponto de partida de uma investigação ou de uma interrogação individual (ou coletiva)”? “No entanto”, sublinha, “para quem quer realmente aprofundar a sua pesquisa, é bom tentar saber se as frases foram mesmo escritas ou ditas por aquelas e aqueles a quem elas são atribuídas”.

O facto é que se o pensamento de alguém tem valor para outras pessoas não será porque “de uma maneira ou de outra, está a falar-lhes delas próprias, daquilo pelo qual se podem identificar com outras? O pensamento dos ‘pensadores’ é suscetível de trazer sentido às circunstâncias, às relações, às possibilidades de vida partilhada com outros, por meio de símbolos, de instituições, de práticas culturais comuns. Podem também criar possibilidades para a invenção e a imaginação de outras formas de vida, no sentido individual ou coletivo. As artes, as ciências, as técnicas (e até as revoluções) tiveram relações com o pensamento filosófico…!”, afirma Nuno Miguel Proença.

José Tolentino de Mendonça

“Passamos pelas coisas sem as habitar…”

O cardeal português, teólogo, poeta e filósofo, nasceu na Madeira em 1965 e vive no Vaticano desde 2018. Com vasta obra publicada e mais de uma dezena de prémios (entre os quais o Prémio Pessoa 2023 e o Prémio Eduardo Lourenço 2025), é amplamente citado nas redes sociais, muitas vezes contra as próprias redes sociais, aquele lugar onde, nas palavras do próprio, “ficamos mais próximos dos desconhecidos e mais desconhecidos dos que nos são próximos”.

A sua linguagem é a do amor, sempre, condição da existência, pois “viver não é apenas agarrar e libertar o ar, mecanicamente”. Estes seres humanos que nascem no mais completo desamparo, pois sem o cuidado de alguém não sobreviveriam, têm no amor o “verdadeiro despertador dos sentidos” e da esperança. Uma casa. Se ao menos não passássemos “pelas coisas sem as habitar”!

“À força de estarmos conectados, numa disponibilidade indistinta e sem horário, acabamos por nos desconectar das pessoas a quem mais queremos. O resultado é este: ficamos mais próximos dos desconhecidos e mais desconhecidos dos que nos são próximos”

“Passamos pelas coisas sem as habitar, falamos com os outros sem os ouvir, juntamos informação que nunca chegamos a aprofundar. Tudo transita num galope ruidoso, veemente e efémero. Na verdade, a velocidade com que vivemos impede-nos de viver”

“Sem esperança só notamos a pedra, o carácter tosco, o obstáculo fatigante e irresolúvel”

Numa perspetiva mais esperançosa – e tendo em conta que “o pensamento também vive das mediações culturais, da relação interpretativa com aquilo que exprime o pensamento alheio e no qual se encontra expressa a potencialidade de um fundo de vida comum, através das épocas e das circunstâncias históricas, graças ao qual o que outros escreveram faz sentido para nós, mesmo que o tenham escrito há três mil anos, noutro continente” – poderemos até achar que “o tempo em que vivemos seja mais livre e que, por isso, as pessoas possam procurar respostas às suas perguntas por meio de textos e de práticas oriundas de registos e de tradições muito diversas (filosóficos, literários, poéticos, artísticos, religiosos, espirituais, científicos, psicanalíticos,  etc.)”, continua o investigador.

O que pode complicar essa busca, nota Isa Silvestre, psicóloga clínica e doutoranda em neurociências, é a simplificação. “No que diz respeito a Carl Jung, por exemplo, na questão do inconsciente, do trabalho de compreender aquilo que não é de acesso fácil para promover o autoconhecimento e a mudança, e no fundo lidar com a dor, não serão duas ou três frases lidas em scroll a fazer a diferença. Muitas vezes são precisos anos de psicoterapia e psicanálise e também com respeito pelo ritmo da própria pessoa que, numa determinada fase da vida, pode não estar preparada para aceder àquela memória”, realça.

Mas virá mal ao mundo fazer um scroll de frases de Jung? O mal não está nas frases, adianta Isa Silvestre, mas na forma como tentamos evitar a dor. “Temos de passar pela dor. O que nos torna resilientes não é evitar a dor, mas lidar com ela. É uma fuga que noto muito também na prática clínica. Mas as emoções negativas são tão válidas como as positivas.”

Clarice Lispector

“Liberdade é pouco”

Se acreditássemos em tudo o que lemos na internet, Clarice Lispector (1920-1977) teria dito tudo e mais alguma coisa, incluindo ditados populares como “quem conta um conto, acrescenta um ponto”, muitas vezes de autoria erradamente atribuída à escritora e jornalista brasileira. Clarice é uma estrela do Instagram tornada influencer, ela que morreu bem antes da criação das redes sociais. Um pouco como Machado de Assis ou Guimarães Rosa.

O que se procura nas frases retiradas dos escritos de Clarice Lispector é a ideia de uma mulher “empoderada”, que sabe o que quer e diz sem medo: “Liberdade é pouco, o que eu desejo ainda não tem nome.” Clarice foi, na verdade, maior do que o seu tempo. Nascida na Ucrânia, filha de judeus russos, emigrou ainda bebé para o Brasil e formou-se em Direito, no Rio de Janeiro, numa época em que pouquíssimas mulheres conseguiam aceder aos estudos universitários.

Além das frases, encontramos muitos memes com Clarice Lispector na internet, alguns divertidíssimos, justamente a gozar com tanta frase falsa. Como aquele em que ela “diz”: “Não tenho mais tempo para nada. O Facebook me consome muito.”

“Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso – nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”

“Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto, se deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido. O que eu era antes, não me era bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro.”

“Liberdade é pouco, o que eu desejo ainda não tem nome”

​Carl Jung é um mundo e não há forma de o simplificar. Ele não é apenas o psicanalista do inconsciente coletivo, o homem dos arquétipos. “Jung também foi um pensador das sexualidades e dos mitos, presentes nos imaginários sociais, e o pensador de dimensões coletivas do inconsciente (onde se encontra a famosa ‘sombra’ constituída por elementos próprios que não são aceites nem admitidos e que, por isso, são projetados nos outros – nos estrangeiros, nos ‘de fora’, nos ‘inimigos’, nas ‘ameaças’) que muito influenciou Hollywood. Mas Jung teve também uma relação importante com a Física quântica, e com as mudanças epistemológicas que ela trouxe…”, enumera Nuno Miguel Proença.

O psiquiatra suíço foi ainda “alguém que cultivou um interesse pelas espiritualidades e as teologias ‘místicas’, que privilegiam a relação com o divino sem a mediação social e institucional das religiões”. Além de ter analisado a conexão entre práticas orientais, como o ioga e a meditação, com a psicologia analítica ocidental. Enfim, Jung não é um mundo; são vários. Vastos como a psique humana. Ou como os algoritmos das redes sociais.

O fator ideologia

E por falar em algoritmos, serão inocentes as escolhas dos pensadores que nos aparecem nas redes?

“Estas referências não aparecem de uma forma neutra. Não olhamos para a história da filosofia e dizemos: ‘Olha, agora vou buscar isto’. Há pensadores proscritos e há outros que estão ali sempre na linha da frente. O problema da ideologia não é ser ideologia. O problema é que ela está mascarada, naturalizada, ou seja, é muito ideológica a disponibilidade de referências que nos aparecem. A Hannah Arendt, muito bem, serve para o efeito do tempo em que vivemos. Mas já ninguém vai buscar o Marx. Ou não vamos buscar pensadores de outras latitudes… O pensamento é um dos lugares mais coloniais que há”, diz André Barata.

Noutro contexto, falando de diálogos nas ciências, na medicina ou na filosofia entre tradições e investigações “ocidentais” e “orientais”, Nuno Miguel Proença é lacónico: “A racionalidade não é um privilégio europeu.”

Agostinho da Silva

“O Homem nasce para criar”

O filósofo e poeta Agostinho da Silva (1906-1994) foi das mais geniais e controversas figuras do século XX português. Ele recupera, e reinterpreta, dois grandes mitos espirituais, a Idade do Espírito Santo e o Quinto Império, mas não numa visão de nacionalismo “bacoco”, antes numa perspetiva universalista, uma forma de redenção para nos libertarmos daquilo a que Agostinho da Silva chamava “os três dragões”. “O primeiro é o ideal de um produto bruto nacional sempre crescente e um sempre mais elevado nível de vida material. Neguemos tal ideal.” O segundo seria a informação baseada na bisbilhotice, pois “o modo de lutar é dizer a verdade, e somente a verdade”. Finalmente, “o pior deles todos: a nossa tendência de pertencer a grupos, de ter um partido político ou uma igreja que pense por nós, de consultar ou seguir professores e gurus, numa palavra, de engolir a vida como a criança chupa o leite do biberão”. A missão do ser humano, resumia-a Agostinho da Silva numa frase: “O Homem não nasce para trabalhar, nasce para criar, para ser o tal poeta à solta.”

“Toda a nossa vida gira em função do trabalho. Quando se pergunta a alguém o que é, nuncatemos a resposta: sou homem ou sou mulher.

Diz-se: sou engenheiro, eletricista, médico. Só se é gente em referência ao trabalho”

“O que é próprio do Homem na sua forma mais alta é superar o conceito de felicidade, tornar-se como que indiferente a ser ou não ser feliz e ver até o que pode vir do obstáculo exatamente como melhor meio para que possa desferir voo”

“A grande diferença entre o inteligente e o estúpido – entre o chamado inteligente e o chamado estúpido – é que o primeiro se esforça”

Nestes filtros que nos empurram a navegação online, encontramos o grande filósofo tornado popular, Friedrich Nietzsche, “servindo” as mais contraditórias ideologias (ver caixa). Num diálogo produtivo? Nem tanto. E voltamos ao início, a esta rigidez das conversas, absoluta e confrontacional, em que somos uma “espécie de colecionadores de citações de efeito, o que, no fundo, é uma condição muito solitária”, nas palavras de André Barata.

E este texto termina sem uma citação? Perdoe-me o leitor, mas escolho uma frase que considero adequada ao nosso mundo, muito popular nas redes sociais, e que aparece quando, na consola Nintendo, queremos sair de um jogo e fazemos “quit screen”: “Everything not saved will be lost” (Tudo o que não for salvo, será perdido).

Bento de Espinosa

“A paz é uma virtude”

Ah, se Bento de Espinosa (1632-1677) visse agora que, em todo o lado, lhe chamam Baruch Spinoza, ele que queria tanto usar o nome que os seus pais portugueses, judeus sefarditas refugiados nos Países Baixos, lhe deram… Só não sabemos se ficaria contente de se ver transformado numa “superstar” com, nestes anos 20, um sem-número de novas traduções e livros sobre ele. 

O que nos diz Espinosa desde o seu século da razão, ele que identificava Deus com a harmonia da Natureza (uma e a mesma coisa) e acabou sendo considerado ateu e excomungado pela comunidade judaica de Amesterdão? Ora, se “tudo o que existe, existe em Deus”, Espinosa via interligações entre corpo e mente, ser humano e Universo, além de uma divindade (Deus) intrínseca à natureza e à existência. Com ele, Deus deixou de ser uma entidade que nos olha lá do alto. Na sua obra principal, Ética, considerada um pilar da filosofia moderna, expõe o seu conceito de substância una, Deus e o mundo como um só, e uma forma de viver guiada pela razão, pela liberdade de pensamento, contra a superstição e o fanatismo.

“Todas as coisas excelentes são tão difíceis quanto raras”

“Os governos mais tirânicos são aqueles que fazem das opiniões crimes, pois todos têm um direito inalienável sobre os seus pensamentos (…) Para evitar tais males num Estado, não há maneira mais segura do que fazer com que a piedade e a religião consistam apenas em atos, isto é, na prática da justiça e da caridade, deixando livres os julgamentos de todos em outros aspetos”

“A emoção, que é sofrimento, deixa de ser sofrimento assim que formamos uma imagem clara e precisa dela”

“Nada no Universo é contingente, mas todas as coisas são condicionadas a existir e a operar de uma maneira particular pela necessidade da natureza divina”

Maya Angelou

“Ainda assim eu levanto-me”

Muito conhecida pelo belíssimo poema Still I Rise, Maya Angelou (1928-2014), escritora, poetisa e ativista, trabalhou com Martin Luther King e Malcolm X. Foi atriz, bailarina e cantora, mas foi na escrita que se tornou figura maior das artes norte-americanas, com as lições de vida que nos legou nas suas autobiografias. O racismo, a condição da mulher, o amor e a família são temas centrais na sua obra. Tal como a resiliência de Still I Rise: “Pode atirar em mim com as suas palavras/ cortar-me com os seus olhos/ matar-me com o seu ódio/ mas ainda assim, como o ar, eu me levantarei.”

“Não há maior agonia do que carregar uma história não contada dentro de nós”

“A maioria das pessoas não cresce. É muito difícil. O que acontece é que a maioria das pessoas envelhece. Elas honram os seus cartões de crédito, encontram lugares de estacionamento, casam-se, têm a coragem de ter filhos, mas não crescem, envelhecem. Crescer custa os olhos da cara. Significa assumir a responsabilidade pelo tempo que se toma, pelo espaço que se ocupa. É um negócio sério. E descobrimos o que nos custa amar e perder, ousar e falhar…”

Byung-Chul Han

“Depressão é fadiga criativa”

Byung-Chul Han, filósofo e ensaísta sul-coreano nascido em 1959, traduz em mais de 20 obras os males da sociedade do século XXI. Este tempo em que os agentes patológicos já não são tanto os vírus e as bactérias, mas os “neurónios”, que nos enchem de doenças como o burnout, a depressão, a personalidade borderline, a hiperatividade e o défice de atenção. “Não são infeções, são enfartes”, escreve. É o tempo do trabalho pelo mérito, em que nos controlamos a nós próprios, o tempo da positividade tóxica em que temos medo de amar, porque às vezes também dói, este triste tempo em que nunca nos podemos aborrecer.

“A sociedade do trabalho e da realização não é uma sociedade livre (…) Cada um é, simultaneamente, prisioneiro e guarda, vítima e perpetrador. Cada um explora a si mesmo. Isso significa que a exploração é possível mesmo sem dominação”

“Hoje, o amor está a ser positivado como uma fórmula para o prazer (…) Apaixonar-se já seria negativo demais. No entanto, é precisamente essa negatividade que constitui o amor”

Slavoj Žižek

“A felicidade é para os oportunistas”

Slavoj Žižek, nascido em 1949 na Eslovénia, é tido como um filósofo polémico. Mas isso é dizer pouco – o homem é explosivo. Ele próprio se autointitula um “radical político” e vai beber influências a Hegel e Jacques Lacan, entre outros. Tido como pós-marxista, diz antes defender um novo comunitarismo globalista em vez do velho comunismo. A sua forma provocadora de falar e escrever deixa poucas coisas de pé: do capitalismo ao politicamente correto, Žižek leva tudo à frente.

E, no entanto, quantas vezes lhe citamos as frases tão acertadas sobre a época que vivemos! Como esta: “Vejam o nosso mundo hoje. Temos pelo menos três megaproblemas: a guerra nuclear, a crise ecológica e a Inteligência Artificial. Falando em inteligência,  têm sido realizados estudos para medir periodicamente o quociente de inteligência. Eles deixam claro, de forma inequívoca, que, desde 2010, a maior parte da Humanidade se tornou cada vez mais estúpida, literalmente. Dependemos tanto da tecnologia digital que simplesmente pensamos e raciocinamos cada vez menos.” Afinal, temos um quarto megaproblema pela frente…

“A felicidade nunca foi importante. O que nos faz felizes não é conseguir o que queremos, mas sonhar com isso. Felicidade é para oportunistas. Então, eu acho que a única vida de profunda satisfação é uma vida de eterna luta, especialmente consigo mesmo”

“Eu desprezo o tipo de livro que te ensina como viver, como te fazer feliz. Os filósofos não têm boas notícias para vocês neste nível! Acredito que o primeiro dever da filosofia é fazer as pessoas entenderem a merda em que estão metidas”

“A ideologia é forte exatamente porque já não é vivenciada como ideologia. Sentimo-nos livres porque nos falta a linguagem para articular a nossa falta de liberdade”

Segundo uma nota do gabinete do ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, na sequência destas alteração, os postos consulares portugueses ou os centros de pedidos de visto dos prestadores de serviços externos (VFS Global/BLS International/TLScontact) não poderão aceitar pedidos de visto para procura de trabalho.

“Em lugar do visto para procura de trabalho, passará a existir o visto para procura de trabalho qualificado”, mas os pedidos de visto para procura de trabalho qualificado apenas poderão ser apresentados quando “a nova tipologia for objeto da necessária regulamentação, em linha com o disposto na nova Lei de Estrangeiros”.

A Lei n.º 61/2025, de 22 de outubro de 2025, que aprovou a Lei de Estrangeiros e inclui estas alterações, foi publicada esta quinta-feira em Diário da República.

A renúncia acontece na sequência das conclusões do relatório preliminar do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF), divulgado na segunda-feira, relativamente à tragédia com o elevador da Glória, que ocorreu no dia 3 de setembro e provocou 16 mortos e duas dezenas de feridos, entre portugueses e estrangeiros de várias nacionalidades.

Em comunicado, a Câmara Municipal de Lisboa informou que o presidente da autarquia, Carlos Moedas (PSD), “compreende e aceita os motivos apresentados” no pedido de renúncia do conselho de administração da Carris, “considerando fundamental a nomeação de uma nova administração, que será apresentada oportunamente, para um novo mandato”.

Circula há quase um ano uma petição para tornar o racismo crime, da autoria de um coletivo de luta contra todas as formas de discriminação. A primeira perplexidade para um jurista é que uma ofensa racista, quer dizer a manifestação de um comportamento que ofende outro na sua honra e consideração pessoal, é crime, previsto e punido no art. 181.º do Código Penal. Se dúvidas houver, há condenações em tribunal por chamar “branquelas” a outrem ao abrigo desta norma penal.

A perplexidade adensa-se quando se lê o texto da petição e percebe-se o porquê de se pedir a criminalização da discriminação racial.

A atividade anti-racista deve ser luta contra comportamentos racistas. Friso luta contra comportamentos racistas. Não é luta contra os alegados racistas. Lutar contra os racistas é exercer o mesmo mal. Lutar contra os comportamentos racistas é correção de comportamentos que são ofensivos de bens fundamentais de outro e da sociedade, ou do estádio da sociedade em que nos encontramos. Convoco aqui a evolução do direito penal – havia dúvidas se as penas criminais eram devidas pela personalidade criminosa ou pelo comportamento criminoso, que a constituição de 1974 esclareceu.

Não é neste propósito que o texto da petição causa perplexidade. A petição é conforme a este objeto, a este fim de punir o comportamento racista como comportamento que prejudica bens fundamentais de alguém em concreto e, ao mesmo tempo, da sociedade em que estamos. A perplexidade é porque têm razão. É preciso incluir a criminalização do racismo como crime e o facto de não estar é, no meu entender, das raras experiências nesta sociedade de inconstitucionalidade por omissão.

Vejamos: o código penal vigente compreende o crime de injúria, que prevê as ofensas à honra e consideração. Todavia, a Lei 93/2017 despromove a contra-ordenação as ofensas à honra e consideração que constituam por qualquer forma discriminação em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem.

Para os mais experimentados com o direito penal surge a conclusão de que se o comportamento é punido como contraordenação, não pode ser punido como crime.

Poderíamos perguntar o porquê de um comportamento discriminatório não ser crime e poderíamos ainda perguntarmo-nos o porquê de chamar “branquelas” a alguém ser ofensa à honra e consideração com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias, enquanto dizer “pretalhada” constitui contraordenação punível com coima graduada entre uma e dez vezes o valor do indexante dos apoios sociais, sem prejuízo da eventual responsabilidade civil.

Note-se que a sanção penal é excluída se o comportamento é punido a nível de contraordenação, a não ser que se interprete com pinças e risco de ser revisto que com a contraordenação é punida uma parte do espectro dos efeitos do comportamento, o que deixa espaço para a punição penal do mesmo comportamento.


Poderíamos afirmar: tudo bem! Está protegido o indivíduo e está protegida a sociedade de comportamentos racistas quer a nível de infrações leves que são punidas como contraordenação com coima, quer a nível de infrações mais graves que são punidas como crime e com prisão – poderíamos muito bem afirmar isso de que está tudo bem com este contexto jurídico atual… se não nos interessasse a realidade.

Na realidade, chamar “branquelas” é crime, enquanto dizer “pretalhada” ou “ciganada” é contraordenação. Porque um ofende valores fundamentais da sociedade e o outro nem tanto.

Há muito que defendo que a falta de sensibilidade dos atores judiciários para o crime racista resulta de muitos fatores que devem ser colmatados com formação específica e defendo-o em especial para os procuradores e para os juízes. Não é que os advogados devam estar isentos dessa formação. A conclusão empírica é de que é diferente o nível de responsabilidade e, portanto, de necessidade e de urgência. E ainda porque posso observar que os advogados têm o dever de sentir as dores dos seus clientes e mais facilmente fazem essa formação contínua na vida prática a defender atualizadamente um lado e o outro da questão. Os magistrados, muitos, não fazem essa formação na vida prática, senão da perspetiva de quem lê objetivas alegações às quais devem ser imparciais e perante as quais devem fazer prevalecer aquelas a que fundamentadamente podem dar mais valor.

A falta de sensibilidade para o tema nota-se ainda mais quando nos vemos, enquanto portugueses, vistos por terceiros. Vários historiadores, nacionais e internacionais, apontam o território da Península Ibérica como aquele em que se vê, pela primeira vez, as pessoas com o apoio da força coativa e coerciva a discriminar entre iguais.

Percebo que cause perplexidade, pois quando aprendemos sobre os cristãos-novos não o colocamos nestes termos, mas muitos olhares estrangeiros colocam-no assim, e muitos nacionais também. E vejamos bem essa qualificação é um fato que tem as nossas medidas e que nos serve, a nós portugueses, muito bem quando olhamos e queremos ver esse momento da História. Apesar do caráter indelével e inefável do batismo, o sacramento não tinha o mesmo efeito se o sujeito tivesse sido judeu, ou se tivesse uma gota de sangue judeu.

Antes de Portugal e Espanha alcançarem, pela via marítima, o que chamaram de “novos mundos”, em concreto as distantes américas e a africa ocidental, que, por vários mitos e dificuldades quase intransponíveis arábes-militares ou de terreno não era atravessada desde o Oriente, já aqui, neste território, se distinguia entre os aparentemente iguais quem deveria ser inferiorizado ou perseguido por mal que vinha dos seus ascendentes, por mal que carregavam que lhes era herdado. Numa lógica de que alguns herdam só coisas boas e que outros só coisas más.

Note-se que antes da colonização africana, o negro não era discriminado por ser negro. Antes da colonização, o negro na europa não era sinal de ameaça. A Bíblia, entre outros livros antigos, não distingue os negros com o preconceito de que seriam inferiores. A Bíblia, gosto de realçá-lo, apesar dos debates nos vários momentos milenares desde o Antigo Testamento e dos dois milénios no Novo Testamento, ensina que desde o início viemos todos do mesmo Adão e da mesma Eva e todos, nas nossas diferenças, criados à imagem e semelhança de Deus. A discriminação racial foi um instrumento da colonização que resulta da aplicação da experiência já havida da Península Ibérica de distinguir aqueles que, apesar de cristãos, não eram verdadeiramente cristãos – eram cristãos à força ou cristãos para sobreviver e, portanto, não iguais aos outros cristãos, os verdadeiros.

A dimensão do comércio negreiro é o mais visível desse contacto da Península Ibérica com o continente africano, todavia, esse instrumento não era novidade na Península Ibérica, nem em África. Os árabes já escravizavam brancos e negros indiferentemente. No continente europeu, os brancos escravizavam-se desde há muito uns aos outros e os poucos negros eram vistos como diferentes mas não inferiores. Muitos dos negros nas trevas da Europa da Idade Média anterior ao Renascimento, apesar de poucos ou nenhum
negro obter o reconhecimento de sangue azul conducente à nobreza, ou verificar-se substancial exogenia conjugal com tal nobreza, eram respeitados ferreiros, comerciantes, lutadores, poetas, intelectuais, filósofos, entre outras funções, e não eram instrumentalizados por serem negros.

Apesar da dimensão do comércio negreiro, o mais marcante desse contacto da Península Ibérica com África é a eficaz redução do negro a menos que um igual no que à substância de pessoa diz respeito. Pois é à Península Ibérica que alguns atribuem significativamente a origem histórica desta eficácia.

Impressiona, por exemplo, conhecer a história da alheira de Mirandela, impressiona conhecer a semelhança entre os portugueses e os marroquinos. Impressiona ou causa perplexidade, porque nos passa despercebido. Do mesmo modo, passa-nos despercebido muito racismo. Impressiona ir a uma igreja em Barcelona e encontrar no templo cristão de rito apostólico romano santos negros, mesmo a Nossa Senhora e o seu Filho retratados como negros. Impressiona e deixa-nos perplexos porque em Portugal, aqui ao lado, não é assim. Impressiona que em Espanha, desde, pelo menos, a Lei Orgânica 1/2015 não haja dúvidas de que o comportamento racista com efeito individual é crime e que aqui em Portugal é um emaranhado que pune “branquelas” como crime e “ciganada” como contraordenação.

Por isso convido a ler a petição e a assinar, se se virem reconhecidos. Principalmente peço iluminação para que se debata com verdade, com conhecimento, com procedimento de respeito pela opinião contrária este tema do racismo e da necessidade urgente de criar sensibilidade entre os operadores judiciários ao crime de racismo a fim de permitir à sociedade portuguesa saltar este obstáculo que nos prende ao passado, que nos limita a visão, quer periférica, quer de profundidade, no que ao trato com o outro (que ainda seja qualificado de diferente) diz respeito.

A psicanálise é uma disciplina que a meu ver tem muito a iluminar sobre esta relação com o outro. Quando tomamos atenção ao fenómeno racista vemos que é quando mais nos identificamos com esse outro, que mais repulsa temos desse outro. Quanto mais os ciganos, contra a natureza endógena da sua forma de vida, se tornam sedentários e mais como os demais da sociedade, mais apetece chamá-los de “ciganos” para os afastar de nós, para não nos vermos neles.

É no momento em que, até para as funções públicas, é urgente e imperioso mobilizar o outro para as ocupar, mobilizar os negros e negras das periferias para ambicionarem e exercerem profissões mais ambiciosas; no momento em que a imigração africana é mais importante para a Europa; quando até uma pressão militar inédita à geração hoje influente na sociedade europeia exige população estrangeira, sem mencionar a já inequívoca e incontornável necessidade económica de estrangeiros… é aqui que revolvemos no velho baú de madeira ainda húmido o tesourinho do instrumento para nos distinguirmos do outro que queremos e precisamos de ter connosco.

Desabam os fundamentos da sociedade europeia, desfaz-se a face da sociedade europeia, deixa de reconhecer-se a si própria a sociedade europeia, se se despir dos seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Todavia, o medo de nos vermos no outro até isso faz desabar. É caso de chamar a psicanálise para salvar a Europa, de não ter medo de se olhar e perceber-se e tocar-se e gostar de quem é. Parafraseando Sua Eminência o Bispo de Setúbal, devemos agradecer aos imigrantes por terem escolhido o continente europeu e o país Portugal para estabelecerem a sua família e a sede da sua atividade.

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Uma investigação, cujos resultados foram divulgados esta quarta-feira e a que a agência Lusa teve acesso, analisou quatro modelo de Inteligência Artificial para perceber como lidam com a informação de que dispõem quando o conteúdo é noticioso.

No geral, 45% das respostas apresentavam “pelo menos um problema significativo”, independentemente do idioma ou do território, enquanto 31% das respostas mostraram problemas relativos a fontes e 20% continham grandes problemas de precisão, com informações obsoletas ou mesmo “detalhes inventados”.

Dos quatro modelos de IA analisados, o Gemini teve os piores resultados, tendo sido detetados “problemas significativos” em três quartos das suas respostas, “mais do dobro dos outros assistentes”, principalmente devido ao seu fraco desempenho na citação correta de fontes.

A realização deste estudo envolveu 22 meios de comunicação públicos de 18 países, incluindo 14 idiomas.

Em Portugal, a RTP foi o meio que participou nesta investigação e concluiu que 44% das respostas tiveram algum tipo de problema significativo, como a falta de fontes diretas ou erros de conteúdo.

No caso português, o modelo de IA Gemini continuou a ser o que apresenta mais problemas, em 82% das respostas, sendo que o ChatGPT e o Gemini foram os que mais erraram na precisão de citações atribuídas à RTP.

Entre o final de maio e o início de junho, cada meio de comunicação participante fez as mesmas perguntas de atualidade aos assistentes de IA, pedindo-lhes que procurassem as respostas nos seus conteúdos.

Entre as 3.000 respostas, as informações desatualizadas foram um dos problemas mais frequentes.

Por exemplo, em Portugal, quando questionados, em junho, sobre “Quem venceu nas eleições legislativas?”, o assistente Copilot errou na resposta, citando o resultado das eleições de 2024 e não as que ocorreram em maio de 2025, uma semana antes da pergunta ser feita.

Neste sentido, “os assistentes de IA ainda não são uma forma fiável de consumir informação”, apesar de serem cada vez mais utilizados por pessoas para procurar informação, especialmente pelos jovens.

Um relatório global publicado em junho pelo Instituto Reuters revelou que 15% dos menores de 25 anos utilizava modelos de IA semanalmente para obter resumos de notícias.

Este teste incidiu sobre quatro assistentes de IA amplamente utilizados em todo o mundo para obter informação, o ChatGPT, Copilot, Gemini e Perplexity.