A confiança no sistema de Justiça é a última reserva do Estado de Direito, sobretudo quando os valores constitucionais estão sob ameaça da vaga populista.
Infelizmente, o poder judicial tem progressivamente caminhado para o descrédito, ausência de uma imagem consistente e desaparecimento no quadro das políticas públicas face à atomização de agentes e à abstenção reiterada do poder político em enfrentar as corporações do setor e as dimensões críticas do sistema.
A magistratura judicial não tem assumido uma posição marcante no sistema, nem no plano dos valores que marcam a sociedade nem no da fixação de jurisprudência relevante.
A multiplicação de ciclos de curta duração na liderança do STJ e do Conselho Superior da Magistratura, acentuada pela rotação rápida dos juízes conselheiros que atingem o topo do sistema muito tarde e se jubilam quase de imediato, mantém uma apagada rotina burocrática impotente para reagir com propostas insuscetíveis de serem recusadas pelo poder legislativo que contrariem o arrastamento dos megaprocessos até à prescrição e a sensação de que as grandes empresas encontraram na arbitragem uma justiça própria inacessível aos cidadãos comuns ou às pequenas empresas.
O crime violento é investigado com eficácia pela PJ e julgado com celeridade, mas a imagem do sistema é corroída pelas infindáveis regulações de poder paternal, pelo calvário para conseguir cobrar dívidas, pela incapacidade para decidir atempadamente sobre criminalidade económico-financeira, como se viu recentemente no caso do cartel da banca, ou pelo arrastamento de processos com figuras conhecidas, como o dos acusados autarcas Tutti Frutti maioritariamente do PSD de Lisboa, por factos ocorridos até 2017, que passados dois mandatos autárquicos ainda nem chegaram a julgamento.
O Ministério Público goza de um modelo de autonomia e de falta de escrutínio, sem paralelo em qualquer parte do mundo livre, que tem sido subvertido corroendo a hierarquia num modelo autogestionário em que muitas vezes o único porta-voz é o sindicato dos magistrados.
Só uma perversa disfunção entre autonomia e irresponsabilidade permite a tolerância nacional relativamente a factos como o antigo ministro João Galamba ter sido escutado durante quatro anos ou o magistrado Ivo Rosa ter sido investigado durante três anos, sem que qualquer deles tenha alguma vez sido ouvido no âmbito desses inquéritos e muito menos saber o que estaria a ser alvo da curiosidade dos procuradores.
O PS tem duas décadas de responsabilidade na matéria, porque desde o caso Casa Pia, situação agravada com o processo de José Sócrates, se sentiu coibido de fazer qualquer intervenção estrutural na área da Justiça, tendo mesmo desperdiçado a disponibilidade de Rui Rio para um diálogo com o PSD em torno dos grandes temas do setor.
Mas, no atual ciclo governativo, nem para as questões de intendência parece existir Ministério da Justiça. Face a uma idade média próxima dos 60 anos nos registos e notariado, fecham-se áreas de atendimento público, suspendem-se serviços e acumulam-se atrasos enquanto fracassam os processos de recrutamento.
O concurso para guardas prisionais conseguiu cerca de 50 candidatos para mais de 200 vagas e o de oficiais de justiça permitirá no máximo reunir metade dos estagiários pretendidos.
As novas prisões ou grandes remodelações não passam do plano e a estratégia contra a corrupção só teve como resultado a substituição da direção do MENAC-Mecanismo Nacional Anticorrupção.
A justiça tributária afunda-se com prejuízo grave para as contas públicas e incerteza para os agentes económicos, enquanto a solução encontrada na Lei de Estrangeiros para os processos de massa para respeito de direitos fundamentais dos imigrantes foi uma intolerável restrição no acesso aos tribunais administrativos.
Já nem vale a pena falar de uma Justiça que vive tranquilamente com o facto de ser acessível apenas aos muito ricos, que podem pagar bons advogados e todas as custas judiciais, e aos muito pobres que podem beneficiar do apoio judiciário, deixando de fora do sistema a maioria dos portugueses.
Nesta pobreza de valores e ausência de desígnios, o desaparecimento de Laborinho Lúcio, um ministro culto que tinha da Justiça e, sobretudo, da vida uma visão plural muito para lá da aridez dos códigos e uma dimensão humanista, que não se perdia com as vãs glórias corporativas, é um sinal do final dos tempos da construção de um Estado Democrático e solidário deixando-nos mais sozinhos nestes tempos de incerteza e risco de regressão civilizacional.
A Justiça é um bem fundamental do Estado Democrático só valorizado quando desaparece e é substituído pela lei do mais forte, pelo que a total inexistência da ministra da Justiça Rita Júdice merece o prémio Laranja sem Sumo de hoje.
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