Já há uma surpresa de Outubro: Biden tratou como “lixo” o eleitorado que vai votar em Trump, e isso está a causar uma grande indignação. Ao dizer o que disse, o presidente humilhou e desrespeitou 80 milhões de americanos. Não era necessário, especialmente neste momento crucial.

O resultado está à vista: Kamala e a campanha têm-se desdobrado em pedidos de desculpa e tentativas de justificar o erro de interpretação, consumindo nisso o pouco tempo que resta para tentar convencer os eleitores. Mas, se os de Trump são “lixo”, que vantagem tem a vice-presidente em tentar conquistar os seus votos?

Biden parece estar numa fase em que já desapareceu a barreira do bom-senso, aquela que nos impede de dizer disparates e insultar cidadãos. É verdade que um comediante fez uma piada de mau gosto sobre Porto Rico num comício de Trump, mas não foi o próprio candidato, e este já aproveitou para se distanciar desse lapso embaraçoso.

Os democratas e Kamala percebem bem o impacto negativo de o presidente em exercício dos Estados Unidos chamar “lixo” aos eleitores americanos, independentemente de votarem ou não em Trump. É um insulto sem limites, que só prejudica a sua vice. Será que Biden não quer que Kamala ganhe? Só pode.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

É nos momentos de crise que mais precisamos de ponderação, de raciocínio elaborado e, acima de tudo, de uma dose mínima de sensatez. A cabeça quente, como todos depressa aprendemos quando éramos novos, nunca é boa conselheira. E mesmo as decisões que pensamos tomar por instinto são, na verdade, ditadas por um acumulado de experiências ou de treino intensivo, que nos possibilitam agir com rapidez.

Vivemos, no entanto, no tempo em que apenas se privilegia o imediatismo e a reação rápida, como se o mundo fosse acabar no minuto seguinte. O tempo em que, a qualquer momento, todos os assuntos são discutidos com o ardor enviesado e incendiário com que, desde há duas décadas, se convencionou que deviam ser os programas de televisão sobre futebol: duelos permanentes, com os intervenientes tantas vezes a roçarem o insulto descarado, em que a gritaria é norma, a interrupção é o truque mais usado e os argumentos são apresentados sem a mínima preocupação com a verdade, mas apenas para defender as cores do seu clube.

Este estilo de debate saltou do futebol para a política – às vezes, até com os mesmos protagonistas – e, de repente, com o impulso das redes sociais, acabou por contaminar todo o espaço público. Qualquer que seja o assunto, todas as pessoas acabam divididas entre as que estão a favor ou contra – como se a vida tivesse de ficar reduzida à escolha permanente entre “gosto” e “não gosto” inventada pelo Facebook. A polarização tornou-se a norma, com o confronto crispado entre ideias feitas e certezas absolutas a ser sempre privilegiado, em detrimento da reflexão e da busca de dados objetivos que ajudem a compreender ou a decifrar uma realidade complexa.

“A polarização é um modelo de negócio”, disse há pouco tempo Martin Baron, depois de se reformar do jornalismo, com algum desencanto assumido, após uma carreira extraordinária em que dirigiu com mestria três grandes instituições da imprensa americana: o The Washington Post, o Miami Herald e o The Boston Globe (onde ficou imortalizado no cinema em O Caso Spotlight). Percebe-se o seu ponto de vista: o confronto exacerbado, que procura provocar fúria, raiva e tensões entre o público, tornou-se a ferramenta mais usada para tentar captar audiências. Algumas técnicas ou estilos noticiosos que eram distintivos da chamada imprensa tabloide estão agora disseminados por todos os órgãos de comunicação social. E em tempo de crise e de quebra de confiança, a batalha pela atenção do espectador ou do leitor fica ainda mais à mercê dos ditames do algoritmo que, nas redes sociais, amplifica as polémicas e dá reconhecimento às maiores alarvidades. Com a consequência a que temos assistido: a cobertura jornalística dos temas importantes começa a ficar cada vez mais reduzida à discussão acalorada, e resumida a poucos pontos, entre figuras dos extremos opostos do espectro político. Ou seja, a polarização vai-se autoalimentando e, com ela, desaparece qualquer resquício de bom senso ou de sensatez que ainda pudesse existir – mas que nos faz tanta falta.

Os populistas são exímios no manejo desta técnica e usam-na, diariamente, como uma espécie de armadilha para tentar condicionar os temas em debate público. Como temos visto, qualquer que seja o pretexto, André Ventura convoca quase todos os dias os jornalistas para prestar declarações ou apresentar tomadas de posição, com a preocupação de ocupar qualquer espaço que esteja momentaneamente vazio nas televisões ou nas rádios. As intervenções são sempre em direto e, na maioria dos casos, com uma duração que a mensagem não justificava – até porque, quase sempre, se resume a um slogan com não mais do que meia dúzia de palavras.

Graças a diretos diários e acríticos, os populistas vão ganhando espaço e fomentando a polarização. De microfone sempre aberto, é-lhes permitido dizer as maiores falsidades e proferir as acusações mais graves, sem contraditório nem enquadramento. Ao aceitar esse papel, amorfo e absolutamente dependente da ditadura do algoritmo, o jornalismo acaba por perder credibilidade. E qualquer réstia daquilo que devia distingui-lo: informar com independência e sensatez. 

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Palavras-chave:

Luís Montenegro deixou sem resposta direta várias perguntas dos partidos da oposição, evitou comprometer-se com detalhes sobre alguns aspetos da política do Governo e, no final do debate, ficou mesmo sem tempo para responder às 33 questões que lhe quiseram fazer os vários partidos. Estas são algumas das principais perguntas que Montenegro evitou.

Em que áreas vai o Governo cortar os funcionários públicos?

Pedro Nuno Santos arrancou o debate do Orçamento do Estado para 2025 na generalidade com uma pergunta: afinal, se o Governo quer repor na Administração Pública a regra de que por cada trabalhador que sai entra apenas um e se é certo que faltam professores e polícias, em que áreas do Estado pretende o Governo cortar?

Luís Montenegro não respondeu, limitando-se a afirmar que a grande aposta deste Governo é “no capital humano”. Não houve indicação de qualquer estudo que demonstre quais as áreas da Administração Pública em que será possível reduzir o número de funcionários nem sequer uma resposta clara sobre se haverá regimes de exceção para áreas mais carenciadas do Estado como a Educação ou as forças de segurança.

Mariana Mortágua, do BE, fez uma pergunta semelhante. “Vai tirar professores para pôr socorristas no INEM? Esta regra vai dar falta de trabalhadores em alguns setores. Era bom saber quais”, notou a coordenadora bloquista. Montenegro voltou a não responder.

“Vamos ter mais profissionais do SNS, mais professores e auxiliares na escola pública, mais funcionários judiciais, polícias necessários?”, questionaria mais tarde o deputado do PCP, António Filipe, numa altura em que a gestão de tempos feita pelo Governo deixou Montenegro sem tempo para responder.

Afinal quais são as metas de crescimento e o que vai fazer o país crescer?

 O crescimento económico foi outro dos pontos nos quais o primeiro-ministro evitou dar respostas diretas. Pedro Nuno Santos lembrou que o plano enviado a Bruxelas pelo Governo prevê metas de crescimento muito abaixo daquelas que estavam no programa eleitoral da AD e admitiu que, como já explicou o ministro das Finanças, esse cenário é feito apenas tendo em conta as alterações de política fiscal e mais nenhuma medida.

“Qual é a reforma estrutural nova que vai fazer disparar a taxa de crescimento em 2028?”, quis saber o líder do PS, que, tal como o líder da IL, Rui Rocha, questionou o primeiro-ministro sobre as metas do Governo para o crescimento económico, uma vez que Montenegro disse que a informação enviada para Bruxelas foi “cautelosa”, mas que o Executivo mantém a ambição de pôr o país a crescer.

A resposta de Luís Montenegro foi ao lado. “O programa económico do Governo é em primeiro lugar uma aposta no capital humano e na competitividade das empresas. Também faz parte disso apostar na segurança do país ou em empresas de energia verde, assim como em regras de licenciamento menos burocráticas”, começou por dizer, para depois lançar uma farpa ao PS.

“É esta a política económica que dá sustentabilidade e competitividade. Gostava mais de ter uma economia dirigida pelo Estado, em que escolhesse os investimentos, mas não estamos aqui para escolher pelas empresas”, ripostou, sem especificar metas de crescimento nem anunciar novas reformas estruturais que sustentem um aumento do crescimento em relação ao que está previsto no plano enviado a Bruxelas.

“O Governo mantém intacta a sua intenção de atingir os 3% e de fazer perdurar acima de 3% de forma sólida e duradoura”, acabaria por dizer em resposta a Hugo Soares, do PSD, sem apresentar uma trajetória de crescimento nem as medidas que o sustentam.

Não baixar o IRC tem impacto no crescimento?

Rui Rocha também não obteve grandes esclarecimentos, nomeadamente quando perguntou: “Se não aprovar descida de um ponto do IRC isso condiciona as metas de crescimento?”.

Sem respostas concretas, o primeiro-ministro explicou ao líder da Iniciativa Liberal que o Governo “não fez tudo o que queria” e que foi “ser bloqueado na pretensão de descer impostos”, uma retórica a que voltaria várias vezes ao longo do debate.

O Governo diz que não sobe impostos, mas… e a taxa de carbono?

André Ventura também confrontou o Governo com o descongelamento da taxa de carbono que agrava a carga fiscal sobre os combustíveis, apesar de Luís Montenegro ter repetido que este é o primeiro Orçamento em muitos anos que não sobe qualquer imposto. “É a mesma lógica de sempre: sacar a quem trabalha para distribuir a quem não faz nada”, atacou o líder do Chega.

Luís Montenegro evitou o tema dos combustíveis, preferindo responder às críticas que Ventura lhe fez sobre a relação do Governo com as forças de segurança, lembrando o acordo de valorização salarial a que chegou. “Começámos por eles a tratar da sua valorização remuneratória e condições de motivação. É assim que vai continuar a ser. Estamos a investir nas forças de segurança”, reagiu.

O que quer o Governo mudar na Lei do Trabalho?

Luís Montenegro também não foi claro sobre o que pretende o Governo fazer em matéria laboral com os pedidos de autorização legislativa enviados à Assembleia da República, uma dúvida que tem assolado os sindicatos.  “O que quer fazer com a autorização legislativa no Orçamento do Estado e que mexe com baixas, férias e direito à greve? Que sentido quer dar a estes direitos?”, perguntou Inês Mendes Lopes, líder parlamentar do Livre.

O primeiro-ministro disse apenas que a autorização legislativa para mexer na Lei do Trabalho servirá para “clarificar” conceitos e coisas “administrativas” como a “comunicação de greves”.

Uma questão de tempos

Na segunda ronda de perguntas, Luís Montenegro tinha apenas três minutos para responder aos 33 pedidos de esclarecimento feito pelas várias bancadas. O primeiro-ministro tinha prometido dividir as questões em três lotes de onze cada, mas esgotou o tempo ainda antes de conseguir responder ao primeiro conjunto de perguntas.

O facto levou a uma prolongada discussão em plenário sobre as grelhas de tempo, com a líder da bancada parlamentar do PS, Alexandra Leitão, a lembrar que Montenegro tinha prometido no arranque dos trabalhos gerir também o Orçamento como este debate. “O sr. Primeiro-ministro é que disse que iria gerir tão bem o seu tempo como gere o orçamento…”

Em vésperas das eleições presidenciais mais importantes das últimas décadas, os americanos estão divididos em dois blocos que discordam em quase tudo menos numa coisa: a fé no boletim meteorológico. Há três anos consecutivos que os estudos de opinião da YouGov demonstram que o The Weather Channel é o único canal de televisão que consegue ganhar a atenção, em simultâneo, tanto dos eleitores democratas como dos republicamos. De resto, “azuis” e “vermelhos” (as cores com que os dois partidos se “vestem” nos EUA) divergem em todas as outras fontes de informação, quase como se vivessem em universos paralelos que nunca se chegam realmente a cruzar: os apoiantes de Kamala Harris veem a CNN e confiam na imprensa de referência, como o The New York Times, enquanto os seguidores de Donald Trump desconfiam da chamada media tradicional e preferem informar-se através da Fox News e pouco mais.

Kamala Harris A sua estratégia passou a concentrar-se na retórica anti-Trump Foto: LON HORWEDEL/LUSA

Esta clivagem tão acentuada nos estudos de opinião sobre a confiança nos órgãos de informação constitui um indicador preciso da grande divisão atualmente existente nos EUA – um país onde, ainda há apenas meio século, a realidade era completamente diferente. Nos anos 1960 e 1970, a personalidade mais consensual para a esmagadora maioria da população era o jornalista Walter Cronkite, admirado pela forma como apresentava as notícias na CBS News de uma forma considerada justa e precisa por toda a nação. “Mesmo quando a sua visão desafiava a linha oficial ou a opinião popular, como quando, após uma viagem de reportagem ao Vietname, disse aos seus 30 milhões de espectadores que a guerra estava num impasse, ajudando a virar a opinião pública contra a presença das tropas americanas naquele conflito”, como lembrou o antigo diretor do New York Times, Bill Keller, num ensaio recente publicado na Bloomberg.

Divididos e ansiosos

A grande polarização começou a formar-se no início do século, na presidência de George W. Bush, com as intervenções militares no Afeganistão e no Iraque, mas também com a deslocalização de muitas indústrias para o exterior, em consequência do impulso à globalização feito, nos anos anteriores, por Bill Clinton. E acentuou-se durante os mandatos de Barack Obama, quando o país teve de enfrentar a pior crise financeira em oito décadas e o primeiro Presidente negro dos EUA fez o Congresso aprovar um grande programa de estímulo financeiro, para evitar outra Grande Depressão. O programa resultou, mas não evitou uma Grande Recessão, nomeadamente o crescimento do desemprego, que gerou revoltas populistas à direita (o movimento Tea Party) e à esquerda (o movimento Occupy). Foi nesse ambiente que Donald Trump chegou e, em 2016, surpreendeu a América e o mundo com a sua eleição.

Agora, a divisão é profunda e ainda mais extremada. Todos os relatos do terreno são unânimes em mostrar as diferenças gritantes entre os apoiantes de cada lado. E cresce a ideia de que, ao contrário do que sucedia em eleições anteriores, tanto os eleitores de Trump como os de Harris temem um cataclismo se o seu candidato for derrotado – uma convicção que é alicerçada na baixa confiança que merece o Congresso nos diversos estudos de opinião.

Donald Trump Insiste sempre que vai promover a “grande libertação” da América, expulsando aquilo a que chama “inimigo interno” Foto: SARAH YENESEL/LUSA

Uma sondagem feita pelo Wall Street Journal dá bem o retrato de um país dividido em duas metades inconciliáveis: metade dos inquiridos considera que a probabilidade de violência é elevada com a vitória de qualquer um dos candidatos e 53% acreditam que a polarização vai continuar a crescer nos EUA, independentemente do resultado da eleição.

Este ambiente de alta ansiedade tem sido acelerado também pelos dois candidatos, à medida que se aproxima o dia 5 de novembro, com ambos a elevarem o tom dos ataques. Após algum período de contenção na fase inicial da campanha, Kamala Harris já começou a apelidar Donald Trump de “fascista” e este, com o seu estilo de sempre, nunca parou de a apelidar de “comunista”. Nos seus discursos, a candidata democrata tem centrado grande parte dos seus argumentos na ameaça ditatorial que Trump representa, com as suas ameaças de “ser ditador no primeiro dia de presidência”, promover o maior programa de expulsão de imigrantes “de que há memória”, mas também a de perseguir os membros da Administração que se lhe tenham oposto. Donald Trump, por seu lado, insiste sempre que vai promover a “grande libertação” da América, expulsando aquilo que chama “inimigo interno”, uma entidade-fantasma que alimenta as mais diversas teorias da conspiração entre os seus apoiantes. A grande dúvida, no entanto, é a de saber qual o peso que esses ataques podem ter na decisão dos eleitores, já que nenhum deles consegue falar para os apoiantes do outro.

O paradoxo da mudança

Tanto Kamala Harris como Donald Trump apresentam-se como candidatos da mudança, mas a tarefa tem-se revelado mais difícil para a atual vice-presidente. Isto porque, embora os EUA apresentem, em termos de indicadores, uma economia robusta e com um crescimento muito superior à da maioria dos outros países ocidentais, a perceção é diferente entre os eleitores. Apesar da inflação ter sido derrotada, a verdade é que os preços de muitos bens essenciais ou de uso comum não voltaram ao que eram. E se Biden é penalizado por isso, Kamala Harris fica com a sua ação limitada, quando promete mudanças – uma posição agravada pela sua dificuldade, até ao momento, de apresentar um programa económico robusto e inovador.

A atual situação geopolítica também não favorece a candidata democrata. Nem o histórico deste ano, em que cerca de metade da população mundial foi chamada às urnas, em mais de seis dezenas de países: na maioria dos casos, os eleitores têm penalizado os partidos no poder.

Por mais que os seus comícios contem com a presença e o apoio de figuras com um nível de atração planetário – como são os casos de Taylor Swift, Beyoncé, Bruce Springsteen ou o casal Obama –, a verdade é que a onde de alegria e entusiasmo com que Kamala Harris iniciou a sua campanha foi perdendo força. Por isso, com as sondagens a continuarem a dar os dois candidatos num teimoso empate, a sua estratégia passou a concentrar-se na retórica anti-Trump, focando-se mais na ameaça que o seu oponente representa do que naquilo que ela pode trazer de novo para o país.

A fazer fé nas várias sondagens que se vão publicando nos EUA, a radicalização do discurso de Donald Trump não o tem prejudicado nas intenções de voto, ao contrário do que poderia ser a esperança dos democratas. As trincheiras são tão vincadas entre os dois campos, que mesmo quando Trump carrega na retórica autoritária, machista, xenófoba e racista, o coro de indignação do lado democrata não chega sequer a entrar no ouvido dos apoiantes republicanos.

Bilionários rendidos

Embora a campanha de Kamala Harris tenha angariado mais dinheiro entre os apoiantes, na semana anterior às eleições começou a perceber-se uma maior cautela e até alguma aproximação dos grandes bilionários e presidentes das grandes companhias a Donald Trump. Uns a apoiá-lo com todo o vigor, como é o caso de Elon Musk, outros a remeterem-se a um prudente silêncio, como tem feito Warren Buffett, e alguns a procurarem restabelecer laços perdidos, para evitar futuras represálias – como terá acontecido com a chamada que Tim Cook terá feito a Trump, a queixar-se das multas da União Europeia à Apple.

Por apurar está o papel que o homem mais rico do mundo pode vir a ter no resultado final. Nunca até agora um bilionário se tinha envolvido numa campanha política americana como fez Elon Musk, que não só desembolsa muitos milhões de dólares para pagar anúncios mas também organiza os seus próprios comícios no estado decisivo da Pensilvânia, sorteia fortunas entre os apoiantes e participa, como grande estrela, nas maiores ações de Trump, como a que realizou no Madison Square Garden, em Nova Iorque.

Elon Musk, no entanto, não se limita a aparecer publicamente frente às multidões. Por aquilo que se lê numa investigação do The Washington Post, a sua ação na sombra pode ser ainda mais relevante: o jornal descobriu que, nas últimas semanas, a rede social X, que o milionário comprou há dois anos por 44 mil milhões de dólares, poderá ter alterado o seu algoritmo, de forma a favorecer as publicações dos republicanos em detrimento das que são postadas por democratas.

“No passado, atores políticos dos dois lados viam o Twitter como o lugar para obter notoriedade. Agora, passou a ser uma plataforma liderada pela direita”, concluiu Shannon McGregor, professora da Universidade da Carolina do Norte, citada pelo jornal.

A verdade é que uma vitória de Trump poderá oferecer a Elon Musk um papel relevante na futura Administração. Não só já lhe foi prometida a liderança de um autodenominado Departamento de Eficiência Governamental ‒ com o objetivo de reduzir custos no Estado central, mas também poder ganhar avultados contratos de prestação de serviços, como acontece no transporte espacial ‒, como passará a ter uma influência próxima em decisões de que pode ser diretamente beneficiado. E o próprio já sinalizou, aliás, uma medida que lhe interessa em particular: a aprovação de uma lei federal que permita veículos de condução autónoma, como os da Tesla poderem circular nas vias públicas de qualquer estado.

Suspense até ao fim

Todos os sinais indicam que esta será a eleição com maior participação de sempre. Uma semana antes da abertura das urnas, já quase 50 milhões de eleitores tinham enviado os seus votos pelo correio. E também tem existido uma maior afluência de cidadãos a inscreverem-se para poder votar não só para o Presidente mas também para um terço do Senado e para a Câmara dos Representantes.

Num clima político profundamente dividido, estas eleições apresentam também alterações na representação do Colégio Eleitoral, que já refletem os dados dos Censos de 2020. E, nesse campo, há mudanças na paisagem que, segundo alguns analistas, podem estar a baralhar as sondagens. Em certos estados houve modificações significativas nas populações que habitam em determinados subúrbios de grandes cidades e, noutros, registaram-se deslocações de pessoas com condições sociais e económicas diferentes, que não estavam anteriormente identificadas nos estudos de opinião.

Salvo qualquer surpresa de última hora, esta será uma eleição renhida, decidida, no fundo, por um punhado de milhares de eleitores nos sete estados que todos identificam como tendo a chave para a vitória (ver caixa). Com as sondagens a darem empates consecutivos entre Trump e Harris nas principais batalhas, qualquer pequeno erro de cálculo pode fazer virar a vitória para um dos lados.

A ansiedade vai durar, no mínimo, até 5 de novembro. E mesmo que o suspense termine nesse dia, sem dramas, confusões ou violência, a divisão americana vai continuar. No estado atual dos EUA e com estes dois candidatos, não há eleição que consiga terminar com as trincheiras que foram criadas.

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Reid Hoffman & Michelle Yee
O cofundador do Linkedin e a mulher já doaram cerca de 20 milhões de dólares.

Mike Bloomberg
O bilionário e proprietário do império de media com o seu nome e ex-presidente da Câmara de Nova Iorque é um dos principais financiadores da campanha.

Bill Gates
O fundador da Microsoft e um dos homens mais ricos do mundo apoiou a campanha de Harris, com uma doação secreta de 50 milhões de dólares, que não quis, no entanto, tornar pública. Em comunicado, Gates sublinhou que apoia quem “demonstra um compromisso claro com a melhoria dos cuidados de saúde, a redução da pobreza e a luta contra as alterações climáticas nos EUA e em todo o mundo”.

James Murdoch
Um dos herdeiros do império Fox, de Rupert Murdoch, foi um dos 88 empresários que assinaram um manifesto de apoio.

Laurene Powell Jobs
A viúva de Steve Jobs, fundador da Apple, é uma amiga de longa data e conselheira de Kamala Harris. E também uma das maiores doadoras da sua campanha.

Mark Cuban
Proprietário dos Dallas Mavericks, da NBA, e uma das estrelas do Shark Tank, é um investidor e filantropo com grande presença mediática.

Ursula von der Leyen
Para a presidente da Comissão Europeia, uma vitória de Kamala Harris significará a manutenção das atuais relações transatlânticas

Volodymyr Zelensky
O líder de Kiev sabe que a continuação do apoio dos EUA à Ucrânia só está garantido com a dupla democrata

Lula da Silva
“Deus queira que a Kamala ganhe eleição nos EUA”, disse o Presidente do Brasil, que deseja um vitória da candidata democrata como uma resposta à direita internacional.

Keir Starmer
A presença de militantes trabalhistas britânicos na campanha de Kamal Harris fez despertar a fúria de Trump contra o primeiro-ministro inglês

Dick Cheney
“Nos 248 anos de História da nossa nação, nunca houve um indivíduo que fosse uma maior ameaça à nossa República do que Donald Trump”, declarou o antigo vice-presidente de George W. Bush.

Beyoncé
Autorizou que Freedom seja o hino de campanha e começou já a participar em atos públicos de apoio de Kamala Harris

Jimmy Carter
O ex-Presidente, de 100 anos, já enviou pelo correio o seu voto em Kamala Harris

Barack e Michele Obama
O ex-Presidente e a ex-primeira-dama têm sido muito ativos na campanha, tentando capitalizar a sua popularidade.

Bill e Hillary Clinton
O ex-Presidente não se cansa de repetir que, apesar de ter deixado o cargo há quase um quarto de século, é (dois meses) mais novo do que Donald Trump.

Bruce Springsteen
Cada vez mais ativo nos comícios

Reed Hastings
Fundador da Netflix

Magic Johnson
O milionário ex-astro da NBA protagoniza anúncios de apoio

Steven Spielberg
O realizador de maior sucesso de Hollywood é um ativo apoiante de Kamala Harris

Jane Fonda
Atriz e ativista

George Clooney
Foi decisivo, com uma carta aberta, para a desistência de Joe Biden, e no apoio à candidata

Barbra Streisand
Atriz e cantora

Steph Curry
“A união dentro e fora de campo relembra-nos que, juntos, conseguimos fazer tudo para continuar a inspirar o mundo. E é por isso que eu acredito que a Kamala a Presidente vai conseguir trazer essa união de volta e ajudar os EUA a crescer”, disse a estrela da NBA.

Justin Trudeau
O primeiro-ministro canadiano mantém, há muito, uma boa relação com a atual vice-presidente dos EUA.

Taylor Swift
“Vou votar em Kamala Harris porque ela luta pelos direitos e pelas causas que eu creio precisarem de uma guerreira que as defenda”, escreveu a cantora nas suas redes sociais

Quem está com Donald Trump e J. D. Vance

Os apoiantes declarados, os financiadores e os que, mesmo à distância, torcem pela vitória da dupla republicana

Steve Wynn
O milionário dos casinos de Las Vegas é um apoiante tradicional dos republicanos

Greg Abbott
Governador do Texas, chegou a ser considerado uma opção para candidato a vice-presidente.

Timothy Mellon
Magnata de caminhos de ferro, já pôs mais de 165 milhões na campanha – a maior parte em Trump, mas também 25 milhões na candidatura de Robert Kennedy Jr. (que, entretanto, desistiu a favor de Trump)

Joe Rogan
Com 14,5 milhões de seguidores no Spotify e 17,5 milhões de assinantes no YouTube, o polémico podcaster ajuda Trump a conquistar audiências em grupos etários mais jovens.

Elon Musk
O homem mais rico do mundo, patrão da Tesla, da Space X e da rede social X, tem dominado os últimos dias de campanha, a que doou 75 milhões de dólares – além de sortear um milhão de dólares por dia entre os signatários da sua petição a favor de Trump.

Bill Ackman
O investidor bilionário, que sempre apoiou os democratas, virou-se agora para Trump, que considera ser um “homem imperfeito”, mas que “é de longe o candidato superior, apesar das falhas e erros que cometeu no passado”.

Miriam Adelson
A viúva do magnata dos casinos Sheldon Adelson e uma fervorosa apoiante de Israel, doou 95 milhões de dólares para a campanha.

Marine Le Pen
A eleição de Donald Trump poderia ser um sinal favorável para a sua corrida à presidência francesa, em 2026

Benjamin Netanyahu
Com Trump – o Presidente que decidiu mudar a Embaixada dos EUA de Telavive para Jerusalém – não haverá recriminações norte-americanas às atrocidades em Gaza ou noutras frentes da guerra no Médio Oriente.

Vladimir Putin
O Presidente da Rússia deseja uma vitória de Trump, porque ela representará o provável desaparecimento do apoio militar norte-americano à Ucrânia.

Mohammad bin Salman
O líder da Arábia Saudita sabe que com Trump não terá censuras dos EUA por causa de violações de direitos humanos.

Narendra Modi
O primeiro-ministro da Índia e Donald Trump nunca esconderam a admiração mútua. E uma mesma visão de um poder autoritário.

Javier Milei
O “mini-Trump da Argentina” é um fervoroso apoiante do candidato republicano.

Robert F. Kennedy jr.
O sobrinho do Presidente John F. Kennedy desistiu da sua candidatura e tornou-se apoiante de Trump com a promessa de que desempenhará um cargo importante na sua Administração.

Amber Rose
A rapper, modelo e estrela do reality show (RuPaul’s Drag Race) foi uma das estrelas da convenção republicana, que nomeou Trump candidato.

Tucker Carlson
A antiga estrela da Fox News, e que chegou a ser considerada “a voz mais influente da direita”, é agora um participante ativo na campanha de Trump. E foi o primeiro a dizer que Trump sobreviveu ao atentado, de julho, por “intervenção divina”.

50 Cent
O rapper declarou o seu apoio após o atentado de julho e colocou o rosto de Trump na capa do seu álbum Get Rich or Die Tryin’ durante um espetáculo.

Roseanne Barr
A atriz e humorista, que viu o seu programa de TV suspenso devido à linguagem racista, em 2018, tem sido uma das mais vocais apoiantes de Trump e de algumas teorias da conspiração.

Mike Tyson
“Gosto de Donald Trump e vou votar nele. E depois? Vai me bater por causa disso”, disse o antigo pugilista, irritado, quando questionado sobre as razões por que apoia Trump.

Mel Gibson
“Sei o que aconteceria se deixássemos Kamala Harris ser Presidente. Ela tem o QI de um poste”, afirmou o ator e realizador, conhecido pelo seu conservadorismo católico, a justificar o seu apoio a Trump.

Viktor Orbán
Isolado na União Europeia, o líder da Hungria gostava de ter um aliado forte em Washington.

Kanye West
“Sou Trump todos os dias”, declarou o controverso rapper quando lhe perguntaram se mantinha o apoio no candidato republicano.


Esta é a altura em que tu e os alunos portugueses podem escolher os seus livros candidatos às eleições nacionais.

Se quiseres participar na iniciativa ‘Miúdos Votos: quais os livros mais fixes?’ não percas muito mais tempo. A primeira fase é a escolha dos livros-candidatos, ou seja, aquele livro que, para ti, é mesmo o mais fixe de todos, pois a tua escolha é individual e absolutamente livre.

Podes apresentar qualquer tipo de livro: prosa, poesia, banda desenhada, teatro. E, para isso, basta que preenchas este FORMULÁRIO, onde deverás indicar um único livro como candidato.

Mas presta atenção, pois este ano há uma nova regra: em cada categoria, não podem ser incluídos os livros que tenham vencido, nessa mesma categoria, em todas as três edições anteriores à presente (podes consultar a lista aqui, em miudosavotos.pt, onde encontras toda a informação sobre a iniciativa.

Se tiveres alguma dificuldade, pede ajuda aos teus professores ou ao/à professor/a bibliotecário/a.

Os livros presentes nos boletins de voto para as eleições nacionais, marcadas para 12 de março, serão aqueles que reunirem maior número de nomeações e que estejam publicados em Portugal.

No dia 5 de novembro, não serão os habitantes de Nova Iorque, Los Angeles, San Francisco ou Chicago a decidir as próximas eleições presidenciais norte-americanas. Cidades que constituem alguns dos maiores centros populacionais, políticos e económicos dos Estados Unidos da América, servindo como verdadeiras fábricas de soft power cultural norte-americano para o mundo. Serão, sim, os cidadãos que vivem nos estados do Rust Belt como a Pensilvânia, Michigan e Wisconsin, ou mesmo no Sun Belt como o Nevada, que terão a palavra final.

Este denominado “Cinturão da Ferrugem” em português, representa a América do cidadão comum, predominantemente caucasiano e de tradições operárias. A região possui raízes ancoradas no antigo epicentro da indústria norte-americana e preserva uma herança cultural única. Marcada por décadas de declínio industrial, desenvolveu uma mentalidade resiliente, pragmática e caracterizada por um conservadorismo social. No entanto, esta cintura industrial também é definida por uma grande volatilidade eleitoral, com um forte foco nas preocupações económicas e uma desconfiança em relação às elites dos grandes centros urbanos da Costa Leste e Oeste. Em 2016, deu a vitória a Donald Trump, enquanto em 2020 favoreceu Joe Biden. No fundo, esta é a América dos candidatos a vice-presidente, o senador republicano de Ohio, JD Vance, e o governador democrata do Minnesota, Tim Walz. A sua escolha não terá sido uma mera coincidência. Por sua vez, os seis grandes eleitores do multicultural Nevada podem decidir tudo ou nada, tal como numa aposta, oportuno para o estado que abriga a capital do jogo em Las Vegas.

Para o resto do mundo, especialmente para a Europa, órfã da América do antigo Presidente Barack Obama, e para nós, portugueses, teremos de lidar com as idiossincrasias do novo Presidente dos EUA e, acima de tudo, prepararmo-nos. Será necessário delinear estratégias para enfrentar a sua liderança e doutrinas, especialmente no que diz respeito à política externa, segurança e defesa europeias – áreas que exigem uma atenção e preocupação redobradas no contexto da atual transição da ordem mundial.

No campo das relações internacionais, Donald Trump, o magnata imobiliário que se tornou personalidade televisiva e político norte-americano, pode ser descrito por muitos como um protecionista, por outros como um nacionalista e, para alguns, acima de tudo, como um líder transacional.

Para muitos que consideram Trump um isolacionista, isso depende da definição do termo. Se “isolacionismo” se referir ao ceticismo em relação à política externa norte-americana nas últimas oito décadas e às dúvidas sobre os benefícios da liderança global para os EUA,

então Trump pode ser considerado um isolacionista. Se o isolacionismo for visto como um apelo ao afastamento geopolítico, o rótulo torna-se mais complexo. Charles Kupchan no seu livro Isolationism: A History of America’s Efforts to Shield Itself from the World defende que isolacionismo é uma estratégia que busca o desengajamento das potências estrangeiras e a evasão de acordos estratégicos duradouros além do território dos EUA.

Para outros, a política externa de Trump é fortemente influenciada por sentimentos nacionalistas consubstanciados na sua agenda America First. Esta ideologia enfatiza a priorização dos interesses norte-americanos em detrimento da cooperação internacional, frequentemente à custa de alianças estabelecidas e acordos multilaterais. A retórica e as políticas de Trump refletem a convicção de que os compromissos internacionais podem colidir com os interesses nacionais.

A abordagem transacional de Trump é caracterizada pelo ceticismo em relação a alianças tradicionais como a NATO. Ele critica frequentemente os aliados por não contribuírem o suficiente para a sua própria defesa. Esta perspetiva reflete uma tendência mais ampla de questionamento do valor das instituições multilaterais.

Na minha opinião, Trump é mais adequadamente descrito como um líder transacional. Esta caracterização sugere que um eventual regresso à Casa Branca não implicaria necessariamente uma retirada inevitável dos EUA do palco global. As suas decisões dependerão, em grande medida, do cumprimento dos compromissos por parte dos amigos e aliados da América, bem como da criação de oportunidades para ele demonstrar, de forma egocêntrica, as suas habilidades negociais. Embora a liderança dos EUA possa ser menos pronunciada sob um segundo mandato de Trump na Europa, a presença norte-americana no estrangeiro poderá persistir, sobretudo, na Ásia e no Pacífico.

Ao contrário de Trump, Kamala Harris, advogada e ex-procuradora-geral da Califórnia, agora vice-presidente dos EUA, tem enfatizado consistentemente uma abordagem multilateral nas relações internacionais, defendendo o envolvimento norte-americano com aliados globais e instituições internacionais para enfrentar desafios complexos, como as alterações climáticas, os direitos humanos e a segurança internacional. A sua posição reflete um afastamento das políticas unilaterais, com foco na reconstrução de alianças. Essa postura é evidente no seu apoio ao regresso a acordos internacionais, como o Acordo de Paris sobre as alterações climáticas, e no fortalecimento das alianças tradicionais, particularmente com a NATO, e outros parceiros estratégicos. No fundo, uma continuidade política com as normas e preceitos diplomáticos da Administração Biden.

A abordagem de Kamala Harris à política externa pode ser considerada mais mainstream, alinhando-se com os princípios do idealismo liberal e promovendo uma ordem mundial

baseada em regras de Direito Internacional. Em contraste, a política externa de Donald Trump é caracterizada por um estilo transacional focado em negociações diretas.

A perspetiva de política externa de Harris pode, no entanto, ser criticada por ser excessivamente idealista, num contexto em que as tensões geopolíticas estão cada vez mais acentuadas. Num artigo recente no New York Times, intitulado How Kamala Harris Should Put America First ‒ for Real, o historiador Stephen Wertheim considera que a ênfase dada por Harris na diplomacia multilateral e na construção de alianças é insuficientemente robusta para enfrentar as ações agressivas de potências revisionistas.

A mudança estratégica dos EUA para o Indo-Pacífico alimenta sérias preocupações entre os líderes europeus. Essa realidade pode ser atribuída tanto à agenda America First de Trump quanto à agenda incerta e demasiadamente “progressista” de Harris.

Embora a liderança dos EUA possa ser menos pronunciada sob um segundo mandato de Trump na Europa, a presença norte-americana no estrangeiro poderá persistir, sobretudo, na Ásia e no Pacífico

A presidência de Donald Trump serviu como um lembrete claro da necessidade de a Europa desenvolver um “Plano B” para a sua segurança e defesa coletiva. Embora uma eventual vitória de Kamala Harris eliminasse a maior parte dessas preocupações, a realidade é que a Europa não pode continuar a depender exclusivamente dos EUA para a sua segurança. Isso deve-se sobretudo à mudança estratégica dos EUA para uma competição tripolar entre grandes potências com a China e Rússia, que pode direcionar os esforços militares da América para dois teatros distintos: a Europa e a Ásia-Pacífico.

Embora muitos líderes europeus, incluindo Emmanuel Macron, acreditem que chegou o momento de uma Europa imune a Trump, com uma segurança e defesa própria. Contudo, ainda existem perspetivas otimistas a considerar. No lado republicano, muitos senadores, como o antigo adversário político Marco Rubio, tentam tranquilizar os líderes europeus e a opinião pública, assegurando que os EUA continuarão profundamente envolvidos na Europa e na NATO. Eles sugerem que uma presidência Trump 2.0 estaria recetiva a uma persuasão europeia bem formulada. No lado democrata, o envolvimento de Obama na campanha democrata juntamente com o conselheiro de segurança nacional de Harris, Phil Gordon, são sinais otimistas para os europeus. Gordon é reconhecido pelo seu vasto conhecimento sobre a Europa e pelo seu alinhamento com perspetivas europeístas.

No fim das contas, a decisão nas próximas eleições presidenciais norte-americanas não será dos europeus, mas certamente dos cidadãos dos estados do Rust Belt. Para este grupo eleitoral, mais do que temas como imigração ou aborto, a política externa terá um papel determinante na escolha do candidato. A questão é se, para esses eleitores, o intervencionismo mainstream associado a Harris os inclinará a apoiar um Trump mais transacional na esfera da política externa e defesa norte-americana?

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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Para mim, a palavra mais bonita do dicionário é ‘tarifa’. É a minha palavra favorita”, disse Donald Trump durante uma intervenção recente no The Economic Club of Chicago, uma quase centenária instituição vocacionada para o debate de temas económicos, empresariais e cívicos entre executivos de topo. A frase, atirada ao ar durante uma conversa moderada por John Micklethwait, editor-chefe da Bloomberg News, foi recebida na sala com um aplauso estrondoso, mostrando que os economistas e gestores ali presentes acreditam que a promessa de aplicar tarifas sobre produtos importados irá funcionar como um tónico para o crescimento económico, protegendo as empresas nacionais da concorrência externa e incentivando as empresas estrangeiras a produzirem dentro dos Estados Unidos. O candidato republicano admitiu, mais do que uma vez, que as tarifas são mal-interpretadas enquanto ferramenta de política económica – até afirmou que precisam de uma operação “de relações públicas” – e criticou outros economistas que dizem que, na verdade, significam um imposto sobre os contribuintes que irá tornar a economia menos eficiente e fazer disparar a inflação nos Estados Unidos. O primeiro mandato de Donald Trump na Casa Branca (2016-2020) foi marcado por tensões comerciais, com a criação de tarifas à entrada de produtos importados. Oito anos depois, o candidato republicano aposta na mesma receita: aumento do protecionismo e do isolacionismo, salvaguarda dos empregos e descida dos impostos. Desde o início da campanha que promete aplicar tarifas alfandegárias de 60% sobre a importação de produtos chineses, e de 10% a 20% sobre todas as outras importações, incluindo da Europa, visando sobretudo a Alemanha, o país que acusa de “inundar” os EUA com os automóveis fabricados em solo europeu. A Comissão Europeia admite retaliar e criou um grupo de trabalho para avaliar o impacto das medidas protecionistas do candidato republicano. Mesmo que a candidata democrata Kamala Harris seja eleita, afastando aquele que seria o pior cenário para a União Europeia (UE), não é de esperar um entendimento total em questões de política económica. Um reforço do protecionismo teria obviamente repercussões sobre a economia europeia, mas até que ponto a UE iria ressentir-se, já que os EUA são o seu maior parceiro comercial e o destino de um quinto das suas exportações?

Uma espada sobre a cabeça

“É pouco provável que haja novos acordos comerciais entre os Estados Unidos e a União Europeia, mas é muito mais provável que tanto Trump como Harris venham a impor mais medidas protecionistas”, acredita Ana Fernandes, professora do ISEG e especialista em Economia Internacional. “Durante o mandato anterior, Donald Trump impôs tarifas à importação de aço e alumínio da UE, mas o Presidente Biden não cancelou essas tarifas quando foi eleito. Estão suspensas até 2025, desde que a importação não ultrapasse determinadas quantidades, mas continuam a ser como uma espada sobre a cabeça dos europeus”, avança a economista.

Mesmo neste cenário, há diferenças entre os candidatos. O “homem das tarifas”, como Trump se autointitula, “vai certamente pressionar a UE a dissociar a sua economia da chinesa. A própria UE também tem uma política protecionista em relação à China, mas não consegue dissociar-se muito porque está demasiado dependente dela. Mas se forem aplicadas tarifas, muitos Estados-membros vão sofrer”, acrescenta ainda a docente do ISEG.

Nuno Sousa Pereira, partner da gestora de investimentos Sixty Degrees, também nota diferenças entre os programas económicos dos candidatos e admite “impactos diferentes” resultantes da vitória de republicanos ou de democratas. Sublinha, contudo, que a Europa será “a última geografia onde as tarifas terão efeito porque é o continente onde a indústria ficou mais para trás” nestes últimos anos.

Um estudo da Goldman Sachs indica que uma vitória de Trump teria um impacto na Europa de 150 mil milhões de euros, o que equivale a cerca de 1% do PIB da Zona Euro, decorrente das repercussões comerciais negativas. Alemanha, Itália e Finlândia seriam os países mais afetados, devido ao peso da atividade industrial nas suas economias.

“No futuro, o comércio não será o mesmo motor de crescimento de antes”, avisou recentemente a diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, apesar de a instituição que dirige apontar para um crescimento do PIB norte-americano de 2,8% em 2024 e de 2,2% em 2025, apoiado pelo consumo, enquanto na Zona Euro se prevê uma aceleração de apenas 0,8% em 2024 e 1,2% em 2025. “É como despejar água fria numa economia mundial já morna”, disse ainda, a propósito das tensões comerciais que se anteveem.

Apesar desse cenário, os mercados mostram-se tranquilos. “Estamos a ter um dos dois melhores anos dos últimos 20 nos mercados de capitais. E também um dos melhores de sempre em ano de eleições no último século”, diz Nuno Sousa Pereira. Existem, no entanto, alguns “sinais de alarme por parte dos bancos centrais”. Os cortes nas taxas de juro podem significar uma preocupação com um possível abrandamento da economia, mas, no dia 6 de novembro, “ninguém está à espera de uma reação muito forte dos mercados”. Para o financeiro, “os investidores antecipam todos os cenários” e já estarão a descontar os efeitos de uma vitória quer dos democratas, quer dos republicanos. A não ser que se repitam os tumultos de há quatro anos, quando apoiantes de Trump invadiram o Congresso norte-americano. Mas, aí, a “culpa” não será da economia.

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NATO – Defesa
O isolacionista e a realista

Donald Trump recusa ser o polícia do mundo, Kamala Harris diz que os EUA continuarão a ser a maior “força letal” do planeta

Que tipo de política externa se pode esperar de um narcisista inveterado? Aquela que lhe der mais jeito pessoal e melhor se ajustar aos seus negócios. Em julho de 1987, o então empresário nova-iorquino Donald Trump recebeu um convite para ir a Moscovo. Objetivo: erguer um hotel de luxo perto do Kremlin, que nessa altura tinha Mikhail Gorbachev como principal inquilino. O ambicioso construtor e a sua mulher, a checoslovaca Ivana Zelnicková, antiga modelo e instrutora de ski, ficaram alojados na suíte Lenine do National Hotel, a dois passos da Praça Vermelha. O casal acabou por ser recebido pelo líder comunista que queria reformar a União Soviética, embora não se conheçam pormenores do encontro, obviamente controlado pelos serviços secretos, o KGB. O que se sabe é que Trump não viu satisfeitos os seus intentos. Três meses depois, num anúncio publicado simultaneamente no New York Times, no Washington Post e no Boston Globe, que lhe custou uma fortuna – qualquer coisa como 95 mil dólares (a preços atuais, ajustados à inflação, cerca de 264 mil) –, o empresário escreveu uma prosa de teor político, algo nunca visto, em que argumentava algo muito simples: “A América não deveria pagar a defesa de países que podem muito bem defender-se à sua própria custa.”

Volvidos 37 anos, o candidato do Partido Republicano à Casa Branca não mudou de opinião. Os países da NATO, organização que considera “desnecessária”, obsoleta e constituída por “Estados-chupistas” – cujo contributo financeiro fica muito abaixo do que ele entende como mínimo –, deveriam aumentar as despesas militares. Caso contrário, Washington deveria rasgar todos os acordos político-militares com os seus aliados. Entre os 32 Estados-membros da Aliança Atlântica, há oito que não gastam sequer 2% do respetivo PIB em defesa, e serão esses os principais alvos das reiteradas críticas de Trump, caso se torne o 47º Presidente dos EUA. A saber: Portugal, Espanha, Itália, Bélgica, Luxemburgo, Eslovénia, Croácia e Canadá. Ric Grenell, um gestor especialista em comunicação política que Trump nomeou como embaixador na Alemanha, acusa a generalidade dos países da Europa de estarem “reféns” de uma mentalidade antiquada e da lógica do multilateralismo. Para este consultor que desempenhou também as funções de diretor nacional de Informações, a confirmar-se o regresso de Trump à Sala Oval, a futura Administração deveria apostar sobretudo em “coligações de vontade” e reduzir encargos com as Forças Armadas no exterior. Como o seu chefe já disse vezes sem conta, “a América não quer ser a polícia do mundo” e muito menos pagar para cumprir tal papel. Com quase 200 mil soldados em 73 países (mais de metade deles concentrados no Japão, na Alemanha e na Coreia do Sul), Trump repete agora, nos comícios, o mesmo que afirmou na campanha de 2016: “O povo americano quer ver o seu dinheiro bem aplicado. Aqui, não no estrangeiro, a alimentar uma globalização corrupta. Sou o Presidente dos EUA, não sou o Presidente do globo!”

Por seu turno, Kamala Harris quer manter todos os compromissos com os aliados históricos do seu país, nomeadamente a relação transatlântica, mas, tal como o seu adversário, também quer evitar intervencionismos excessivos. O preço da “guerra ao terrorismo”, da responsabilidade de George W. Bush, foi demasiado alto e os consultores da candidata do Partido Democrata tentam apresentá-la como uma “realista”, defensora da ordem internacional e continuadora da linha diplomática do homem a quem pretende suceder, Joe Biden. No entanto, o pragmatismo da antiga procuradora-geral da Califórnia não a impediu de, no congresso de Chicago, em agosto, ao aceitar a sua nomeação formal, ter feito uma promessa que pode ser igualmente interpretada como uma advertência aos rivais externos: “Garanto que a América vai continuar a ser a principal e mais letal força de combate do mundo!” Caso seja ela a 47ª Presidente, os EUA vão permanecer como os recordistas absolutos em matéria de despesa bélica: 855 mil milhões (3,6 mais do que, por exemplo, a República Popular da China, país com o segundo maior orçamento militar).

Cumprimentos Trump não esconde a sua admiração por Putin. Harris considera Zelensky um herói da liberdade

Rússia-Ucrânia
Quem faz o quê e mais depressa?

Candidato republicano promete acabar com o conflito ucraniano em 24 horas e a democrata diz que ajudará Kiev enquanto for preciso

Não é segredo que, no seu primeiro mandato (2017-2021), Donald Trump tinha a esperança de receber o Nobel da Paz, tal como acontecera com Barack Obama, em 2009, “pelos extraordinários esforços para reforçar a diplomacia internacional e a cooperação entre os povos”. Em praticamente todos os seus comícios, Trump sublinha que foi “o único Presidente dos EUA” que, neste século, “não iniciou nenhuma guerra”. Ou seja, tenta convencer toda a gente de que é um paladino do pacifismo global e de que lhe bastam “24 horas” para pôr termo ao conflito militar iniciado a 24 de fevereiro de 2022, em que as tropas do Kremlin invadiram a Ucrânia. No debate televisivo que o opôs a Kamala Harris, quando lhe perguntaram como o faria, respondeu à sua maneira: “Vou falar com um [Volodymyr Zelensky] e vou falar com o outro [Vladimir Putin]. Vou juntá-los (…) Eles respeitam-me!”

A candidata democrata também não se descose sobre como pretende resolver o impasse entre Moscovo e Kiev, argumentando apenas que é preciso manter o apoio ocidental a Zelensky (os EUA já “deram” 175 mil milhões de dólares), caso contrário a Rússia vai desestabilizar e invadir outros Estados no Centro e do Leste da Europa, como “a Polónia”: “É graças a nós que a Ucrânia se mantém como um país livre e independente.”

União Europeia
“Orbanização” e decadência

Ganhem republicanos ou democratas, Orbán nunca perde

Um dos grandes objetivos de uma futura Administração Trump é reduzir os défices comerciais dos EUA, e a União Europeia, logo a seguir à China, habilita-se a levar por tabela: 221 milhões de dólares no deve e haver entre os dois lados do Atlântico, com vantagem para o Velho Continente. Daí que alguns colaboradores de Trump tenham dito, na passada semana ao Financial Times, que alemães, franceses e afins terão de “pagar muito mais” à NATO, à ONU e, ainda, sujeitar-se a novas e mais altas tarifas alfandegárias nas exportações para a América. E a eleição de Kamala Harris também não evitará que o crescente protecionismo de Washington desperte entusiasmo em Bruxelas. No entanto, há um pormenor que faz toda diferença: Viktor Orbán, o primeiro-ministro da Hungria, o “democrata iliberal” que adora Trump e que também serve de inspiração ao líder republicano, juntos na cruzada contra a “decadência do Ocidente”. Árpád Habony, um dos principais estrategas do governante magiar, tem vindo a trabalhar com os conselheiros do ex-Presidente; e o Instituto Danúbio tem uma parceria privilegiada com a Heritage Foundation e o American First Policy Institute, os dois think tanks que mais influenciam o programa eleitoral republicano. Viktor Orbán promete “abrir champanhe” se o seu aliado ideológico cumprir um segundo mandato na Sala Oval e, a 7 de novembro, tem agendada uma cimeira de chefes de Estado e de governo da UE, em Budapeste, onde pretende celebrar a vaga conservadora global. Resta saber se haverá quórum nesta “orbanização”. Como escreveu recentemente Comfort Ero, a britânica que dirige o International Crisis Goup, a reeleição de Trump pode elevar como nunca o “moral da extrema-direita europeia”.

Guerra dos sexos Em Bruxelas, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, não esconde a sua preferência. Em Budapeste, Viktor Orbán aposta forte na eleição de Trump

Médio Oriente
A vende-promessas e o vende-Bíblias

Os eleitores árabo-americanos podem ser decisivos a 5 de novembro

Em 2016, na corrida à Casa Branca, perguntaram a Donald Trump qual a sua posição sobre o conflito israelo-palestiniano. Resposta: “Neutralidade.” Para desviar as atenções de alguns dos seus financiadores, sublinhou que era milionário e que se estava nas tintas para o dinheiro do lobby judaico. Viria depois a saber-se que Sheldon Adelson, o ultraconservador magnata do jogo, com casinos em Las Vegas, Macau e Singapura, amigo pessoal de Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro israelita, era um dos grandes mecenas de Trump. Adelson faleceu em 2021, mas a sua família continua a injetar dezenas de milhões no candidato republicano que jamais mostrou qualquer interesse na causa palestiniana. Se for reeleito, como deseja Netanyahu, o Estado judaico vai continuar a dispor de um aliado incondicional, os colonatos vão continuar a multiplicar-se (perto de 600 mil, quase o dobro desde 2016), não faltará armamento made in USA nas Tsahal (forças de defesa de Israel) e um cessar-fogo em Gaza, no Líbano e em todo o Médio Oriente dificilmente passará de uma miragem. Paradoxalmente, Trump diz agora que vai resolver a questão israelo-palestiniana “em 15 dias”, tal como garantiu o “acordo do século”, há quatro anos, em que o governo de Telavive estendia a sua soberania a 80% da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental, e ainda os acordos de Abraão, em que Telavive normalizou relações diplomáticas com os Emirados Árabes Unidos, o Bahrein, o Sudão e Marrocos. Palavra de candidato, que vende Bíblias a 59,99 dólares, com o seu inconfundível logo e debruados dourados.

Se Kamala Harris conquistar a Presidência, Trump profetiza que “Israel não existirá dentro de dois anos”. Ela assegura que defenderá sempre o Estado judaico, mas que “já morreram demasiados inocentes” e que “o povo palestiniano tem direito à dignidade, à liberdade e à autodeterminação”. A candidata democrata admite restringir a venda de material bélico à região, nomeadamente à Arábia Saudita. Boas intenções que podem não chegar para convencer muitos eleitores pró-palestinianos, em particular os árabo-americanos do Michigan, um dos sete estados que vão decidir o escrutínio.

África
O continente esquecido

Com os EUA desinteressados, China e Rússia avançam

Na primeira semana de dezembro, o ainda Presidente Joe Biden e o Air Force One vão aterrar na capital angolana para uma visita de Estado que deveria ter ocorrido no início de outubro e que acabou por ser cancelada devido ao furacão Milton. Não se trata de uma deslocação qualquer. É a primeira viagem que Biden faz à antiga colónia portuguesa e também a primeira vez, desde que tomou posse, que põe os pés em território africano. O seu objetivo é estabelecer uma parceria estratégica com o regime de Luanda, investir num megaprojeto de energia solar e ainda promover o renovado corredor do Lobito, a linha ferroviária de quase dois mil quilómetros que vem da República Democrática do Congo e da Zâmbia até ao porto angolano da província de Benguela. O antecessor de Biden também nunca foi a África e destratou o continente em diversas ocasiões, chamando-lhe “shithole” (eufemismo para “latrina”). Ou seja, ganhe Harris ou Trump, a China continuará a ser o principal interlocutor político e económico de Angola, África do Sul, Nigéria, Egito e Argélia. Pequim já tem uma base naval no Djibuti e pretende fazer o mesmo no Gabão e na Guiné Equatorial, ao mesmo tempo que Rússia, Índia e Turquia tentam reforçar a sua influência na região. Para Brian Wanyama Singoro, académico sul-africano, “os EUA ameaçam perder o continente para o Oriente”.

América Latina
Os hispânicos dirão de sua justiça

Kamala tergiversa e Trump quer sobretudo deportar migrantes para o México

Em Washington D.C., há o hábito de chamar Western Hemisphere às Américas. Só que as elites dos EUA prestam muito pouca atenção à América Latina e às Caraíbas, também classificadas como “backyard” (pátio das traseiras), desde que o Presidente James Monroe (1817-1825) definiu a doutrina com o seu apelido, com o propósito de impedir as potências coloniais europeias de interferirem nos assuntos do Novo Mundo.

Os programas de Donald Trump e Kamala Harris refletem este aparente desinteresse. O candidato republicano responsabiliza os vizinhos do Sul por quase todos os males do planeta, descrevendo-os como violadores, ladrões, narcotraficantes e vândalos que até comem cães e gatos. Daí que uma das suas principais promessas seja “deportar em larga escala” todos os imigrantes que estão em situação irregular – cerca de 11 milhões, um terço dos quais são mexicanos – e, se necessário, mobilizar as Forças Armadas para os conter e os empurrar para lá do Rio Grande.

Enquanto vice-presidente de Joe Biden, Harris tutelou as questões migratórias e da segurança fronteiriça, mas assegura que, caso seja eleita, pretende reforçar as zonas raianas com melhores equipamentos tecnológicos para controlar os fluxos migratórios e de drogas, bem como recrutar 1 500 novos guardas que patrulhem os três mil quilómetros que separam os EUA do México. No que diz respeito a Cuba, ao Haiti, à Venezuela, à Nicarágua e à crescente influência da China no Brasil, na Colômbia e na Argentina, nada. Como tem repetido Tom Malinowski, congressista, diplomata e antigo diretor da Human Rights Watch, “Kamala não teve tempo para preparar um programa de política externa”. Nos próximos dias, saberemos se é ou não verdade, graças aos 36 milhões de eleitores hispânicos.

Ásia
Bloquear o Império do Meio

A China é dos poucos temas em que Trump e Harris conseguem estar de acordo, para evitar o declínio dos EUA

Para Kamala Harris, Donald Trump é um mentiroso, um incompetente e um fascista que adoraria ter generais com comportamentos nazis. Para o ex-Presidente, a candidata democrata é uma marxista, uma troca-tintas e uma atrasada mental. Curiosamente, embora ambos se insultem e contribuam para que 76% dos americanos afirmem que a democracia dos EUA está sob ameaça – de acordo com uma sondagem do New York Times e do Instituto Sienna –, há algo em que ambos concordam: a República Popular da China não pode suplantar a América como potência hegemónica até ao final do século XXI. Podem ter estratégias e abordagens distintas, mas, como ficou patente no debate televisivo de 10 de setembro, um e outro são nacionalistas e adeptos de um imperialismo virtuoso para conter o regime de Pequim. Como diria Bill Clinton e a sua falecida secretária de Estado, Madeleine Albright, primeira mulher a chefiar a diplomacia de Washington, os EUA são a “nação indispensável”.

A 6 de novembro de 2012, quando punha em causa a veracidade da certidão de nascimento de Barack Obama, o então empresário e estrela mediática escreveu um tuíte premonitório da Guerra Fria 2.0 que os EUA e a China agora travam: “O conceito de aquecimento climático é uma invenção dos chineses para que a nossa indústria seja menos competitiva.” Mal chegou à Casa Branca, em 2017, Trump fez gala em assumir-se como o “tariff man” (o senhor das taxas) e iniciou um conflito comercial que parece estar para durar. O seu sucessor, Joe Biden, manteve e agravou as práticas protecionistas, alegando que o executivo de Pequim usa e abusa de expedientes para distorcer a concorrência. Em maio, a Casa Branca anunciou aumentos de 25% nas importações de aço e de alumínio, de 50% nos semicondutores e de 100% nos veículos elétricos. Quem vier a ocupar a Casa Branca vai manter estas medidas, dirá que é preciso menos interdependência entre as duas maiores economias do mundo e que os EUA têm de zelar pelos seus interesses, face a um país de 1 400 milhões de almas sem direitos laborais, ou de qualquer outro género, que põe em causa a segurança e a ordem internacionais. Trump, a ave rara do populismo contemporâneo, já mostrou que é capaz de tudo – incluindo aceitar a integração de Taiwan, a ilha rebelde, na China continental, por simples lógica mercantil. Quanto a Kamala Harris, se for ela a 47ª Presidente, estará disposta a imitar Richard Nixon e a fazer de “homem louco”? O governante que reconheceu a república comunista e protagonizou o escândalo Watergate achava que, para confundir os soviéticos, poderia comportar-se de forma errática e estouvada. Irá Kamala rir a bandeiras despregadas para que os chineses a julguem capaz de carregar no botão nuclear? Trump afirma que só ele consegue “evitar a III Guerra Mundial”… 

Stephen Marche

Jornalista e autor do livro “A Próxima Guerra Civil”

“O maior perigo é ninguém saber quem ganhou a eleição”

O perigo não está na vitória de qualquer um dos candidatos, mas antes na indefinição que possa ocorrer na noite das eleições, segundo o autor de origem canadiana, que alerta para o facto de o sistema político americano promover ativamente a estupidez

No seu livro, afirma que a América está perto de uma guerra civil. O risco desse cenário aumenta com as eleições de 5 de novembro?
Aquilo que descrevo no meu livro não é propriamente a “corrida de cavalos” eleitoral. O caos político em que a América mergulhou vem de problemas estruturais profundos e não resolvidos no país: a confiança decrescente em instituições de todos os tipos, a desigualdade impressionante, o duopólio político que se transformou numa toxicidade hiperpartidária e o colapso da legitimidade do sistema legal. Então, esta eleição é perigosa, mas todas elas serão a partir de agora. Um pequeno ponto: eu definitivamente não diria que a guerra civil é inevitável. O que eu sublinho é que as tendências apontam nessa direção e não vejo qualquer tentativa séria para evitar a queda nesse abismo.

O que terá um efeito mais catalisador, uma vitória de Donald Trump ou uma vitória de Kamala Harris?
Uma vitória clara de Trump ou de Harris seria uma força estabilizadora. O maior perigo que a América enfrenta neste momento é o de ninguém saber quem ganhou a eleição. Isso é que seria o mais parecido com um cataclismo.

Estaremos a assistir ao fim da União como a conhecemos?
A União já não é uma união. Basta ver um pequeno exemplo, que é o que está a acontecer com as leis sobre a interrupção voluntária da gravidez nos Estados Unidos da América. E o que vemos é uma enorme manta de retalhos. Qualquer mulher americana, dependendo do condado em que esteja, tem direitos e deveres diferentes. Ou seja, não se sabe, neste momento, o que significa exatamente a cidadania americana. E foi isso precisamente que precedeu a primeira guerra civil (1861-1865).

Ainda existem forças internas nos EUA com poder e mobilização suficientes para evitar os piores cenários?
Sim, existem. Acho que vale a pena sublinhar que dois terços dos americanos, pelo menos, são pessoas sensatas e razoáveis que querem um governo sensato e razoável. O sistema, por outro lado, promove ativamente as piores forças na política, com a retórica mais divisiva. E, sem ser muito direto sobre isso, promove também ativamente a estupidez. A questão que a América enfrenta no momento é se a maior parte sensata do país pode anular a estupidez fundamental do seu sistema. Não posso dizer quem vencerá essa luta.

No seu livro afirma também que a força da América sempre residiu no poder da esperança. Ainda é legítimo ter esperança numa América mais justa e melhor?
A América é o país mais diverso do mundo. É o país mais aberto do mundo. É o país mais rico do mundo. E ainda é o país onde as ideias florescem. A América passou por colapsos terríveis – a guerra civil, o tumulto dos anos 60… Antes disso, houve a guerra de 1812, a Rebelião do Uísque, a eleição de 1824, a eleição de 1876. Se a América emergir do pesadelo em que se meteu, será o maior país do mundo por mais um século. Ela sempre soube renascer depois de se destruir. — R.T.G.

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O investigador e docente André Freire morreu, esta quarta-feira, aos 63 anos, anunciou a RTP.

Segundo a estação pública, André Freire tinha sido sujeito a uma intervenção cirúrgica a um ombro no Hospital da Luz, em Lisboa. No pós-operatório, terá contraído uma infeção e foi transferido para o Hospital São Francisco Xavier, onde acabou por morrer.

André Freire era professor de Ciência Política no ISCTE e comentador na RTP para assuntos internacionais. Era também colunista do Público. Era diretor do Departamento de Ciência Política do ISCTE desde 2015. Dirigiu vários projetos de pesquisa sobre comportamento eleitoral e reformas políticas e lecionou e apresentou conferências em várias universidades em Portugal e no estrangeiro.