Sabendo nós o que sabemos sobre a indústria cinematográfica de Hollywood, é mais do que provável que esta história dê um filme – a realidade, infelizmente, supera sempre a ficção. Recordemos os factos: na última segunda-feira, 9, no estado norte-americano da Pensilvânia, foi capturado Luigi Mangione, um homem de 26 anos, suspeito da morte do diretor-executivo da seguradora UnitedHealth, Brian Thompson, atingido à queima-roupa, à porta do hotel Hilton, em Manhattan, em Nova Iorque, na semana passada.
Após uma caça ao homem que durou cinco dias, o suspeito – que entretanto já foi acusado de homicídio, falsificação de documentos e posse ilegal de armas – foi visto a comer num restaurante da cadeia McDonald’s por um empregado que o achou parecido aos retratos divulgados pela polícia. Mangione deixou um manifesto de três páginas a condenar a indústria dos seguros, que segundo ele põe os lucros acima da prestação de cuidados de saúde. “Estes parasitas merecem-no”, terá escrito. De acordo com vários meios de comunicação, também gravou “negar”, “defender” e “depor” em cartuchos de balas encontrados na cena do crime. As palavras remetem para o título de um livro muito crítico das seguradoras, publicado em 2010, Delay, Deny, Defend: Why Insurance Companies Don’t Pay Claims and What You Can Do About It, da autoria de Jay M. Feinman.
Na própria noite da captura, houve manifestações contra a indústria junto ao McDonald’s de Altoona (a fotografia que ilustra estas linhas é disso um exemplo). Em conferência de imprensa, o governador da Pensilvânia, o democrata Josh Shapiro, apressou-se a condenar a resposta online que obtiveram os crimes cometidos por Mangione, graduado em Engenharia e em Ciências Computacionais na Universidade da Pensilvânia, uma das instituições mais prestigiadas do mundo. Shapiro explicou que entende as frustrações das pessoas com o sistema de saúde dos EUA, mas advertiu: “Não matamos pessoas a sangue-frio para resolver diferenças sobre políticas públicas nem para exprimir um ponto de vista. Em alguns cantos sombrios, este assassino está a ser aclamado como um herói. Ouçam-me: ele não é um herói. O verdadeiro herói desta história é a pessoa que, esta manhã, no McDonald’s, ligou para o 911.”
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Mangione cresceu no Maryland, viveu em São Francisco e, mais recentemente, em Honolulu, no Havai, onde esteve a trabalhar remotamente. Para matar, terá usado uma arma-fantasma, isto é, uma arma cujos componentes são comprados online, sem número de série e, por isso, muito difícil de rastrear. Quando foi preso, tinha consigo uma arma impressa em 3D e um silenciador. Nos últimos seis meses, deixou de comunicar com a família e com os amigos e, entretanto, já há relatos de que estaria em sofrimento físico, com uma lesão nas costas.
Nada apontava, portanto, para que Luigi Mangione fizesse o que parece ter feito. Os preconceitos são sobretudo pré-conceitos, ou seja, considerações prévias, baseadas em mentiras e em pressupostos, não raras vezes, sem qualquer adesão à verdade. Um jovem de boas famílias, formado numa das melhores universidades do mundo, pertencente à Ivy League, pode ser um criminoso – sob o manto diáfano de uma causa justa, atirou a matar. Antes de ser transformado num filme de Hollywood, do caso da morte trágica de Brian Thompson já é possível tirar umas quantas lições. A primeira delas é a de que, neste lado do Atlântico, os europeus não podem deixar de valorizar os seus sistemas de saúde, baseados no princípio da universalidade. Mas a segunda também é a de que a revolta, propagada pelas lógicas facilitistas dos algoritmos, não pode ser uma arma. A não ser que queiramos regressar ao estado teorizado por Thomas Hobbes em Leviatã, em que “o homem é o lobo do homem”.
Os bombeiros sapadores são os recentes protagonistas de mais uma manifestação desordeira, digna de um qualquer grupo de meliantes.
Convém desde já deixar claro que não posso concordar mais com as reivindicações dessa classe profissional: são muito mal pagos e as suas carreiras não são valorizadas. É urgente que tenham melhores salários e que a sua profissão se torne atrativa para os jovens, pois vamos precisar cada vez mais de bombeiros profissionais, bem preparados e motivados. Não podemos deixar a voluntários bem-intencionados tarefas que serão cada vez mais difíceis e que exigirão um elevado nível de profissionalismo: as alterações climáticas assim o exigem. Devemos estar todos agradecidos aos bombeiros voluntários, mas a emoção que os seus sacrifícios geram não deixa, demasiadas vezes, a razão analisar o seu desempenho.
Acresce a esta minha solidariedade a incompreensão pelo desprezo com que os bombeiros têm sido tratados, num momento em que chove dinheiro para praticamente todas as classes profissionais ligadas ao Estado. A proposta de revisão salarial faria na prática com que ganhassem o mesmo ou menos e não há razão nenhuma para que o subsídio de risco de um polícia seja 350 euros e de um bombeiro 37.
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Tudo isto tem importância, mas não afasta o inaceitável comportamento dos bombeiros. E, no entanto, é previsível que nada aconteça aos participantes naquela pouca-vergonha. Melhor, há um clima que ajuda quem não quer cumprir mandatos básicos da vida em comunidade e os exemplos vêm exatamente de onde não podiam de maneira nenhuma vir.
Que tipo de autoridade se pode invocar quando os polícias fazem sistematicamente ainda pior? Ninguém se esqueceu das tentativas de galgar as escadas do Parlamento e muito menos da manifestação selvagem à porta do Parque Mayer, enquanto decorria o debate entre os líderes dos maiores partidos portugueses.
A propósito, o mesmo Ministério Público que arquivou a investigação aos desacatos e aos seus responsáveis em poucas semanas é o mesmo que deixa políticos e outros “poderosos” anos a fio com o ferrete de suspeitos e os escuta outros tantos sem qualquer resultado.
No mesmo sentido, que devem os cidadãos pensar quando são deputados a não cumprir regras básicas de comportamento e a violar leis e regulamentos? Alguém ouviu falar de algum levantamento de inquéritos aos selvagens que conspurcaram as fachadas da Assembleia da República? Ficam impunes, é? Obviamente que sim. São os mesmos que berram, insultam e injuriam outros deputados em pleno hemiciclo; os mesmos que insultam valores constitucionais em pelo Parlamento. Estes não precisam de se preocupar com regras, vivem sob o olhar complacente do presidente da Assembleia da República. O tal que adverte deputados que usam palavras como criancice ou que se insurgem contra discursos racistas, mas que é compreensivo com quem cospe na Constituição ou difama figuras como Mário Soares.
Aguiar-Branco é corresponsável pelo ar irrespirável que lá se vive, promotor do ambiente de tasca em que o mais sagrado local da democracia portuguesa se tornou. Aplicar o regulamento? Nem pensar. Segundo uma conhecida doutrina, não se deve aplicar a lei porque isso dá mais força aos que a violam. Espero pacientemente a explicação do douto advogado Aguiar-Branco para a possibilidade de se aplicarem penas para outros regulamentos e leis.
Estamos perante casos que mostram uma evidente crise de autoridade. Há, no entanto, uma diferença. Os deputados que cometem estes atos têm o objetivo bem definido de criar o caos que conduza a uma descrença nas instituições e por consequência na própria democracia. Assim, quem não os condena, quem não os impede de atacar as instituições torna-se cúmplice do atentado à democracia. Resume-se, neste caso, a um presidente da Assembleia da República que não sabe desempenhar o seu cargo.
No caso dos polícias, é a autoridade do Estado que é posta em causa.
O desprezo pela autoridade vir de quem vem constitui um perigo notório para a comunidade. No fundo, se quem tem a responsabilidade de impor a autoridade não a respeita, como esperam ser respeitados quando a têm de impor a outros?
Chega a ter piada ver que os que estão sempre com os problemas de autoridade e insegurança na boca são os mesmos que têm atitudes boçais contrárias aos regulamentos no Parlamento e que apoiam os polícias que não cumprem os seus deveres.
Estes sinais de perda de autoridade não são de desprezar. Bem pelo contrário. A falta de confiança em instituições muito relevantes e a consequente perda de autoridade leva a que elas se tentem legitimar pelo abuso dos seus poderes. Ora, esta é das coisas piores que pode acontecer numa democracia.
Nasci com uma ligação profunda à música, antes mesmo de proferir as primeiras palavras. O som da guitarra clássica tocada pelo meu pai preenchia toda a casa, e mesmo após perder a audição na primeira infância, conseguia sentir as vibrações das cordas através do contacto físico. Graças à influência dos meus pais, mergulhei cedo na diversidade musical dos anos 80 e 90, participando em concertos ao vivo e ouvindo música em várias formas.
Contudo, a minha surdez agravou-se e a música perdeu o seu encanto devido à estática e interferências nos aparelhos auditivos. A frustração substituiu o prazer musical, e comecei a depender das vibrações das ondas sonoras que emanavam das gigantescas colunas de som. Descobri cedo que ouvir pela audição e sentir através do tato não são experiências semelhantes. Vai muito além, superando a própria ficção de quem não ouve e afirma compreender.
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Anos depois, com a melhoria da qualidade auditiva proporcionada pela cirurgia de implante coclear na idade adulta, finalmente experimentei a singularidade do fado português. Em pequenos estúdios improvisados nas casas da cultura, senti os pêlos do meu corpo eriçarem-se perante vozes tremeluzentes, carregadas de sentimento, e a saudade expressa ao som da guitarra portuguesa. Foi a primeira vez que chorei ao ouvir fado, algo que não conseguia fazer com aparelhos auditivos. O implante coclear restituiu-me esta parte do mundo perdido, embora ainda faltasse algo para me sentir completa.
Com o segundo implante coclear no ouvido direito, mergulhei na atmosfera sonora envolvente. A experiência auditiva passou a incluir streaming de música, acesso a entretenimento com tecnologia assistiva aprimorada, e assistir a peças artísticas no Teatro da Trindade ou na Casa da Música com tecnologia de aro de indução magnética, sentindo a essência cativante e os detalhes de cada timbre e voz.
Recentemente, participei no Ibis MUSIC Silent Concert, o primeiro em Portugal a usar tecnologia de bucle magnético, que proporciona uma experiência sonora clara e nítida para utilizadores de aparelhos auditivos e implantes cocleares, além de músicas legendadas – uma experiência totalmente imersiva ao vivo. Ao chegar, fui recebida num ambiente intimista incrível, com decoração, tecnologia instalada e simpatia dos organizadores. Quando a apresentação começou, ativei a opção do T-Coil e fiquei maravilhada com a clareza do som e a experiência envolvente que me fez sentir novamente normal. Foi uma experiência espetacular e inesquecível que espero ver replicada em futuros concertos acessíveis por todo o País.
O Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, celebrado na semana passada, foi um momento de reflexão sobre as conquistas, progressos e retrocessos nas áreas de Direitos, Legislação e Acessibilidade em Portugal. Este dia foi crucial para aprofundar a compreensão de quanto ainda há por fazer na construção de uma sociedade inclusiva, onde as Pessoas com Deficiência possam usufruir de todos os direitos humanos, acessibilidade imediata e liberdades fundamentais, sem as limitações estruturais que ainda persistem no país, em contravenção com a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada em 2006 pelas Nações Unidas.
Infelizmente, como Alice Inácio, Pessoa com Deficiência Auditiva desde os 18 meses e utilizadora de Implante Coclear Bilateral na idade adulta, tendo passado pela escolaridade regular, faculdade e, posteriormente, a nível laboral, constatei há muito que tanto o setor público como o privado não têm atendido adequadamente às necessidades das Pessoas com Deficiência Auditiva, cujo modo de comunicação é oral. A minha experiência como ativista, representante e apoiante de poucas instituições revela a falta de suportes gerais e equipamentos digitais indispensáveis, como legendas, loops magnéticos para espaços de atendimento, gabinetes de escritório e salas de reuniões. O ato de indução magnética é ideal em pavilhões de grandes dimensões, sendo extremamente útil em espaços amplos e ruidosos, onde é difícil para pessoas com perda auditiva captar claramente os sons. Este equipamento transmite os sons diretamente através de rádio-frequência para os aparelhos auditivos e implantes cocleares, tornando os sons claros e compreensíveis a nível de fala e música. A tecnologia recente do Auracast também é relevante.
Estes recursos devem estar presentes em Centros de Saúde, Hospitais, Escolas, Universidades, Serviços Públicos, Segurança Social, IEFP, Bancos, Telecomunicações, Correios, Transportes e grandes recintos de espetáculos, como a MEO Arena, e a clara informação de atribuição de produtos de apoio nos postos de trabalho das Empresas, para garantir uma integração efetiva. É preocupante o desconhecimento e a falta de ação de governantes e representantes, que não compreendem as necessidades específicas das Pessoas com Deficiência Auditiva que utilizam dispositivos de escuta e dependem de acessibilidade total. A verdadeira inclusão só será alcançada quando houver uma consciência generalizada de que o acesso digital completo e de qualidade é essencial para a participação das pessoas com deficiência auditiva em todos os quadrantes da vida.
José Miguel Almeida, 49 anos Fisioterapeuta
José Almeida. Foto: D.R.
Aos 14 meses, sofri uma queda de cerca de 1,50m de altura, que me deixou em estado de coma durante 3 meses e sem falar até aos 5 anos.
Volvidos 39 anos, iniciei um quadro muito idêntico a AVC isquémico, com paralisia de Bell, espasmos hemifaciais, perda súbita de audição, tonturas, vertigens, náuseas, pressão no olho do lado da paralisia.
Após muitas opiniões médicas, encontrei um neurocirurgião que trata e opera casos raros como este. Trata-se de microcompressão no VII e VIII par de nervos cranianos direitos (nervo Vestibular e Glossofaríngeo), na zona de AICA. Fiquei sem uma parte da zona cranial (occipital, ângulo pontocerebelar), tendo uma plastia, que mesmo assim, deixa passar algum líquido cefalorraquidiano, causando alguns transtornos de dor crónica occipital.
Realizaram-me uma cirurgia inédita a nível mundial em 2016, e iniciaram estudos fisiológicos no meu corpo para casos futuros. Nesta cirurgia, foram-me colocadas 32 peças de teflon, para minimizar a causa e não para tratar. Por já ter cofose no ouvido esquerdo, foi-me realizado uma cirurgia para implante coclear. No lado oposto, uso um aparelho auditivo, para melhor escuta e perceção de palavras, sons e espaço.
Desde a primeira cirurgia, já ocorreram mais 5, sendo a última para colocar um elétrodo PEN (estimulador de nervo periférico) na zona occipital, para aliviar a dor crónica.
Fiquei com hipersensibilidade a fatores como a pressão atmosférica, e eletromagnéticos. Quando estes se alteram rapidamente, o meu corpo não consegue acompanhar a rapidez e entra em falência, dor, sintomatologia e patologia.
Trabalhei como Técnico de Emergência Pré-Hospitalar, fui colaborador do Estado de 2008 a 2022, no INEM e, fui de igual tempo, bombeiro. Formei-me em Espanha em Osteopatia, e atualmente exerço a atividade e estudo na Universidade Jean Piaget.
Estou reformado por invalidez relativa, com incapacidade de 77 por cento. Estou em constante adaptação aos meios por onde ando.
Como experiência de pessoa com incapacidade, noto que a sociedade, de forma geral, não está preparada para receber e entender pessoas como eu. Sobre a surdez, os ruídos são constantes, abafando os sons naturais e até mesmo os sons vocais. Logo, uma conversa em locais como num café ou restaurante, pode comprometer o diálogo e compreensão, não só com as pessoas com quem convivo, como também, com quem me pode vir atender. Procuro locais com pouco nível de ruído, de forma a que possa entender de forma nítida. Não se trata bem de isolamento, mas sim de procura de bem-estar e homeostase para o meu caso. Como tenho algumas suturas de dimensões consideradas, em alguns locais nota-se que algumas pessoas sentem maior comoção e até medo. Já me aconteceu por duas vezes estar sentado a uma mesa para almoçar e ser convidado pelo gerente a mudar de mesa por clientes terem acesso visual às minhas suturas e não conseguirem suportar tal visão. O mesmo acontece com o implante coclear, sobre o qual sou constantemente questionado.
António Miranda, 46 anos Engenheiro Electrotécnico e de Computadores, Controlo e Robótica
António Miranda. Foto: D.R.
À nascença já enfrentava as minhas limitações físicas, pois foi-me diagnosticado um problema no olho esquerdo – coloboma, deformação na íris, ou síndrome de olho de gato -, que provocou a perda da visão central desse olho. O direito não foi afetado, mas a condição era limitativa – algumas atividades que exigiam descer e subir escadas, ginástica ou educação física e situações que implicavam ver em profundidade (como servir à mesa, mais tarde) revelam-se desafiantes e resultaram em situações aparatosas. Por um lado, sempre fui tratado com naturalidade e exigência, por outro, em momentos lúdicos, senti-me um pouco rejeitado.
Na adolescência, aos 15/16 anos, comecei a sentir dificuldades em ouvir sons subtis ou agudos, como o tic-tac de um relógio ou um canto de um galo. Foi por aí que comecei a aventura auditiva. No fim do ensino secundário complementar já usava próteses auditivas e conseguiu concluir com êxito o curso de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores, de Controlo e Robótica, no IST/Lisboa. Nas salas de aula ou anfiteatros, com má acústica e presença de ruído (colegas a sussurrar, por exemplo), necessitava do apoio de colegas para me passarem apontamentos das aulas que não percebia ou tinha dificuldade em ouvir. Com o evoluir da situação ou perda auditiva, foi-me diagnosticada otosclerose, que foi sempre agravando a condição auditiva.
Em 2007, o médico que me acompanhava, o Dr. Fernando Rodrigues, em Coimbra, face à perda auditiva mais evoluída, recomendou-me a cirurgia de implante coclear num dos ouvidos, continuando com prótese auditiva no outro.
O ruído e a má acústica sempre foram um entrave, os piores inimigos mesmo, na comunicação oral. E em espaços com muitas pessoas, em espaços abertos, e por vezes, tinha de desligar os aparelhos auditivos, pois sentia-me perturbado. Nunca usufruí de acessibilidade como o aro de indução (ou loop) magnético, nem outra tecnologia assistiva. Mas, foi sempre fundamental, e cada vez mais, a legendagem escrita, porque também desenvolvi uma condição, que é a síndrome de Charles-Bonnet, de ouvir sons e vozes, por vezes, distorcidamente, que leva a que seja confundida por esquizofrenia.
Nos últimos anos, e após pandemia da Covid-19, passei a usar muito a comunicação online e videoconferência com recurso a legendagem acessível.
João Paulo Mota, 50 anos Gestor
João Paulo Mota. Foto: D.R.
Sofro de hipoacusia neurossensorial bilateral severa a grave desde criança, mas só deram conta de que tinha algum problema por não responder às questões das educadoras. Como o meu pai tinha epilepsia, pensaram que também poderia estar a desenvolver esta patologia. Depois de electroencefalogramas atrás de electroencefalogramas, medicação de psiquiatria, chegou-se à conclusão que o problema não era psiquiátrico, mas sim de audição. Andei a ser seguido pelo otorrino no Hospital Maria Pia até à véspera de fazer os 18 anos. A partir daí, passei a ser acompanhado no Hospital de São João, pelo otorrinolaringologista Dr. Eduardo Cardoso que, incansavelmente, fez de tudo para descobrir a causa da hipoacusia neurossensorial bilateral. Após imensos exames e despistes, o Dr. Eduardo chegou à conclusão que não sabia explicar a origem, que tanto podia estar na gestação como numa otite mal curada…
A perda de audição fez com que só desenvolvesse a fala aos 7 anos.
Durante o meu percurso escolar, apesar de ter sido aconselhada pelo médico de otorrino a utilização bilateral de aparelhos auditivos, nunca os utilizei, por vergonha, por não querer ser alvo de chacota dos meus colegas. Durante o secundário e faculdade continuei, pela mesma razão a nunca querer os aparelhos auditivos, o que fez com que me refugiasse no meu canto e me isolasse de todos.
Quando comecei a trabalhar como administrativo no atendimento numa unidade de saúde, comecei a ter imensas dificuldades de ouvir os utentes, devido ao aumento da perda de audição.
Com a utilização das próteses auditivas, eu passei a ouvir aquilo que não ouvia e isso veio, sem dúvida alguma, revolucionar a minha forma de estar, de conviver com os meus colegas de trabalho sem qualquer problema.
E foi uma colega de trabalho, a Adelaide João, a quem agradeço, que teve um papel fundamental ao incentivar-me a utilizar as próteses auditivas sem ter vergonha, e sem medos. Ainda me lembro de ela me dizer: “Utilizas óculos, correto? Essas próteses é a mesma coisa, é para passares a ouvir melhor e é para o teu bem-estar físico e mental.”
A partir daí nunca mais tive vergonha de utilizar as próteses auditivas e estas devolveram-me a qualidade de vida que há muito desconhecia.
Se eu tenho hipoacusia neurossensorial bilateral grave a severa, nunca mais irei ter uma audição normal… só a tenho porque tenho as próteses auditivas, e daí a Associação Ouvir lutar junto dos nossos governantes que tenhamos acesso ao atestado médico multiusos de incapacidade a partir dos 30% (para quem sofre de perda de audição). E haver legendas em todos os programas, de modo que cheguem a todas as pessoas. Só espero que não sejamos esquecidos, pois apesar de sofrermos de perda auditiva, somos pessoas como outras quaisquer.
A Toyota revelou o Urban Cruiser, um SUV compacto 100% elétrico que marcará a sua entrada no competitivo segmento de utilitários elétricos na Europa. O Urban Cruiser apresenta um design que a Toyota descreve como “impactante”, com linhas inspiradas no conceito Urban Tech. A frente do veículo é marcada pela nova linguagem de design da marca, apelidada de “tubarão cabeça de martelo”, e os para-choques dianteiro e traseiro contribuem para um visual assertivo. A assinatura luminosa estende-se por toda a largura da porta da bagageira, realçando o design dos guarda-lamas.
Agilidade urbana
Com dimensões compactas – 4,285 metros de comprimento, 1,8 metros de largura e 1,64 metros de altura – e um raio de viragem de apenas 5,2 metros, o Urban Cruiser foi pensado para enfrentar os desafios das cidades europeias. Apesar disso, promete um interior surpreendentemente espaçoso, graças à distância entre eixos de 2,7 metros, superior à do Yaris Cross. Uma consequência de este SUV estar assente numa plataforma criada de raiz para carros 100% elétricos.
O espaço interno foi desenhado para maximizar o conforto e a funcionalidade. Os bancos traseiros deslizantes permitem ajustar a configuração para dar prioridade ao espaço dos passageiros ou à capacidade da bagageira, enquanto os bancos rebatíveis em 40:20:40 oferecem flexibilidade extra. Além disso, o painel de instrumentos minimalista e horizontal melhora a visibilidade e cria uma sensação de amplitude.
Duas opções de bateria e tração integral disponível
O Urban Cruiser estará disponível com duas opções de bateria, 49 kWh e 61 kWh, e duas configurações de tração: dianteira ou integral. A versão com tração integral contará com um motor elétrico adicional no eixo traseiro, aumentando a estabilidade e segurança em pisos escorregadios. Ambas as baterias utilizam tecnologia de fosfato de ferro-lítio, as LFP, reconhecida pela sua durabilidade e segurança.
tração dianteira ou integral.* Ambos utilizam a tecnologia de fosfato de ferro-lítio, com a vantagem da durabilidade, segurança e custo reduzido. A aceleração é rápida e linear, tanto no arranque como em velocidades de ultrapassagem.
Relativamente à motorização, o Urban Cruiser com bateria de menor capacidade estará disponível exclusivamente na versão com tração dianteira (FWD), anunciado uma potência de 106 kW (144 cv). Na versão com bateria de maior capacidade e FWD, a potência sobre para 128 kW (174 cv). Em determinados mercados Europeus, o Urban Cruiser será também proposto com tração integral. Nesta versão, a potência subirá para 135 kW / 184 cv.
Todas as versões do Urban Cruiser estão equipadas com uma bomba de calor economizadora de energia para o sistema de ar condicionado e um pré-aquecimento manual da bateria para otimizar o desempenho em condições mais frias.
Tecnologia a bordo
O Urban Cruiser está equipado com as mais recentes tecnologias de segurança, incluindo sistema de pré-colisão, controlo de velocidade de cruzeiro adaptativo, alerta de saída da faixa de rodagem e assistência à manutenção na faixa de rodagem. Um sistema de câmara de 360 graus facilita as manobras em espaços apertados. O painel de instrumentos digital de 10,25 polegadas e o ecrã multimédia de 10,1 polegadas estão integrados numa única unidade, oferecendo navegação por satélite com informação de tráfego em tempo real e integração com smartphones.
Toyota e os elétricos
A introdução do Urban Cruiser será importante para a eletrificação da gama da Toyota. A marca planeia ter 15 veículos com emissões zero na sua gama até 2026, embora só seis a bateria. Esta estratégia multi-tecnologia, que inclui híbridos, híbridos plug-in e veículos elétricos com pilha de combustível a hidrogénio, visa reduzir progressivamente as emissões de CO2 e contribuir para o objetivo de neutralidade carbónica da Toyota Motor Europe até 2040.
O Toyota Urban Cruiser será apresentado ao público no Salão Automóvel de Bruxelas de 2025. Os preços e as especificações finais para o mercado português serão anunciados numa fase posterior.
Não sei como os alunos do secundário chamam, hoje, àquelas horas sem nada para fazer encaixadas entre duas aulas, ou porque o professor falta ou porque o horário é mesmo assim. Nós chamávamos-lhe “feriado”. E lembro-me que às terças-feiras, mas já nem sei bem de que ano, tinha um “feriado” estrategicamente colocado a meio da manhã. Rapidamente o ocupei com um ritual. Despistava os colegas e eventuais programas de grupo, saía sozinho do liceu, ia comprar o Blitz e corria para o Café Monteneve esperando que a mesa da janela estivesse livre. Pedia um café, vício recente, e devorava o jornal que nesse dia chegava às bancas de todo o País. Tudo isto, recordo, dava-me um grande prazer. Ali, na Guarda, era transportado para sítios e imaginários desconhecidos. Imaginava vividamente o mítico Rock Rendez-Vous (onde nunca pus os pés), na minha cabeça soavam músicas e canções que só podiam ser inventadas no momento a partir do que lia (quem cresceu com a música acessível imediatamente com um simples toque num ecrã dificilmente imagina o que era passarem semanas até conseguirmos ouvir determinada canção, banda ou artista…), divertia-me com as bocas dos Pregões & Declarações, uma espécie de rede social onde a resposta a um insulto (entre metaleiros, vangs, betos…) ou a uma busca romântica (“Estavas com uma t-shirt dos Sonic Youth na primeira fila do concerto…”) demorava uma semana a chegar, em papel impresso. No Monteneve, estava longe dali.
No início de novembro, Ron Dermer, ministro dos Assuntos Estratégicos e um dos principais colaboradores de Benjamin Netanyahu, o chefe do governo de Israel, viajou para Moscovo, na maior das discrições. Objetivo: pedir ao Kremlin para que o regime sírio de Bashar al-Assad, aliado de longa data da Rússia, impedisse que o Irão e os xiitas do Hezbollah, a principal organização político-militar libanesa, usassem a Síria como uma plataforma logística para contrabandear armas e mísseis contra Israel. Mais do que um simples pedido, tratava-se de um ultimato. Pelos vistos, o Kremlin tentou convencer Assad a fazer alguma coisa. Em vão.
QUAIS OS SINAIS DE QUE ALGO IMPORTANTE IA ACONTECER
A 24 de novembro, é a vez de uma delegação russa viajar para Telavive, para discutir novamente a situação no Médio Oriente. Três dias depois, o mundo ficava a saber que Israel e o Líbano tinham celebrado um acordo de cessar-fogo, após cinco semanas de implacáveis bombardeamentos e raides hebraicos sobre Beirute e a zona sul do país dos cedros. Em simultâneo, nessa mesma data, um outro acontecimento passou praticamente despercebido em termos mediáticos: o início de uma ofensiva militar de rebeldes islamistas, nas províncias sírias de Deraa e de Idlib. No Norte, a Organização para a Libertação do Levante ‒ ou Hayat Tahrir al-Sham (HTS) – avançava a bom ritmo e sem oposição, com o óbvio conhecimento e apoio da Turquia.
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Jihadista O líder do HTS deixou de usar turbante para ganhar credibilidade e ter um ar menos radical
A 1 de dezembro, caía a maior metrópole económica e demográfica da Síria e uma das cidades mais antigas do mundo, Aleppo. Nesse mesmo domingo, na capital, Damasco, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, Abbas Araghchi, desdobrou-se em selfies para as redes sociais e deleitou-se com a shoarma e outras iguarias do restaurante Dajajati, no seleto bairro de Mezzeh, onde se concentram várias embaixadas. De acordo com o Financial Times, o chefe da diplomacia da república islâmica avisou o Presidente Assad de que o seu país já não estava em condições de lhe prestar auxílio adicional, caso alguma desgraça viesse a acontecer. O ditador damasceno, de 59 anos, que subiu ao poder em 2000, com múltiplas promessas de reformas económicas e políticas, formou-se em Medicina e esqueceu-se da lei de Murphy: se algo pode correr mal, vai correr mesmo mal. Algumas questões básicas sobre o país que o académico franco-tunisino Michel Seurat definiu como “Estado de Barbárie” ‒ ou não tivesse ele sido um símbolo e um mártir da violência na região.
COMO É QUE O REGIME DE ASSAD COLAPSOU TÃO DEPRESSA?
Abbas Araghchi não quis denunciar as vulnerabilidades do regime sírio, talvez para não o acusarem de fazer de tonto, a exemplo do que aconteceu com o antigo ministro iraquiano da Informação, Mohammed Saeed al-Sahhaf, que, em abril de 2003, com os tanques americanos às portas de Bagdade, insistia em afirmar, de forma patética, que o Presidente Saddam Hussein e o seu governo estavam para durar. Um ilustre comentador político iraniano, Hater Salehi, resumiu tudo o que, neste momento, está em causa: “A grande lição que a República Islâmica [do Irão] pode tirar da Síria é que nenhum governo pode durar sem o apoio do seu povo.”
Ora a Síria, até ao passado fim de semana, foi governada pela mesma família durante quase 54 anos. Hafez al-Assad, o patriarca, um pan-arabista secular que foi piloto e comandante da Força Aérea, instalou-se no poder após um golpe palaciano e só a morte tornou possível que o terceiro dos seus cinco filhos lhe sucedesse no cargo, no dealbar do século XXI. A contragosto, convenhamos. Bashar não tinha qualquer interesse na política e muito menos em prosseguir a “revolução socialista” do seu progenitor que, com o fim da Guerra Fria e a implosão da União Soviética, se aproximou do Ocidente. O jovem amante de novas tecnologias, que se tornou médico oftalmologista em Londres, teve de regressar a casa após o delfim do regime, o seu irmão Bassel, falecer num acidente de automóvel, em 1994. Oito anos depois, Bashar e a mulher, Asma, formada no King’s College e antiga gestora de topo do banco JP Morgan, eram um casal particularmente benquisto na Europa. De Paris a Berlim, representavam a alegada modernização e democratização da Síria, sendo inclusive recebidos, com todas as honras, pela rainha Isabel II, no Palácio de Buckingham. A Casa Branca, então ocupada por George W. Bush, também via Assad como um aliado na luta contra a Al-Qaeda e o terrorismo apocalíptico, com o território sírio a ser usado para os cárceres secretos da CIA e como plataforma logística entre o Afeganistão e Guantánamo.
No entanto, como quem sai aos seus não degenera, os tiques autoritários da dinastia damascena mantiveram-se, com os opositores a serem violentamente reprimidos e a generalidade da população a desconhecer o que era o bem-estar e o progresso. A chamada Primavera Árabe, em 2011, foi a melhor prova de que Bashar e o pai pouco se distinguiam no exercício da autoridade. Em março desse ano, mal começaram os protestos contra o regime em Deraa e Hama, as prisões e as morgues voltaram a ficar sobrelotadas e começou uma guerra civil que viria a provocar meio milhão de mortos, seis milhões de refugiados e outros tantos deslocados internos. O país fragmentou-se como nunca e só o apoio da Rússia ‒ e, em menor medida, do Irão e das milícias do Hezbollah ‒ evitou que Damasco caísse nas mãos do autoproclamado Estado Islâmico, em 2015. O califado terrorista acabaria por soçobrar, mas a Síria converteu-se num estado disfuncional, corrupto e miserável, com Assad a ser odiado por curdos, árabes sunitas, drusos e até pelos seus compatriotas alauitas, a minoria étnico-religiosa xiita a que ele e a família pertencem.
Ajustes Os rebeldes prometem agora perseguir os “criminosos de guerra” que obedeciam a Assad Foto: BILAL AL HAMMOUD
Com os grupos oposicionistas a organizaram-se, a beneficiarem de apoios externos, a juntarem forças contra um inimigo comum e os soldados de Assad a receberem, em média, menos de de 15 euros por mês, a sorte do Presidente sírio ficou selada. Como disseram, em júbilo, muitos sírios, incluindo os da diáspora, “Assad, khalas!” (“Assad, basta!”)
QUEM SÃO OS REBELDES QUE TOMARAM DAMASCO?
O principal grupo é constituído por diferentes milícias fundamentalistas islâmicas e tem por nome Hayat Tahrir al Sham (HTS), que significa Organização para a Libertação do Levante. Por estranho e paradoxal que tal pareça, trata-se de um movimento considerado “terrorista” pelas Nações Unidas, pelos EUA, pelo Reino Unido, pela França e até pela Turquia. As suas origens remontam ao período crítico da guerra civil na Síria, quando ainda tinha a designação de Jahbat al-Nusra (Frente para a Vitória no Levante) e era considerado o braço-armado da Al-Qaeda no país de Bashar al-Assad. Com um elevado grau de autonomia graças aos mecanismos de autofinanciamento ‒ entenda-se assaltos, sequestros e todo o tipo de traficâncias ‒, os seus combatentes cometeram centenas de atentados, alguns deles suicidas. Em 2017, por discordâncias nunca devidamente esclarecidas com o então líder supremo do movimento responsável pelos ataques do 11 de setembro nos EUA, o egípcio Ayman al-Zawahiri, a HTS passa a atuar por conta própria e instala o seu emirado na província de Idlib, no Noroeste do país, usufruindo da proximidade ao território turco e mantendo um estratégico acordo de não beligerância com outras forças anti-Assad. Na ofensiva militar que culminou na conquista de Damasco, no último fim de semana, participaram ainda outros grupos jihadistas que, no passado, prestaram também vassalagem à Al-Qaeda ou ao Estado Islâmico (que ainda mantém alguns redutos no deserto e perto de Deir Ezzor). A esta amálgama, maioritariamente formada por árabes sunitas, há ainda que somar os guerrilheiros curdos apoiados pelos EUA, que participaram na derrota do Califado (2014-2019), e controlam as principais cidades no Nordeste da Síria, a oriente do rio Eufrates (Raqqa, Qamishli e Hassakah), e algumas das grandes jazidas de petróleo do país.
QUEM É O BARBUDO QUE PARECE MANDAR NA CAPITAL SÍRIA?
Trata-se do líder supremo da Hayat Tahrir al Sham e da extinta Frente al-Nusra, o comandante e emir Abu Mohammad al Jolani. Este jihadista nascido há 42 anos na Arábia Saudita, para onde os pais (sírios) tinham emigrado, tenta agora apresentar-se como um político moderado, com ambições de estadista, e já se deu ao trabalho de abandonar o nome de guerra para assumir a sua verdadeira identidade: Ahmed Hussein al-Chareh. A 8 de dezembro, mal entrou na capital síria, fez questão de discursar na grande mesquita dos Omíadas, uma joia da arte islâmica que presta homenagem ao califado do século VIII e se se estendia da Ásia Central à Península Ibérica. As suas palavras, por mais que se esforce, retratam na perfeição as ideias do antigo combatente da Al -Qaeda: “Esta vitória, meus irmãos, é um triunfo histórico (…). Hoje, a Síria está purificada”, exclamou face a um auditório eufórico, exclusivamente masculino, que nunca parou de ecoar “Allah akbar”. Pormenor adicional. Ao contrário do que sucedia até há meia dúzia de meses, al-Jolani/al-Chareh cortou o cabelo, abdicou do turbante, aparou a barba e passou a envergar calças e camisas verde-oliva, como que a imitar o Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky (ou o falecido Fidel Castro). Uma mudança de visual que o próprio admite sem pruridos, por já não ser “o mesmo indivíduo de há 20 ou 30 anos”, como explicou numa entrevista concedida à CNN.
No início da idade adulta, o antigo estudante de Medicina fartou-se das aulas e rumou a Bagdade, depois da queda de Saddam Hussein, para lutar ao lado do líder da Al-Qaeda no Iraque, Abu Musab al-Zarqawi. O seu percurso como insurreto e decapitador não lhe corre de feição. Capturado pelas tropas americanas, passa quase cinco anos detido no Camp Bucca, um centro penitenciário clandestino, onde conhece Abu Bakr al-Baghdadi, o fundador do Estado Islâmico e futuro califa de um território que chegou a ter o tamanho de Portugal, ou seja, os EUA conhecem-no de ginjeira e continuam a oferecer 10 milhões de dólares pela captura do homem que os sírios hoje aclamam como o seu “libertador”.
QUE IMPLICAÇÕES PODE TER O NOVO REGIME?
Ninguém sabe ao certo como vai ser a Síria pós-Assad e poucos acreditam que uma democracia liberal se instaure de um dia para o outro. Na Foreign Affairs, para os dois académicos americanos, Natasha Hall e Joost Hiltermann, o antigo regime “caiu como um castelo de cartas” e o que lhe suceder não augura nada de bom: “A conquista [de Damasco] pelos rebeldes representa uma mudança tectónica no Médio Oriente que faz com que as potências internacionais e da região não saibam como reagir. Até há poucas semanas, a Administração Biden estava a negociar com os Emirados Árabes Unidos o fim das sanções à Síria, na condição de Assad se distanciar do Irão e do Hezbollah (…). A queda de Assad vai transformar por completo os equilíbrios de poder.” O Irão, que está a viver um annus horribilis perdeu um aliado crucial e o seu “eixo da resistência” ‒ do Iémen, ao Iraque, passando pelo Líbano – pode ter os dias contados.
Enigma As sírias estão na rua a celebrar, mas falta saber se o novo regime vai respeitar as minorias e os direitos das mulheres Foto: BILAL AL HAMMOUD
A Rússia ficou sem dois complexos militares estratégicos em território sírio: a base naval de Tartus e a base aérea de Hmeimim, complicando as aspirações do Kremlin de alargar a sua influência ao Sahel e ao resto do continente africano. A nível doméstico, as rivalidades entre os grupos sírios e a ascensão da HTS podem, segundo os autores, converter o país num “estado falhado” e provocar uma “nova guerra civil” com impacto global. Gilles Keppel, um dos mais prestigiados politólogos franceses e especialista em questões islâmicas, faz um diagnóstico semelhante numa entrevista ao Figaro e adianta que a queda de Assad é mais uma “manifestação crucial” de como “tudo está a mudar” demasiado depressa. E não hesita em responsabilizar, ainda que parcialmente, Israel e Elon Musk. O governo de Telavive parece dar-lhe razão e, desde 8 de dezembro, realizou mais de três centenas de ataques contra a Síria, com o pretexto de que é necessário destruir todos os arsenais de Assad para que estes não caiam em mãos erradas. Quanto ao homem mais rico do mundo, Kepel alega que o patrão da Tesla anda a negociar, por exemplo, o afastamento dos ayatollahs do poder em Teerão.
QUEM SÃO OS GRANDES VENCEDORES COM O FIM DE ASSAD?
O libanês Anthony Samrani adverte que, no Médio Oriente, “as revoluções e as transições de poder raramente terminam bem”
Em teoria e em primeiro lugar, os sírios que acreditam na liberdade e que julgam ter direito a uma vida digna. Na prática, os jihadistas que derrubaram a dinastia dos Assad e todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para este desfecho. A começar por Israel: “Este colapso é o resultado das nossas ações contra o Hezbollah e o Irão, os principais apoiantes de Assad. (…) Isto provocou uma reação em cadeia”, afirmou o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, referindo-se à forma como o seu governo reagiu aos ataques terroristas do Hamas a 7 de outubro de 2023 e a tudo o que se seguiu. Quem se gaba também de ter acelerado o rumo da história com a queda do ditador sírio é o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan. Além do apoio prestado a vários grupos jihadistas, Ancara tem agora oportunidade de abocanhar mais território no norte da Síria e perseguir os curdos que acusa de terrorismo, em particular as milícias com ligações ao histórico PKK. Um Curdistão independente é agora uma hipótese tão longínqua como um Estado de direito na Síria, nos tempos mais próximos. Como escreveu Anthony Samrani, no centenário jornal libanês L’Orient-Le Jour, “as revoluções e as transições de poder raramente terminam bem no Médio Oriente. (…) O futuro não será cor de rosa, mas não pode ser pior do que o Estado de Barbárie” [descrito por Michel Seurat]. Será que os e as habitantes do Afeganistão e do Sudão concordam?
A beleza das palavras feias dói em lugares que não sabíamos ter. Tal como o tipo de poema que Ana Hatherley considerava ser bom, “não te aperta a mão, aperta-te a garganta”. E de garganta apertada será porventura a única forma sincera de nos atirarmos de cabeça à vida.
“Sibarita”, “Afã”, “Modorra”, “Facécia”, “O enxofre oloroso”. Palavras feias, densas, oleosas, repugnantes, quase caídas em desuso. Palavras que nos apertam a garganta enquanto dão nome a quatro das 16 obras da série Narcissus, apresentada em Beco das Flores, Canedo do Mato, a mais recente exposição de José Loureiro (JL), patente na Galeria Cristina Guerra Contemporary Art, até 11 de janeiro de 2025.
Na folha de sala, que sabe a manifesto modernista e foi escrita pelo próprio artista, fala-se, entre outras coisas, do “elucidar de crianças, adultos e velhos — em folhas A4 impressas depositadas em recipientes de plástico — sempre que entram em salas brancas já de si perfeitamente iluminadas”.
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Mordaz e carregado de sentido de humor, o texto resume a atual tragicomédia dos sabichões e dos salamaleques desnecessários que nos afastam daquilo que é mais cru, mais duro, mas mais verdadeiro. A relação pura e despretensiosa entre cada um e a obra de arte, entre cada um e a própria vida.
“Claro que o texto espelha as pinturas e vice-versa, mas o importante são as obras e o silêncio, estar absolutamente calado a olhar para elas, e não estar a ler tabelas ou seja o que for”, defende o artista.
A minha relação com a pintura é selvagem, intensa e descontrolada, porque os meios que se usam para pintar são, de certa forma, indomáveis
josé loureiro
As mãos frenéticas, as mesmas com que pinta todos os dias, “num horário quase fabril”, gesticulam enquanto confessa não pensar nas considerações que o público tecerá sobre a sua obra.
“A pintura não funciona assim. A minha relação com a pintura é selvagem, intensa e descontrolada, porque os meios que se usam para pintar são, de certa forma, indomáveis”.
Pode-se assim imaginar de onde vêm as figuras pintadas a óleo que se contorcem dentro das telas expostas nas paredes da galeria, como se procurassem a posição mais cómoda para conversar connosco, pôr-nos em causa, ou simplesmente largar uma valente gargalhada.
Apesar de serem talvez o conjunto mais figurativo da sua obra, permanecem fiéis à linguagem plástica que o artista costuma utilizar.
São pintadas a óleo, viscosas, enigmáticas, irónicas. E, apesar de agora terem cabeça, tronco e membros, possuem, à semelhança de obras passadas, grelhas, linhas e tramas, que JL transforma em padrões e formas, mais conspurcados pela vida do que pela matemática.
“É como se a cabeça, o tronco e os membros desaguassem em unhas vermelhas, da mesma forma que o Mundo desagua no Beco das Flores” FOTO: Vasco Stocker Vilhena
Começaram a aparecer em Croque-Couleur, exposição que realizou este ano em Dunquerque. “Não mudaram muito, mas também não diria que evoluíram, porque na arte não há evolução. Estão diferentes, talvez mais desenvoltas, surgem na horizontal, fazendo lembrar quase odaliscas”, explica o artista. Em suma, “estão mais lascivas”.
O som arrastado da palavra rende a ideia. É quase possível acreditar que Sibarita, à entrada da galeria, escavou a sua entrada no Mundo precisamente através de tal som. Feita de óleo,“tóxico, imponderável, difícil de dominar”, ainda a fermentar, a figura rasteja pela tela, explorando-a com as mãos, cravando-lhe as unhas, cravando-nos as unhas.
Unhas essas que, curiosamente, foram uma surpresa do processo criativo.“Quando acabei estas pinturas, reparei que todas as mãos tinham unhas e eu nem estava ciente disso”.
Firmemente convicto de que “com coisas pré-determinadas só se fazem pinturas ou arte má”, JL aprendeu a amar estes “rebentos” inesperados. “É como se a cabeça, o tronco e os membros desaguassem em unhas vermelhas, da mesma forma que o Mundo desagua no Beco das Flores”.
“As coisas feias são as mais interessantes”
Esse Beco das Flores, que dá título à exposição, foi encontrá-lo em Canedo do Mato, uma aldeia perto de Mangualde, cidade que o viu nascer em 1961. O título é indireto, mas, como sublinha o artista, “as coisas indiretas dizem muita coisa”.
“Quando eu era criança, a minha mãe dizia ao meu pai: ‘João, nunca nos levas a lado nenhum’. E ele respondia: ‘Ainda um dia vos hei de levar a Canedo do Mato’. Para ele, era o fim do Mundo. Que pode ser em qualquer lado – em Carcavelos ou na Amadora – mas aqui era uma pequena aldeola onde todas as estradas acabam”.
Quis o destino que tal fim de Mundo fosse também “o lugar na Terra onde se esconde o mais amplo mar de narcisos em flor”.
Sob a terra encharcada desse beco perdido, conseguimos imaginar, agora mesmo, centenas de bolbos que latejam, prontos a furar a terra com a pujança daqueles que precisam de chegar depressa à vida. Primeiro o caule, depois as folhas, por fim as flores.
A mesma pujança com que as 16 figuras da série Narcissus parecem contorcer-se e brotar das paredes, empurrando os limites das telas para expandir o espaço originalmente concedido a cada uma. Primeiro o tronco, depois os braços e as mãos, por fim as unhas.
“Começo cada figura pelo tronco e pela roupa, com aqueles padrões que eu adoro fazer. Os braços e as pernas são uma extensão do tronco, as mãos são uma extensão dos braços e das pernas e as unhas são os pontos finais dos dedos”.
Fez alguns desenhos a lápis “para ter uma espécie de orientação”, mas, a partir daí, “a fabricação da pintura é imprevista, há surpresas atrás de surpresas e tem de se saber lidar com o que vai aparecendo”.
Neste caso, além de pontos finais nos dedos, o artista descobriu, num beco da Beira Baixa, o ponto final no Mundo.
A fabricação da pintura é imprevista, há surpresas atrás de surpresas e tem de se saber lidar com o que vai aparecendo
josé loureiro
Nesse lugar onde as estradas todas acabam, e, no entanto, nascem centenas de flores, torna-se mais fácil perceber por que é que JL acredita que “as coisas feias são as mais interessantes”. Talvez por serem aquelas que dispensam adornos, sobretudo sob a forma de adjetivos.
Camilo Castelo Branco dizia que “a felicidade é parecida com a liberdade, porque toda a gente fala nela e ninguém a goza”. Diga-se nada, então. Olhem-se as obras em silêncio sem regurgitar um jorro de palavras desnecessário. Goze-se o momento.
Depois, a arder por dentro com tudo o que sentimos, entreguemo-nos à vida, deixando que esta nos aperte a garganta. Nunca a mão.
Cajado na mão direita, terço na mão esquerda, xaile de lã sobre as costas. Uma coluna de homens emerge do nevoeiro denso que engole a estrada, as árvores e o próprio céu, esbatendo os contornos da paisagem.
Os cabelos encharcados estão colados às cabeças e estas, por sua vez, inclinadas para baixo, colam o olhar ao chão. Quase conseguimos ouvir o silêncio pastoso onde ressoam as orações que saem das bocas entreabertas, e o ritmo compassado dos pés, que se arrastam sob o peso da sacola que os homens trazem às costas.
A imagem misteriosa, capturada na ilha de São Miguel, nos Açores, em 2014, por Jorge Barros, é a primeira do mais recente livro do fotógrafo. Lançado oficialmente a 3 de dezembro, no Teatro Micaelense, Romeiros da Fraternidade (com os textos em português e inglês) apresenta o resultado de quase quatro décadas de trabalho entregues à documentação dos diversos ranchos de Romeiros da ilha de São Miguel.
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Todos os anos, durante a Quaresma, ao longo de oito dias, estes grupos de homens trocam os confortos do dia-a-dia por um percurso pedestre em redor da ilha, com 300 km, feito de penitência, oração e conversão FOTO: Pedro Barros
Todos os anos, durante a Quaresma, ao longo de oito dias, estes grupos de homens trocam os confortos do dia-a-dia, o calor da sua casa e a companhia da família, por um percurso pedestre em redor da ilha que, mais do que de quase 300 km de trilhos, caminhos e estradas, é feito de penitência, oração e conversão.
A obra é assinada por JB e pelo filho Pedro, responsável, em 2023, por fotografar alguns momentos específicos da romaria, que o pai considerava ainda não estarem retratados como desejava. “Demorei muitos anos neste projeto, porque, quando o fotografava, achava que faltava qualquer coisa”, conta JB, revelando que sempre sentiu “um pudor muito grande”, por tratar-se de uma manifestação extremamente misteriosa e enigmática.
“Ainda hoje tenho dificuldade em perceber muitas coisas desta romaria, mas com as fotografias que o Pedro tirou, senti que o livro já teria pernas para andar”.
Ainda hoje tenho dificuldade em perceber muitas coisas desta romaria, mas com as fotografias que o Pedro tirou, senti que o livro já teria pernas para andar
jorge barros – fotógrafo
O livro e quem se aventurar através das suas páginas. Já que a obra transporta o leitor para uma semana de caminhada. Encontra-se organizada em oito “capítulos”, tantos quantos os dias necessários para que um Rancho de Romeiros dê a volta à ilha a pé.
Através de fotografias tiradas entre 1994 e 2023, em diversos locais e em momentos tão variados quanto os de caminhada, oração, paragens para almoçar, descansar ou rezar dentro das igrejas, cada capítulo recria um dia de jorna, desde as três da manhã, hora em que os Romeiros começam a andar, até cerca das dez da noite, quando se vão deitar.
A preto e branco, as únicas cores, segundo JB, capazes de reproduzir o dramatismo desta manifestação religiosa, surgem imagens pungentes, onde conseguimos intuir a força do vento, nos cabelos encrespados de uma criança, o frio da noite, nas costas curvadas de um velho, a humidade do nevoeiro, num céu que engole o mar, o calor de uma casa, nas mãos de alguém que lava os pés a outra pessoa, a solenidade de uma igreja, nas pálpebras cerradas de um jovem.
Nos homens que rezam, caminham, descansam, lavam feridas, sorriem, abraçam-se ou esboçam um esgar de dor, página após página, o mistério divino convive com uma fragilidade profundamente humana.
Aqueles que escolheram fazer-se à estrada, e que nos últimos 37 anos têm sido imortalizados pela lente de JB, possuem todos o mesmo olhar, inundado de uma determinação incendiária capaz de pegar fogo mesmo aos corações mais céticos.
Uma caminhada com 500 anos
A tradição da Romaria de Nª Sª do Rosário remonta ao século XVI, quando os sobreviventes de um grande tremor de terra construíram uma ermida à Virgem e começaram a fazer procissões semanais noturnas, que viriam a transformar-se na Romaria à volta da ilha.
Cinco séculos mais tarde, os Romeiros caminham em ranchos de 17 ou mais elementos, ao longo de oito dias e centenas de quilómetros, no sentido dos ponteiros do relógio, parando em todas as igrejas do caminho.
No início de cada semana da Quaresma, cerca de 16 ranchos saem de diferentes localidades da ilha de São Miguel e, seja através de orações, cânticos ou momentos de meditação, não há passo que deem que não seja a rezar.
Os Romeiros caminham em ranchos de 17 ou mais elementos, ao longo de oito dias e centenas de quilómetros, no sentido dos ponteiros do relógio, parando em todas as igrejas do caminho FOTO: Jorge Barros
Ao final do dia, são acolhidos nas aldeias de outros ranchos, no chamado ritual da pernoita. Pedro, que se focou particularmente em fotografar este momento, explica que é o Mestre do Rancho quem faz a distribuição das pessoas pelas diversas casas, consoante aquilo que acha que precisam. “Tem um grande conhecimento da comunidade, percebe como é que cada pessoa está a reagir durante o dia e conhece as dificuldades que cada um teve durante o ano”.
Romeiros da Fraternidade, Letras Lavadas, 224 pp., 56 euros
Poder-se-ia talvez afirmar que a pernoita é aquilo que, na última página do livro, Tolentino de Mendonça define como “a consciência de que precisamos todos uns dos outros, que ninguém se pode salvar sozinho, e que o nosso mais precioso recurso é a fraternidade”.
Ano após ano, centenas de homens, enrolados em xailes de lã, ainda que talvez nunca tenham lido estas palavras, meditam sobre elas. Rezam-nas uma a uma, do primeiro ao último dia do “infinito silêncio circular” que se dispõem a percorrer.
“Esta é uma viagem de reflexão”
Jorge Barros fala da sua experiência junto dos Romeiros, da fraternidade testemunhada e das formas que encontrou para mostrar tudo isto num livro
A caminhada dos Romeiros é algo de muito íntimo. Como conseguiu que lhe abrissem as portas?
Ao princípio, quando ainda não existiam televisões privadas nem RTP Açores, havia de facto um circuito muito fechado entre eles. De maneira que eu, quando entrei, não foi fácil. Quem me facilitou o acesso foi o Emanuel, um tipo característico de Rabo de Peixe que conheci numa igreja, na primeira noite que fui fotografar. Além de já ter sido Romeiro, é um homem de grande carinho e grande afeto, muito conhecido. Ele é que me aproximou das pessoas, se não fosse aquele contacto teria tido muita dificuldade, porque era um intruso.
Mas, depois, em certos anos, acabou até por dormir nas aldeias onde os Romeiros pernoitam. É uma experiência especial?
A pernoita é a situação mais interessante, mais fraterna, que eu encontrei. Os habitantes das aldeias recebem os irmãos em suas casas, dão-lhes as melhores camas, os melhores quartos e fazem um jantar especial. À relação de Fé e religiosidade existente, soma-se aqui uma relação de grande fraternidade e solidariedade entre as pessoas. Quem recebe tem orgulho em receber os outros. É uma coisa extraordinária e, por isso, dão o melhor que têm.
Alguma vez lhe disseram o que os motiva a fazerem-se à estrada?
Das motivações sei pouco. Não pergunto. Ia sabendo que A, B ou C estava com uma promessa, mas esta manifestação não são só as promessas, é também um tempo de reflexão. Não tem nada a ver com Fátima, em que as pessoas viajam e, muitas vezes, estão à espera que Deus lhes dê alguma coisa em troca. Aqui não é bem assim. Esta é uma viagem de reflexão, de meditação, de solidariedade entre as pessoas. Há com certeza promessas, agora quais, não sei. Nunca perguntei.
Por que decidiu retratar esta viagem de reflexão a preto e branco?
A escolha justifica-se pelo dramatismo. Há um sentido dramático em tudo. Naquela peregrinação e na paisagem açoriana, feita de brumas, chuva e vento, que trazem uma certa carga ao semblante das pessoas, à qual o preto e branco dá outra força.
Em muitas páginas do livro surgem ainda versos de poemas. A poesia foi uma fonte de inspiração neste projeto?
A poesia anda sempre comigo. Os poetas têm um sentido de imaginação extraordinário, que é muito fotográfico. É importante porque cria-me imagens de aproximação com o Mundo e com as pessoas. Em muitas situações, os poemas ajudam-me bastante a viver e a tirar partido dessas imagens escritas para as imagens visuais que faço.
Como foi o processo de seleção dos poemas?
Foram noites de trabalho com os livros todos espalhados pela sala para encontrar as melhores citações para cada imagem. Deu-me muito gozo procurar, na obra de poetas portugueses, citações que se dessem com as imagens que eu andava a fazer ou com o sentido dessa imagens.
Fotógrafo, amante de poesia e dono de uma sensibilidade rara, Jorge Barros (JB) tem retratado o nosso país de uma forma que só aqueles que o conhecem profundamente conseguem fazer.
Na fotografia afirma procurar “o encanto que é o milagre da vida – nos gestos, rostos e olhares das pessoas – e as coisas que nos rodeiam no nosso quotidiano”, bem como “momentos únicos que não se repetem”.
Essa busca, aliada a muita persistência, imaginação e trabalho, permitiu-lhe construir uma carreira singular, que conta quase 50 anos, e começou ainda na adolescência, na sua terra natal.
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Nascido em Alcobaça, em 1944, JB recorda com carinho “os professores do ensino noturno”, como José Nuno da Câmara Pereira, José Afonso (Zeca Afonso, mais tarde) e José Silva Carvalho, que lhe incutiram “a vontade e a curiosidade de novos sonhos”, sendo a fotografia “(talvez por intuição) a forma razoável de realizar esse grito interior”.
Ávido frequentador de museus, exposições, cineclubes, teatros, livrarias, mas sobretudo encontros intelectuais em tertúlias semiclandestinas, em cafés, acabou por ser convidado, ainda empregado de escritório, para fotografar cavalos de raça portuguesa, com Carlos Gil. As fotografias haveriam de ser publicadas, em 1980, no livro Portugal e os Seus Cavalos.
Trabalhou também com o Teatro da Comuna, o Teatro da Barraca e o Teatro O Bando, foi assessor técnico da XVII Exposição de Arte, Ciência e Cultura – Os Descobrimentos Portugueses e a Europa do Renascimento (1983), aventurou-se no cinema, colaborou com jornais e revistas, e com diversos projetos relacionados com a EXPO98, organizou encontros e exposições, propôs a criação de um Museu Nacional da Fotografia e recebeu, entre outras distinções, o Prémio Ilustração da Bienal Internacional de Arte de Vila Nova de Cerveira.
Grande parte da sua obra está hoje em mais de 30 publicações, nas quais as fotografias são geralmente associadas a textos assinados por nomes como Eugénio de Andrade, Fernando Assis Pacheco, Fernando Dacosta, Helena Vaz da Silva, João de Melo, José Cardoso Pires, Lídia Jorge, Manuel Alegre, Mário Cláudio ou Orlando Ribeiro.
A mais recente, Romeiros da Fraternidade, por exemplo – agora lançada, corajosamente, pela editora açoriana Letras Lavadas – utiliza versos de 31 poetas portugueses, selecionados por JB para dialogarem com as imagens de dezenas de Ranchos de Romeiros de Nossa Senhora do Rosário, que registou ao longo de 37 anos, na ilha de São Miguel, nos Açores.
De Norte a Sul e de Este a Oeste
Não só nos livros, mas também nas exposições realizadas, encontramos fotografias de caráter profundamente poético, “versos visuais”, se assim os quisermos apelidar, que constroem uma narrativa de pendor quase sociológico ou etnográfico.
Sentado no sofá de casa, em jeito de reflexão sobre a facilidade com que, atualmente, se apanham voos para qualquer lado, comenta: “assegurei-me que primeiro conhecia todos os recantos de Portugal e só depois ia viajar para fora”. E, de facto, parece não ter havido recanto que lhe escapasse.
Fotografou o país de lés-a-lés, da janela mais alta e recôndita do Castelo de São Jorge, em Lisboa, à ermida mais isolada da Serra do Gerês.
Assegurei-me que primeiro conhecia todos os recantos de Portugal e só depois ia viajar para fora
jorge barros – fotógrafo
Em livros como Um Olhar Português e Portugal – O Último Descobrimento, mostrou-nos que tudo pode ser visto com novos olhos, que o nosso país é infinito e a sua beleza vive nas varandas decrépitas da Ribeira do Porto, nos carros de bois de uma eira minhota, nas encostas sombrias de Vimioso, no verão amarelo e no inverno verde do mesmo campo alentejano, numa viela perdida em Loulé ou nas encostas das nove ilhas açorianas.
Teve ainda “a sorte e possibilidade de proceder ao levantamento visual da presença dos portugueses no mundo, nos quatro continentes, com a edição de Portugal e o Mar, com texto de Rui Rasquilho, e mais tarde ilustrar a Mensagem, de Fernando Pessoa”, conta.
O amor pelos Açores
Embora afirme que as travessias que fez pelo Mundo deixaram-lhe “sempre mais incertezas do que respostas”, parece bastante claro, a quem o oiça falar, que, de todos os lugares onde esteve, o seu coração bate de forma especial pelos Açores.
“Pelo silêncio contemplativo da paisagem, a suave musicalidade dos ventos e do mar, a passagem das nuvens que se formam, diferentes de ilha para ilha, a luz que realça os contornos daquela maravilhosa costa e o singular engenho das pessoas no seu dia-a-dia”, explica.
O primeiro projeto desenvolvido no arquipélago, a convite do jornalista e escritor Fernando Dacosta e da editora Ângela de Almeida, deu origem ao livro Corvo – Ilha da Sabedoria. “Sucederam-se longas visitas que criaram raízes de amizade com o povo corvino até aos dias de hoje. Nunca mais fui o mesmo!”, conta.
Fotografias do livro As Ilhas Desconhecidas, no qual Jorge Barros faz uma interpretação visual das famosas notas de viagem de Raul Brandão
A partir daí, e não só na ilha do Corvo, a sua lente nunca mais deixaria de imortalizar ilhéus coroados de nuvens, campos a perder de vista, falésias chicoteadas por ondas de espuma branca, lagoas mergulhadas em infinitas tonalidades de verde e a bruma que tudo engole.
Estas imagens haveria de entregá-las ao mundo em exposições como Solenidades dos Açores (1990), Aproximações (2009) e Baleeiro – Um Rochedo do Mar (2015), e numa dezena de livros, entre eles, Corvo, a Ilha da Sabedoria, O Príncipe dos Açores, Vitorino Nemésio – Sem Limite de Idade, Escrito no Mar – Livro dos Açores, que reúne os 25 poemas de Manuel Alegre sobre o arquipélago, As Ilhas Desconhecidas, São Miguel – Ilha de Alquimias e, agora, Romeiros da Fraternidade.
Nobre povo da nação imortal
E porque Portugal não é só paisagem, JB assegura que “seria incapaz de trabalhar num projeto onde não houvesse pessoas”.
Em 2011, chegou mesmo a afirmar, na introdução de As Ilhas Desconhecidas, livro onde que faz uma interpretação visual das famosas notas de viagem de Raul Brandão, que “o amor para com os outros é o melhor de nós”.
Portugal tem hoje a agradecer-lhe aquele que é talvez um dos seus mais fiéis retratos, no qual, além das paisagens, cabem também as suas gentes e tradições centenárias
Talvez tenha sido precisamente a convicção de que “é o convívio humano – olhares e gestos – , e a sua generosa entrega” que enriquecem espiritualmente, a responsável por JB ter tomado parte em projetos como Mineiros, editado em 2001, e Festas e Tradições Portuguesas, “oito livros e 25 anos de atividade”.
Neste caso, propôs fazer um levantamento visual das festas de Portugal. O registo fotográfico de rostos, vestes, máscaras, folia e devoção, realizado ao longo de um quarto de século, ilustrou oito volumes, referentes aos 12 meses do ano, que davam a conhecer as festas e romarias de norte a sul do país e nas ilhas.
“Foram 25 anos a cruzar-me com mordomos, feirantes, párocos, carteiristas, bandas de música, etc., de Norte a Sul do país e ilhas atlânticas”, conta. “Muito devo a Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira, pelo seu saber e desinteressados conselhos, e a Dias de Carvalho, saudoso editor do Círculo de Leitores, pela confiança depositada”.
Já o livro Mineiros é um retrato intenso do dia-a-dia de homens cuja vida ocorre a milhares de metros de profundidade. Finalmente, em Romeiros da Fraternidade, cuja edição teve o apoio da Sociedade Portuguesa de Autores, JB volta a mostrar-nos uma face do nosso próprio país que muitos ainda não conhecem, fazendo-nos acreditar, mais uma vez, que sua a beleza é de facto infinita, desde que a saibamos olhar com espanto.
Por tudo isso, Portugal tem hoje a agradecer-lhe aquele que é talvez um dos seus mais fiéis retratos, no qual, além das paisagens, cabem também as suas gentes e tradições centenárias.
Em 2030 (já olho para estas datas com crescente desconfiança e distanciamento), Portugal, Espanha e Marrocos irão organizar o Campeonato Mundial de Futebol. É uma boa notícia para nós, que já temos, de facto, a experiência do Euro – um sucesso – e uma parte importante das infraestruturas necessárias.
Nada disso falta à Espanha, sendo Marrocos quem terá de fazer o maior esforço nos próximos cinco anos. Contudo, esse investimento resultará na dotação do que atualmente lhe falta, beneficiando diretamente os marroquinos. É também um evento de grande relevância por unir dois continentes e três nações que, ao longo da história, lutaram pela sua independência e pelo seu orgulho.
A única dificuldade, que pode ser decisiva, é que não é possível, nem mesmo com a ajuda da Inteligência Artificial, prever em que contexto geoestratégico, económico e político estaremos enquanto Europa, Norte de África e parceiros aliados. O nosso mundo está extraordinariamente imprevisível e instável, tornando inválidas quaisquer projeções a cinco anos.
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Uma coisa é certa: Trump já não estará na Casa Branca, e uma onda de mudanças atravessará os países europeus. Quanto a Putin, permanece uma incógnita, e as guerras que conhecemos poderão não ser as que enfrentaremos em 2030. Mas apostamos no Mundial.