A contra-revolução promovida pelo pensamento reacionário a nível global tem como alvos privilegiados o direito internacional, os imigrantes, as diversas minorias étnicas, religiosas ou de orientação sexual, os direitos das mulheres em geral e o futuro do planeta pelo ódio às preocupações ambientais.
O direito internacional construído ao longo do século XX e afirmado pela subordinação dos Estados aos pactos e convenções sobre direitos fundamentais, ao sistema multilateral de regulação de conflitos pelas Nações Unidas e à aceitação do primado das decisões do Tribunal Internacional de Justiça e do Tribunal Penal Internacional está a ser ameaçado como nunca desde 1945 e em risco de ser desmantelado pelo regresso do primado da lei do mais forte.
É certo que os antigos presidentes da Jugoslávia, do Sudão ou das Filipinas foram já detidos à ordem do TPI, mas outros líderes acusados de crimes e com mandado de captura, como Putin ou Netanyahu, continuam no poder e a ser interlocutores respeitados pelas lideranças americana ou chinesa.
Newsletter
A caça ao imigrante ou refugiado, com países ocidentais a negociarem o regresso das deportações para o Afeganistão, a limpeza étnica no Darfur, dos Rohingya em Myanmar, dos Yazidis no Iraque ou na Síria ou dos palestinianos em Gaza, são vistas com enfado como incidentes desagradáveis ou danos colaterais que, exceto a Palestina, não abrem os telejornais.
A Convenção de Istambul sobre violência contra as mulheres e violência doméstica está a ser esvaziada pelo abandono pela própria Turquia e pela Letónia e pela recusa de ratificação por 5 países membros da União Europeia.
Mas a última grande cruzada é contra a agenda verde liderada pelo abandono do Acordo de Paris pelos Estados Unidos. Ontem, a União Europeia aprovou um acordo mínimo reduzindo as metas a levar à COP 30 que se inicia no Brasil, na próxima semana.
Deve saudar-se que Portugal faz parte desse acordo mínimo sobre metas climáticas até 2040, apontando para uma redução de 85% das emissões relativamente aos níveis de 1990.
Mesmo com um enfraquecimento dos objetivos, o acordo europeu teve a oposição de quatro países e a abstenção de outros dois e o debate aceso vai continuar no Parlamento Europeu com uma crescente convergência da direita tradicional com a extrema-direita. O maior teste será em breve, com a pressão imensa para que seja afastada a meta de proibição de venda na Europa de veículos a gasóleo ou gasolina a partir de 2035.
Neste quadro de defesa dos interesses económicos instalados e de negação da evidência científica, deve ser saudada a forma serena como a ministra Graça Carvalho se tem diferenciado do radicalismo ideológico de Leitão Amaro, Ana Paula Martins ou Nuno Melo.
O debate do orçamento para a área do ambiente trouxe algumas boas noticias. A garantia de financiamento da dessalinizadora de Albufeira, com obras a começar em breve, e o lançamento de outra em Sines, bem como a garantia de financiamento europeu para a barragem do Pisão.
O programa E-Lar, destinado a substituir equipamentos domésticos a gás por aparelhos elétricos, está já a ser concretizado com os 30 milhões de euros disponibilizados em setembro e terá um reforço de 52 milhões de euros em dezembro, que não irão para o “mealheiro” empresarial inventado por Castro Almeida para disfarçar a incapacidade de execução do PRR da maioria dos seus colegas de Governo.
Foi ainda anunciado um programa de apoio à resiliência de infraestruturas críticas nas áreas da saúde, segurança e proteção civil, para prevenir situações como o apagão de abril passado, e apresentados novos programas de apoio à resiliência elétrica destinados à aquisição de baterias e ao incentivo do uso do biometano.
Finalmente, foi anunciado um criativo programa de estímulo à devolução de embalagens de bebidas em plástico ou em metal para aumentar decisivamente os baixos níveis de reciclagem relativamente aos objetivos definidos a nível europeu.
Nem parece ser deste Governo este exemplo de apresentação de medidas pragmáticas, sem tiradas de verborreia ideológica contra a oposição nem de cedência aos negacionistas das alterações climáticas.
Por não contribuir para o fracasso da execução do PRR, pela eficácia e bom senso das propostas apresentadas e pela preocupação de assegurar a concretização de projetos tantas vezes adiados, como a dessalinização da água para consumo doméstico ou a barragem do Pisão, a ministra Graça Carvalho é um caso raro de merecido prémio Laranja Doce.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
Que um dirigente político que não gosta da democracia glorifique um ditador e mande afixar cartazes racistas e xenófobos é normal. Não faz mais do que propagandear as suas convicções, agradar aos seus e captar mais votos dos que pensam como ele.
Já não é tão normal que tanta gente relativize este tipo de comportamento.
Passei a semana a ouvir falar acerca dos efeitos que o Ventura queria produzir com aqueles cartazes. O ângulo de análise de praticamente toda a gente que perora no espaço público foi o de ficar de boca aberta.
Newsletter
A maioria limitou-se a enfatizar que os comunistas, ou seja, os que se afirmam sociais-democratas ou democratas-cristãos ou simplesmente não são de direita radical, caem numa armadilha se disserem que aquilo é, muito provavelmente, um crime de incitamento ao ódio e, de certeza, uma coisa nojenta. Não faltaram os que se riram muito da genialidade do Ventura.
Pelos vistos, a atitude certa é assobiar para o lado ou então dizer que o Ventura é um espertalhão porque está a tentar dividir a comunidade e a fazer com que se fale dele. Já criticar o conteúdo é que não pode ser. O que é proibido dizer é que um tipo que espalha aquela mensagem e defende o regresso ao fascismo (que é o que faz quem diz aquilo dos três Salazares) é um xenófobo, um racista e um fascista.
E, claro, não faltou quem desculpasse os pobres dos portugueses. Claro que não há racistas, nem xenófobos e todos odeiam o anterior regime. Nada disso, o Ventura diz aquilo tudo para perder votos, para se suicidar politicamente.
Quando é que, de uma vez por todas, metemos na cabeça que há mesmo muitos portugueses que são racistas, xenófobos, saudosos de Salazar (por ignorância, falta de memória ou convicção)? Ou talvez não o sejam, mas a democracia e os seus valores são para eles dispensáveis.
O Ventura diz o que diz, põe os cartazes que põe, porque há mesmo muitas pessoas que gostam daquelas mensagens, o dividir e polarizar e essas coisas todas é secundário e pouco relevante. Bem sei, custa admitir que os nossos vizinhos do lado, as pessoas que se cruzam connosco na rua, alguns dos nossos amigos, gostam da mensagem e ficam muito divertidos se um deputado manda outro para a sua terra apenas por ser negra, mas é o que é: são quase um milhão e meio e a crescer.
Duma coisa estou certo, não será por infantilizarmos as pessoas, não será por dizermos que elas não pensam o que exprimem, que faremos com que mudem de opinião.
Seja como for, é normal que quem quer destruir a democracia tente destruir os seus pilares, repito. Já ver o PSD, um partido pai da nossa democracia, colaborar neste processo é muito mais do que anormal, é arrepiante.
Na sequência da aprovação da aberrante Lei da Nacionalidade, Leitão Amaro, figura central do Governo, elogiou o partido que manda deputados portugueses negros regressarem à terra deles (?) e promove mensagens racistas e xenófobas. Não contente com isso, declarou, eufórico, que agora “Portugal é mais Portugal”.
Foi este mesmo cavalheiro que disse que o aumento da imigração tinha sido no âmbito de um processo de reengenharia social e política promovido pelo anterior governo. Replicou, aliás, a tese do seu pai político, Passos Coelho, que cada vez que lhe põem um microfone à frente defende o delírio da teoria da grande substituição, ou do intelectual Miguel Morgado, que acha que “há um convite dos partidos de extrema-esquerda para inundar os países europeus de imigração porque isso é uma forma de reencenar a revolução social que falhou”. Para compor o ramalhete, tivemos o secretário de Estado da Imigração, Rui Armindo Freitas, a dizer que o PS queria mais imigração para ganhar votos – os imigrantes chegavam e punham-se logo a votar…
Para cereja no topo do bolo, só faltava mesmo o senhor primeiro-ministro que, rodeado de oito bandeiras de Portugal, afirmou que se “cumpria Portugal”. Lembrei-me de duas frases: “O nacionalismo é a pior das pragas”, dita por Stefan Zweig, e “o nacionalismo é o último refúgio dos canalhas e o primeiro refúgio dos hipócritas”, de Melvyn Bragg.
Numa primeira fase, parecia que o PSD e o Governo estavam a tentar replicar o discurso do Chega para lhe tirar as bandeiras – era e é um erro crasso por ser evidente que o original ganha sempre à imitação. Mas a repetição da mensagem e as medidas em relação à imigração e à nacionalidade já não deixam dúvidas: o Governo e o PSD alijaram o seu património político, renegaram as suas origens ideológicas, cuspiram nos seus fundadores e tornaram-se num partido de direita radical ou, no mínimo, de direita dura.
O PSD já não é um partido da social-democracia europeia, plural, cosmopolita, mas sim uma organização bafienta, defensora do Portugal fechadinho e bacocamente nacionalista.
Ter deixado muitos portugueses politicamente apátridas, na frase feliz do Adolfo Mesquita Nunes, é o menos. O Governo está a contribuir decisivamente para nos tornarmos um país agressivo com os mais vulneráveis e com medo da diferença. Um país que, em vez de tentar resolver os nossos inúmeros problemas sociais e económicos, gasta o tempo a criar um ambiente de desconfiança em relação aos que nos procuram para nos ajudar, e a descobrir problemas onde não há, como é o caso da Lei da Nacionalidade e da patética questão da burca.
Teresa de Sousa, no Público, está coberta de razão. O maior perigo para a nossa democracia não vem do Chega, vem, sim, da deriva do PSD.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
Se o Governo fosse do PS e se estivesse a ser liderado por António Costa, a recente intervenção de Pedro Passos Coelho, no quadro do Congresso Internacional do Cooperativismo, em Lisboa, não teria sido mais dura. No final, declarou: “É uma crítica que aqui assumo.” Não podia ser mais claro.
O antigo líder do PSD e antigo primeiro-ministro, num longo discurso de 30 minutos, estabeleceu um programa de governo – do seu governo, se fosse ele que mandasse – que em (quase) tudo se demarca da filosofia seguida por Luís Montenegro. Mas mais do que uma linha de governo, Passos define uma matriz ideológica que está, expressa e explicitamente, nos antípodas da social-democracia. Foquemo-nos nesta frase: “Não devemos perder tempo com preocupações distributivas.” Não podia ser mais explícito na negação das ideias sociais-democratas que se destacam, precisamente, pelas “preocupações distributivas”. Preocupações sociais-democratas que começam no programa do seu próprio partido – mesmo que, volta e meia, não pratique muito.
Passos Coelho é um político direto, que diz ao que vem, sem dissimulações e sem enganar ninguém. Com candura, ou coragem inconsciente, volta a atingir, de forma agreste, um eleitorado que um partido grande precisa de acarinhar. Com efeito, noutro passo do seu discurso, critica o Governo, concretamente, pelo complemento extraordinário atribuído aos pensionistas: “Não chega distribuir um prémio aos reformados e fazer algumas habilidades orçamentais para salvar o ano”, diz o antigo primeiro-ministro. Uma afirmação que renega todas as preocupações de Montenegro acerca da “reconciliação” do PSD com os pensionistas, uma camada eleitoral que, em Portugal, país envelhecido, pode decidir eleições. Direto, como sempre, Passos Coelho põe aí o dedo na ferida: “Chegou o fim das margens de manobra para ir adiando decisões importantes” e são necessárias “mudanças sem ceder a cálculos eleitorais”. De facto, um dos problemas das nossas democracias modernas é o de que uma pequena clientela eleitoral de, suponhamos, 1,5 milhões de eleitores (em Portugal) pode determinar as escolhas e as políticas públicas que afetarão todos. Se os pensionistas são muitos e votam regularmente, os partidos tendem a falar para eles e a satisfazer as suas aspirações, canalizando para esse setor recursos financeiros que podiam ser empregues noutras opções, mais direcionadas para o bem comum. Com esta afirmação, Passos Coelho (que, pelos vistos, está longe de meter os papéis para a reforma…) é coerente na declaração de guerra ao que o passismo chegou a chamar “peste grisalha”, afastando uma massa de eleitorado que, perante este discurso, jamais voltará a dar-lhe o seu voto. Significa isso que uma candidatura presidencial, que necessita de 50% mais um, estaria sempre destinada ao fracasso – mas também significa que ficam diminuídas as hipóteses de sucesso, mesmo em legislativas, se Passos Coelho algum dia voltar à liderança do PSD.
Newsletter
Seja como for, as constantes intervenções de Passos, no espaço público, nas últimas semanas – e ele está a aceitar todos os convites para intervir –, depois de anos de silêncio, apenas interrompidos por aparições fugazes de toca-e-foge (como na campanha eleitoral de 2024, em que mais desajudou do que ajudou o PSD), significam que o antigo primeiro-ministro está a preparar o seu regresso à política ativa. Isso já é claríssimo. Não se vislumbrando, porém, por ser demasiado tarde, uma candidatura presidencial; e estando Luís Montenegro bem estribado na sua maioria clara. Assim, o timing do regresso é um mistério. Mas Passos, ainda assim, gere as suas intervenções à moda de Cavaco Silva: quando fala, o “comentariado” discute-o. Quando intervém, a agenda política estremece. Quando aparece, o País vira o pescoço na sua direção. Esse estatuto senatorial faz de Passos Coelho, tenha ele mais ou tenha ele menos hipóteses eleitorais, um potentado formidável, no panorama político português. Cavaco pode falar, mas já não regressa. Mas Passos permanece como “a reserva moral” da direita. A única reserva moral verdadeiramente ativa. E está a alimentar isso todos os dias, quer pelo silêncio, quer pela intervenção. De uma certa forma perversa, com este discurso, Pedro Passos Coelho tornou-se a principal figura da oposição, nem que fosse por breves momentos. Outra das suas vantagens é a de não ser, como dizem os brasileiros, “um político chuchu”, isto é, uma personalidade sem “sabor”. Tal como outros vultos antes dele – Mário Soares, Sá Carneiro, Cavaco Silva –, ou se ama ou se odeia.
Pelo caminho, Passos Coelho vai dizendo umas verdades de La Palisse: “Quando se evita tomar decisões tão importantes no tempo certo, está-se condenado a tomá-las fora de tempo”, sempre com “um resultado pior”. O problema, em Passos Coelho, é a natureza das “decisões” que devem ser tomadas no “tempo certo”. Já vimos que são decisões que não respeitam o ideário oficial do seu partido. Isso não tem nada de mal, mas o que “é importante decidir”, para Passos Coelho, pode ser uma decisão desastrosa, na perspetiva de quadrantes políticos diferentes do seu. É por isso que os conselhos do antigo primeiro-ministro, embora legítimos, precisariam de ser sufragados eleitoralmente, antes de serem aplicados pelo atual primeiro-ministro. A principal suspeita que podemos ter é a de que o seu ideário não foi sufragado nas últimas eleições. Se considerarmos apenas aquilo que, em 30 minutos, Passos Coelho deixa antever, do seu pensamento, verificamos que nada daquilo consta do programa eleitoral do PSD. Vamos supor que possa haver uma crise política inesperada. Com um Orçamento “dessalinizado” e praticamente aprovado, a única crise que poderia antever-se, a curto ou médio prazo (tendo em conta a legislatura de quatro anos) seria um desenvolvimento judicial, no caso Spinumviva, que deixasse a situação do primeiro-ministro insustentável. Ignoramos se Passos está a apostar nisso, mas um novo PSD liderado, de novo, por ele teria de se submeter a eleições, com um novo programa, suspeita-se, radicalmente diferente.
Passos alerta para o facto de “os governos, em Portugal e na Europa”, atribuírem uma urgência “ao curto prazo e uma importância demasiado relativa ao médio e ao longo prazo, por medo da reação das pessoas”. Bem-vindo à democracia: estamos a falar de ciclos eleitorais de quatro anos e estamos a falar de pessoas (cidadãos e eleitores) que, sim, reagem. “A política, ao contrário do que muitos pensarão, não acaba a cada eleição”, insiste o antigo chefe do governo. Mas sem eleições não há política. E não parece que Passos tenha uma fórmula para evitar que a “democracia seja o pior de todos os sistemas” (à exceção de todos os outros).
O Bangladesh está a mais de nove mil quilómetros de distância de avião e os dias parece que voam em Daca, a capital, mas ainda assim Cláudia Costa não tem uma vida divorciada de Portugal. Com os pais, que regressaram a Braga depois de décadas emigrados em França, a professora de Francês, Espanhol e Inglês na segunda escola internacional mais importante de Daca (a primeira foi fundada pelo governo dos EUA) fala ao telefone sempre que pode. Com os amigos, mantém o contacto através das redes sociais que também lhe vão trazendo a espuma dos dias.
Na quinta-feira, 30 de outubro, já era noite no Bangladesh (o país está seis horas à frente de Lisboa) quando começou por nos responder com um áudio no WhatsApp: “Vi o cartaz hoje e fiquei chocada. Chocada. Apareceu-me no feed do Facebook e pensei: ‘O que é que se está a passar?!’”
Mora há quatro anos e meio no Bangladesh, com o seu marido e os vossos três filhos. Como é que vê esta polémica?
Newsletter
Faço um paralelo com o que está a passar-se aqui, onde existe um partido extremista muçulmano que vende o seu peixe precisamente jogando com o medo que as pessoas têm da mudança e do futuro. Vamos ter eleições em fevereiro, veremos o que acontece. Esse cartaz e a canção são racismo puro. Estão a atacar um povo que nos últimos anos só tem trazido o bem a Portugal (basta pensarmos na área do têxtil) e que, agora, ao emigrar para o nosso país, faz o que nós também fizemos, como povo, e o que eu fiz e estou a fazer.
A Cláudia nasceu e viveu em França, onde foi leitora numa universidade, e, antes de Daca, deu aulas na Suíça. Também é uma imigrante.
Na Europa, distinguem-se os imigrantes dos expatriados pela cor da pele. Nós, os brancos, somos expatriados, mesmo que estejamos a fazer o mesmo que os imigrantes: a ganhar o nosso pão. A única diferença é que nós trazemos conhecimento e eles estão numa etapa anterior, mas, se já estamos a trazer conhecimento é porque os nossos pais e avós fizeram aquilo que eles estão a fazer agora: a levar os seus filhos para um país onde têm acesso a uma alimentação melhor e a uma educação melhor, para daqui a duas gerações poderem fazer o que eu faço. Se hoje há portugueses professores, médicos ou engenheiros na Suíça, é porque os seus antepassados foram para lá como carpinteiros ou empregadas domésticas. Os portugueses têm a memória curta.
Quando precisam muito dos imigrantes…
Exato. Ainda há pouco tempo, ouvi um discurso do Sarkozy em que ele lembra como a Europa está envelhecida e como o poder está na Ásia, porque está na demografia. Gostava que André Ventura mandasse embora esse milhão e tal de imigrantes – ia ver quem pagava as pensões de reforma dos portugueses. Sempre me ensinaram que quando uma pessoa traz um problema para a mesa, deve também trazer uma solução. E a solução, neste caso, é dar formação, dizer quais são as regras. Não querem ver os imigrantes a rezar na rua, no chão? Então, estabeleça-se que não se pode fazer isso e arranjem-se mesquitas. É só um exemplo, mas Ventura e o seu grupo não querem soluções. Querem o poder à custa de uma população portuguesa pouco educada e pouco viajada.
Os portugueses deviam visitar o Bangladesh?
Por favor, venham! Se vissem, como eu vejo, crianças de 5 ou 6 anos a apanhar lixo na rua para depois ser reciclado, percebiam a razão pela qual as pessoas emigram daqui: fazem o máximo para poder levar os seus filhos para um sítio melhor. Eu faria igual. O problema da integração levantado por Ventura não é um problema do Bangladesh, é um problema de Portugal. Portugal é que tem de integrar estas pessoas, porque, a curto ou longo prazo, vamos precisar delas. O mundo ocidental está a envelhecer e só aqui, no Bangladesh, há 170 milhões de habitantes. Como é que a Europa vai fazer face a esta hegemonia? Temos de abrir caminho para trabalhar com toda a gente no futuro.
A Cláudia não hesitou em trocar Basileia por Daca?
Quando surgiu a oportunidade de vir para o Bangladesh, tive um momento de pausa porque me lembrava das imagens de extrema pobreza e dos comboios com gente em cima. Mas fui pesquisar e verifiquei que o país é muito mais do que isso.
O que encontrou, ao chegar?
Para começar, pessoas muito acolhedoras, que recebem os estrangeiros com afeto. E prontas a ajudar, dão o pouco que têm. O norte, com as plantações de chá, é lindíssimo, o sul tem praias muito bonitas e os Sundarbans (a reserva principal dos tigres-de-Bengala) é uma zona muito extensa e com uma fauna e uma flora fantásticas, onde uma pessoa pode viajar vários dias de barco e não conseguir ver tudo.
Os Sundarbans não têm nada que ver com Daca, onde só na área urbana vivem mais de 22 milhões de pessoas.
Nada (Risos). Daca, fora da zona das embaixadas, é uma cidade suja, poluída, com gente a viver na rua e muito lixo pelo chão, mas não podemos limitar o Bangladesh à sua capital. A última vez que estive em Portugal, precisei de renovar o Cartão de Cidadão e a funcionária que me atendeu comentou: “Você consegue viver com aquelas pessoas tão porcas?!” Ouvi aquilo e fiquei chocada, mas deixei passar, porque alguém com aquela mente… não valia a pena dizer-lhe nada. Aqui mesmo à frente da nossa casa, há agora um prédio a ser construído e os trabalhadores dormem lá, nuns barracões. Como não têm água corrente, a primeira coisa que fazem de manhã é escovar os dentes e lavarem-se com água de bidões. Vemos isso todas as manhãs.
Lá se vai o estereótipo da gente que não se lava.
A maioria das pessoas tem realmente condições de vida difíceis. Elas admiram-nos porque veem a Europa como o Paraíso e acham que saímos do nosso conforto. Mas nós aqui vivemos num conforto igual àquele que tínhamos. Quem nos contrata dá-nos um salário e alojamento iguais ou melhores. A escola construiu um prédio só para os professores, a dez minutos de carro da zona das embaixadas.
Não há muitos portugueses no Bangladesh, pois não?
Há quatro anos, quando chegámos a Daca, éramos uns 12, mas hoje só cá estamos eu, o meu marido, que vai e vem porque tem trabalho em Portugal, e os nossos três filhos. Não existe sequer embaixada, só um cônsul honorário. De resto, conheço mais um ou dois portugueses que trabalham na área do têxtil e vão e vêm, mas temos bastante vida social, porque na minha escola 80% dos alunos pertencem à elite de Bangladesh. Os pais podiam ser uns snobs, porque para eles, se calhar, somos da plebe, e no entanto são muito acolhedores. Não discriminam as crianças estrangeiras e convidam a família toda para as festas.
A vida é muito diferente daquela que tinham na Suíça?
Tento que os nossos filhos sigam um ritmo parecido. A mais velha vai a uma igreja católica que tem missa em bangla e em inglês, em Banani [um bairro cosmopolita de Daca], porque quer fazer a confirmação. Há uma igreja com origem portuguesa, a do Santo Rosário, mas não é muito ativa. Quando cheguei, achei graça ver pessoas com apelidos como Rosário, Gomes, Lopes. São descendentes de portugueses e têm muito orgulho nisso.
Planeia ficar em Daca até quando?
Tenho contrato até junho de 2027, mas ainda vamos ver se as eleições vão ou não modificar o país. Não queremos que aconteça uma revolução com os nossos filhos aqui. Há um ano, foi bom não terem deixado os militares tomar conta do país, mas vejo a população cansada da falta de decisões. Com a fuga de Hasina [Sheikh Hasina, a primeira-ministra, que se demitiu e fugiu, em agosto de 2024], fecharam muitas fábricas e saíram muitas fortunas. As pessoas estão agora à espera de que as eleições reavivem a economia, mas elas podem levar para um lado ou para o outro. E se ganharem os islamitas, podemos entrar num declínio grande. As mulheres deste país são mulheres muito coloridas, que dançam, trabalham… no fundo, têm uma vida parecida com a nossa. Tenho receio de que se regrida na sua independência, como já vimos acontecer noutros países.
“Combater a ascensão do extremismo de direita é um esforço importante. Precisam que eu fale com os políticos do partido Chega? Precisam de palavras que tranquilizem as comunidades imigrantes de Portugal?”
Foi deste modo que a ilustradora Fahmida Azim, vencedora de um Pulitzer em 2022, começou por responder quando a VISÃO lhe pediu um comentário ao cartaz “Isto não é o Bangladesh”. Pouco depois, voltaria ao contacto por email, com uma proposta: “Uma carta para o vosso país foi a forma mais direta e concisa que encontrei para expressar os meus pensamentos. Isso funciona?”
De leitura obrigatória.
Newsletter
“Caro Portugal,
Tens políticos que gastaram bom dinheiro para te dizer ‘Isto não é o Bangladesh’, porque um argumento fictício é o melhor que têm para te oferecer. Não há ninguém neste planeta a reivindicar que Portugal é o Bangladesh. Esses políticos esperam que, se tu os deixares confundirem-te com um problema geográfico fictício, não terão de resolver nenhum dos teus verdadeiros problemas. Os bengalis representam 0,48% da tua população. Eliminar 0,48% das pessoas resolve alguma coisa?
Se ainda te sentes confuso sobre se vives em Portugal ou no Bangladesh, pergunta aos teus imigrantes bengalis. Eles podem contar-te quanto tempo demora o voo. Podem falar-te de todas as pessoas e lugares que ainda lhes fazem doer o coração. Podem contar-te como a sua antiga pátria ainda está a recuperar de gerações de reis, colonizadores e ditadores.
Podes aprender que, embora o Bangladesh seja um país relativamente pobre, nós, bengalis, somos um povo capaz e resiliente. Os teus nacionalistas de direita, no entanto, são piores do que as pessoas que não têm um tostão, são péssimos em imaginação. Nem sequer conseguiram visualizar para ti um Portugal onde todos estão seguros e são bem-vindos.
Eu própria sou uma imigrante bengali-americana, e sei bem o que é lidar com discursos racistas velados. Demorei demasiado tempo a perceber que as diferenças culturais nunca foram realmente importantes. O deus a quem rezo, a comida que como e a roupa que visto são, no máximo, questões logísticas insignificantes. A assimilação não impediu as bombas, não salvou ninguém da crise imobiliária e indubitavelmente não fechou os campos de detenção de migrantes.
O racismo é uma fraude que suga a alma e desperdiça o dinheiro dos contribuintes. Não sejas mais um tolo que cai nessa armadilha.
Toda a sorte do mundo”
Fahmida Azim
O sucessor de Rui Moreira à frente da Câmara do Porto tomou posse esta quarta-feira, numa cerimónia que decorreu no Mosteiro de São Bento da Vitória. Pedro Duarte começou por destacar “o compromisso de servir, com lealdade e dedicação, uma cidade que ama profundamente”.
“O Porto é uma cidade com uma personalidade própria: firme nas convicções, direta nas palavras e calorosa nos afetos. Uma cidade feita de trabalho duro e de liberdade, de resistência e de sonho. Como nos ensinou Agustina, ‘o Porto não é um lugar, é um sentimento’. E é, de facto, isso: uma forma de sentir o mundo e, mais ainda, de o exprimir sem medo – num abraço convicto, numa gargalhada dobrada ou num palavrão redondo”, considerou, antes de prometer preservar a identidade e a cultura da cidade, para “garantir, dia após dia, decisão a decisão, que o Porto nunca deixe de ser Porto”.
“Preservar a memória da cidade é também reconhecer quem a soube servir”, continuou, para enaltecer a “independência e coragem” de Rui Moreira.
Newsletter
“Abriu o Porto ao mundo e deu mundo ao Porto. Nestes doze anos, a cidade viveu uma transformação profunda e tornou-se uma referência internacional. Essa herança inspira-nos e responsabiliza-nos. Em nome da cidade, digo: Obrigado, caro Rui”, agradeceu.
Pedro Duarte garantiu ainda que manterá o “legado portuense das contas certas e da gestão responsável”, tendo por alicerce da confiança a transparência.
“Estarei nas ruas, nos bairros, nos mercados e nas escolas, a ouvir de perto os portuenses”, prometeu, estabelecendo como medida do seu mandato “fazer do Porto uma cidade feliz, uma cidade segura, onde se viva sem medo”.
Antes de terminar o discurso que marcou a sua tomada de posse, Pedro Duarte citou também Miguel Torga: “Um Porto formalista e anémico, a recalcar os impulsos, onde não fosse possível confundir-se uma peixeira com uma viscondessa e um pensador com um padeiro, não era digno de ter dado o nome a Portugal.”
“E, acima de tudo, que nunca esqueçamos o que nos distingue e nos une: o amor ao Porto e a vontade de o ver sempre maior, mais justo, e mais feliz. E, já agora, com sotaque – concluiu -Viva o Porto! Bibó Porto!”
1947
Os britânicos decidem pôr fim ao seu domínio de 200 anos no subcontinente indiano e dividi-lo em duas nações separadas: a Índia, de maioria hindu, e o Paquistão, de maioria muçulmana, dividido em duas províncias, o Paquistão Oriental e o Ocidental, cada uma em lados opostos da Índia. Este processo não só é complicado, como se revela extremamente sangrento, abrindo feridas que ainda hoje perduram na região: mais de um milhão de pessoas foram mortas em atos de violência sectária, e entre dez e 15 milhões foram deslocadas à força.
1948
Newsletter
O líder fundador do Paquistão, Muhammad Ali Jinnah, proclama que apenas o urdu, falado pelos muçulmanos no norte e no noroeste da Índia britânica, deveria ser a língua oficial do país. O bengali, falado predominantemente pelos paquistaneses orientais, passa a ser considerado uma língua “não muçulmana”, o que levou, por exemplo, à proibição de livros, canções e poesias bengalis de Rabindranath Tagore, Nobel da Literatura.
1949
A Liga Awami é fundada para fazer campanha pela autonomia do Paquistão Oriental em relação ao Paquistão Ocidental.
1952
Estudantes e outros ativistas lançam um movimento a exigir o reconhecimento do bengali como língua oficial do Paquistão Oriental, que é violentamente reprimido.
1970
O ciclone Bhola causa meio milhão de mortos, com a população a queixar-se da resposta ineficiente do governo central, no Paquistão Ocidental. Nas eleições desse ano, a Liga Awami, liderada pelo Sheikh Mujibur Rahman, obtém uma vitória esmagadora. Islamabad recusa-se a aceitar os resultados, desencadeando um movimento de resistência civil entre a população.
1971
A 26 de março, a Liga Awami proclama a independência da província, que passa a chamar-se Bangladesh, e inicia a guerra de libertação, com o apoio da Índia, em que as forças paquistanesas terão morto mais de três milhões de bengalis. A guerra ocorreu no contexto da Guerra Fria, com a União Soviética a apoiar a Índia e os EUA do lado do Paquistão. A 16 de dezembro de 1971, as Forças Armadas paquistanesas renderam-se ao Exército indiano, passando a data a ser assinalada como o Dia da Vitória, no Bangladesh.
1972
O secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, considera o Bangladesh um “caso perdido”, com 70% da sua população a viver abaixo da linha de pobreza, por causa de anos de desigualdade económica, da guerra e o ciclone Bhola.
1975
O líder da Liga Awami, Sheikh Mujibur Rahman, é assassinado, num golpe militar. O país fica sob lei marcial.
1977
O general Ziaur Rahman, que tinha declarado o início da guerra da independência e havia sido o chefe do primeiro governo provisório, torna-se Presidente, como líder do Partido Nacionalista do Bangladesh.
1981
Ziaur Rahman é assassinado, numa tentativa de golpe de Estado, ficando o país sob uma administração provisória.
1982
O chefe do Estado do Exército, general Hussain Muhammad Ershad, lidera um golpe de Estado sem derramamento de sangue, impondo o regime militar e a lei marcial.
1986
O Presidente Ershad suspende a lei marcial e restabelece a Constituição.
1988
Ao mesmo tempo que o Islão se torna a religião oficial do Estado e fortes inundações deixam milhões sem abrigo, Ershad organiza eleições e cria o Partido Jatiya para as disputar – interferindo no bipartidarismo sempre dominado pela Liga Awami e pelo Partido Nacionalista do Bangladesh, fundados pelos líderes assassinados Mujib e Zia, respetivamente. Na tradição dinástica da região, os partidos foram herdados pela filha de Mujib, Sheikh Hasina, e pela viúva de Zia, Khaleda Zia. As duas mulheres eram opositoras ferozes, mas odiavam Ershad ainda mais e boicotaram a eleição.
1990
O Presidente Ershad renuncia após protestos em massa.
1991
Begum Khaleda Zia, viúva do Presidente Ziaur Rahman, torna-se primeira-ministra, assumindo um poder quase presidencial. Sheikh Hasina Wajed, filha de Sheikh Mujibur Rahman, faz-lhe uma oposição feroz no Parlamento e nas ruas.
1996
A Liga Awami ganha as eleições e regressa ao poder sob a liderança de Sheikh Hasina Wajed.
1998
Dois terços do país são devastados pelas piores inundações da História.
2001
Begum Khaleda Zia regressa ao poder, com o seu Partido Nacionalista a liderar uma coligação que obtém uma maioria de dois terços no Parlamento.
2006
Muhammad Yunus ganha o Nobel da Paz, como pioneiro do microcrédito e das microfinanças, fundamentais para tirar milhões de pessoas da pobreza.
2008
Nas eleições gerais, a Liga Awami conquista mais de 250 dos 300 lugares no Parlamento. Sheikh Hasina toma posse como primeira-ministra em janeiro de 2009, onde permanecerá durante quatro mandatos.
2013
Sheikh Hasina veta um projeto de lei islamista que visava proibir críticas ao Islão. O desabamento de um prédio onde estavam diversas fábricas de confeção de roupa – para marcas internacionais – mata mais de 1 100 trabalhadoras da indústria têxtil.
2017
O Bangladesh acolhe mais de um milhão de muçulmanos rohingya, em fuga da repressão militar em Myanmar.
2018
A líder da oposição, Khaleda Zia, é condenada a cinco anos de prisão por corrupção, o que a impede de concorrer às eleições, onde a Liga Awami, de Sheikh Hasina, conquista uma vitória esmagadora, após uma campanha marcada por muitos relatos de violência, intimidação e fraude.
2020
Khaleda Zia é libertada, por razões de saúde, mas fica impedida de qualquer atividade política e em prisão domiciliária.
2024
Em janeiro, numas eleições sem a participação da oposição, Sheikh Hasina é novamente nomeada chefe do governo. No entanto, em agosto, uma revolta popular, com grande participação estudantil, obrigou à sua renúncia e à consequente fuga para a Índia. Pouco depois, Khaleda Zia é absolvida dos casos de corrupção, que a tinham levado à prisão. Um governo interino, liderado por Muhammad Yunus, administra o país, com vista às eleições de fevereiro de 2026.
Nome República Popular do Bangladesh Bandeira O círculo vermelho simboliza o sacrifício para alcançara independência; o verde, a vegetação exuberante. População 174 milhões (oitavo país mais populoso do mundo) Área 148 460 km² (56% maior do que Portugal) Religião Muçulmanos 91%, hindus 8%, outros 1% (estimativa de 2022) Economia Depois da revolução, a revista The Economist elegeu o Bangladesh como o país do ano, apostando numa transição democrática, chefiada por Muhammad Yunus. A principal exportação (95%) são os têxteis.
No início do próximo ano, é provável que Frederico Fezas Vital esteja de regresso a Daca, encabeçando uma viagem de imersão no ecossistema que Muhammad Yunus começou por criar nas aldeias em redor da capital do Bangladesh, nos longínquos anos 70. Foi esse o pedido que o aclamado “pai do microcrédito” lhe fez em junho. Afinal, o português dirige um centro de investigação que pertence à rede criada pelo Prémio Nobel da Paz em 2006 – o Católica-Lisbon Yunus Social Innovation, cujo objetivo é fomentar e semear a inovação social como ferramenta na resolução de problemas sociais e ambientais.
O pedido surgiu em tom sério durante o encontro festivo de membros dos centros da rede Yunus Centre (são mais de cem, no mundo) que o atual chefe do governo provisório do Bangladesh tem por costume fazer coincidir com o seu dia de anos, 28 de junho. Suspenso por causa da perseguição que lhe foi movida, durante mais de uma década, pela então primeira-ministra Sheikh Hasina (autoexilada na Índia, desde agosto de 2024), o tradicional encontro seria retomado este verão, para gáudio daqueles que estiveram no Bangabhaban, o palácio presidencial, outrora residência do governo do Império Britânico.
“O microcrédito é a grande obra de Yunus e espalhou-se pelo mundo todo, até nos Estados Unidos há um Banco Grameen”, lembra Fezas Vital. “Mas, só no Bangladesh, ele tem 70 organizações, e continua hiperativo aos 85 anos.”
Newsletter
POR UM MUNDO 3 ZERO
Há escassos quatro meses, nem o diretor-executivo do centro de investigação da Católica criado em parceria com o Yunus Centre nem o próprio Yunus adivinhavam que Portugal iria em breve assistir a uma campanha racista e xenófoba que entrará para a pequena História como “a polémica do cartaz ‘Isto não é o Bangladesh’”.
A relação entre os dois países é boa. Herança dos tempos em que compatriotas nossos começaram a fixar-se na região de Bengala, no século XVI, como lembra Luís Almeida Martins no artigo Quando os Portugueses Eram ‘Imigrantes’ no Bangladesh, ela foi cimentada nas últimas décadas com a chegada a Portugal de alguns milhares de bengalis, também à procura de uma vida melhor.
Visitantes frequentes Muhammad Yunus e Runa Khan têm fortes ligações a Portugal, onde se deslocam com regularidade
Geograficamente e simbolicamente, Muhammad Yunus sabe muito bem que Portugal não é o Bangladesh. Na vida real, o economista já cá veio mais do que uma vez, a primeira em novembro de 2006, um mês antes da cerimónia de entrega do Nobel que ganhou com o Banco Grameen, fundado por ele, em 1976, para combater a extrema pobreza no seu país, através da concessão de pequeníssimos empréstimos a pessoas de baixo rendimento, capazes de avançar com microempreendedorismos, mas habitualmente rejeitadas no sistema financeiro.
Desde então, o “banqueiro dos pobres” regressou a Portugal várias vezes, a última em 2023, participando numa iniciativa do movimento Sing for Hope, cofundado pela sua filha mais velha, a soprano Monica Yunus.
O Banco Grameen é a base para o “mundo 3 zero” (exclusão zero, carbono zero, pobreza zero) que Yunus quer promover. Diz ele que o planeta precisa de uma economia que liberte o altruísmo como força criativa, tão poderosa quanto o interesse individual, e em que o acesso ao crédito é visto como um direito humano fundamental.
“Os pobres merecem crédito. Se alguém disser o contrário, eu digo que é mentira”, afirmou ele na conferência que deu em março de 2007, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, escreveu-se então no site Sete Margens.
“LÁ FORA, ERA DIFERENTE”
Nascido no verão de 1940, em Bathua, uma aldeia do distrito de Chittagong (hoje Chattogram), na região de Bengala, o terceiro dos nove filhos de Haji Muhammad Dula Mia Saudagar, um joalheiro sufi, seria encorajado a prosseguir os seus estudos. O sufismo é uma vertente mística existente dentro do islamismo, que se baseia na ideia de que o espírito humano é uma emanação do espírito divino. Muhammad Yunus não o renegou, mas concentraria a sua atenção nos manuais de Economia.
Aos 21 anos, já era mestre, pela Universidade de Daca, e, aos 25, ganhou uma bolsa Fulbright para se doutorar nos EUA. Era lá que estava a dar aulas, na universidade pública do Tennessee, quando o Bangladesh conquistou a sua independência, em 1971.
O jovem professor entrou na luta à distância e, logo que pôde, regressou a Daca, tendo sido nomeado para a Comissão de Planeamento do governo, um cargo que rapidamente largou. Preferiu voltar a ensinar Economia.
Estava na universidade quando começou a ver pessoas morrerem perto do campus, durante a grande fome que assolou o país em 1974. As salas de aula “pareciam cinema”, porque “lá fora, a realidade era diferente”, recordaria na sua segunda passagem por Portugal.
Depois das aulas, começou, então, a ir às aldeias vizinhas para tentar perceber as razões daquela pobreza extrema. Numa delas, chamada Jobra, conheceu uma mulher que fazia bancos com bambus (“verdadeiras obras de arte”) e ficou a saber que ganhava uma ninharia porque tinha de pedir dinheiro emprestado para comprar os materiais e o agiota comprava-lhe os bancos ao preço que lhe apetecia.
“Era um negócio que tornava as pessoas escravas”, lembrou a quem o ouviu na Gulbenkian. “Decidi pagar esses empréstimos, cerca de 27 dólares, a 42 mulheres da aldeia. Passei a ser visto como um anjo. Um anjo por 27 dólares.”
Esse seria apenas um primeiro passo. Com a ajuda dos seus alunos, Yunus alargou a sua pesquisa a mais aldeias e, dentro de pouco tempo, criou um banco que trabalha numa lógica ao contrário do habitual: “Quanto menos tiveres, mais interessados estamos em ti.”
Em bangla, grameen significa aldeia. Estava escolhido o nome de um banco de microcrédito cujos melhores clientes começaram por ser as mulheres.
ARISTOCRATA TODO-O-TERRENO
Quando quis explicar às mulheres de Jobra aquilo que andava a magicar, Yunus lembrou-lhes: “A minhoca anda devagar, mas chega ao destino.”
Essa frase poderia também ter sido ouvida a Runa Khan, 66 anos, fundadora da Friendship, uma organização não governamental internacional que apoia comunidades vulneráveis e remotas do Bangladesh, particularmente afetadas pelas alterações climáticas. Mas há uma outra frase que ela usa com frequência: “As pessoas podem viver na pobreza, mas não podem viver sem dignidade nem esperança.”
Criada em 2002, a ONG avançou logo para o terreno com um navio-hospital para servir os habitantes das ilhas de areia (chamadas chars) do rio Brahmaputra. É um rio poderoso, que pode atingir velocidades de 12 a 14 nós nalgumas zonas e chega aos 30 quilómetros de largura em determinados troços. A sua exposição às alterações climáticas era – e é – enorme.
Além do pouco ou nenhum acesso a cuidados de saúde, essas pessoas não tinham oportunidades para escapar a uma vida de extrema pobreza, percebeu rapidamente Runa. Optou, então, por adotar uma abordagem holística, juntando serviços de saúde, educação, resiliência climática, cidadania inclusiva, preservação cultural e desenvolvimento económico sustentável.
De origem aristocrática, Runa nunca sentiu na pele grandes dificuldades, mas anda no terreno há anos suficientes para conhecer bem a situação atual no Bangladesh.
“As coisas mudaram drasticamente no nosso país nos últimos 20 anos”, lembrou numa entrevista recente, publicada no site da Initiatives pour l’Avenir des Grands Fleuves, uma associação dedicada ao futuro dos grandes rios, cofundada pelo escritor francês Erik Orsenna. “Por exemplo, temos escolas móveis que podemos desmantelar em zonas onde há inundações: entre 2006 e 2012, mudámos uma escola a cada dois ou três anos, mas, em 2021, mudámos mais de oito escolas.”
Runa passa boa parte dos seus dias em aviões e em palestras, por causa da Friendship. Uma vez por ano, pelo menos, visita Portugal porque pertence ao júri do Prémio Gulbenkian para a Humanidade, um prémio que diz “celebrar o espírito indomável daqueles que lutam por um mundo melhor”. Mas concentra as suas energias sobretudo no Bangladesh, um país que precisa da ajuda do resto do mundo, alerta, porque “já está a oferecer tudo o que tem” para enfrentar dois grandes desafios: as alterações climáticas e a crise dos refugiados rohingya.
DESENHAR A VIDA REAL
Runa Khan não exagera. No final de agosto, Yunus anunciou que o país esgotou os recursos internos para acolher os rohingya que fugiram da vizinha Myanmar, devido à campanha de perseguição lançada em 2017 pelo governo da antiga Birmânia.
No Cox’s Bazar, o maior campo de refugiados do mundo, situado no sudeste do Bangladesh, estão hoje 1,3 milhões de rohingya, um povo muçulmano que a ONU diz ser alvo de limpeza étnica. É lá que mora Samira, a refugiada de 11 anos protagonista do livro infantojuvenil, em verso, ilustrado por Fahmida Azim a convite da escritora inglesa Rukhsanna Guidroz.
Altruismo A portuguesa AMI tem, há vários anos, diversos projetos no Bangladesh
De origem persa, indiana e chinesa, Guidroz sabia que Fahmida gosta de trabalhar com histórias sobre violações de direitos humanos, comunidades oprimidas, ativistas perseguidos pelo Estado – ou, melhor ainda, ligadas à sua experiência pessoal. A vida ficcionada da pequena Samira, que encontra paz e força num clube de surf para raparigas, iria com certeza inspirar a jovem bengali a viver nos EUA desde os 6 anos.
Samira Surfs foi editado em 2021, o ano em que Fahmida fez equipa com os jornalistas Anthony Del Col e Josh Adams para contar os tormentos enfrentados por uma mulher uigur para fugir de um campo de internamento chinês, numa maravilhosa reportagem ilustrada. Publicada no site de notícias Business Insider (onde ainda se encontra), ganharia o Pulizer de Reportagem Ilustrada em 2022, quase ao mesmo tempo que o livro com os seus desenhos vencia o prémio Golden Kite.
Os prémios trouxeram-lhe mais trabalhos, numa carreira que demorou a descolar. O apoio dos pais era inexistente, contou nessa altura ao jornal Real Change, uma espécie de revista Cais de Seattle, onde mora agora.
“Quando se é imigrante, a história que nos contam sobre o que é o sucesso é diferente”, lembrou. “Não creio que seja por causa de algum estereótipo cultural… mas só pensamos em três profissões: médico, engenheiro ou advogado. Penso que é por sermos colocados numa posição em que nos dizem que não podemos procurar mais nada além disso.”
Aos 31 anos, Fahmida Azim não parece ter dúvidas sobre a sua resiliência enquanto imigrante, de origem bengali. Basta ler a carta que escreveu a Portugal, ao saber da polémica do cartaz “Isto não é o Bangladesh”.
O ALTRUÍSMO COMO FORÇA CRIATIVA
“Se conseguirmos imaginar algo, há uma boa probabilidade de que isso aconteça. Se não conseguirmos imaginar, a hipótese de que aconteça é quase nula”, lembra Muhammad Yunus, no seu livro Economia Zero: Um Mundo com Zero Pobreza, Zero Desemprego e Zero Emissões Líquidas de Carbono, de 2017, publicado pela Alma dos Livros, agora em outubro.
Apoio A AMI já promoveu a construção de dois hospitais, em 2011 e 2024, no Bangladesh
O atual chefe de governo do Bangladesh acredita no altruísmo como força criativa, já escrevemos. Na ONG humanitária portuguesa AMI, fundada há mais de 40 anos, sabe-se que as missões não seriam possíveis sem o altruísmo dos voluntários e sem a capacidade de imaginar e acreditar.
Em Chattogram, a segunda maior cidade do país, arrancou em julho o programa de empoderamento e saúde para as populações refugiadas deslocadas, implementado pela organização Bangladesh Integrated Social Advancement Programme (BISAP), em mais uma parceria com a AMI. A relação da ONG portuguesa com várias associações bengalis que estão no terreno é antiga e já levou à construção de dois hospitais, em 2011 e 2024.
“A saúde falha entre os bairros de lata e os campos de refugiados, e as ambulâncias, camas, médicos e enfermeiros contam-se pelos dedos”, lembra Ana Ferreira, representante da AMI, que já esteve várias vezes no Bangladesh.
Previsto para durar um ano, o novo programa implementado pela BISAP dirige-se aos bihari, muçulmanos indianos que emigraram para a área oriental do Paquistão (que passou a fazer parte do Bangladesh) e, mais de 50 anos depois, continuam a viver sem condições de higiene, saúde pública ou habitação. Deverá beneficiar diretamente mais de três mil pessoas, um terço das quais provenientes da comunidade de acolhimento, e indiretamente mais de 16 mil.
Quem disse que os mais de nove mil quilómetros de distância de avião que nos separam do Bangladesh não podem ser galgados, a bem de um mundo mais justo?
A nova Lei de Estrangeiros, promulgada recentemente pelo Presidente da República, introduz uma mudança de paradigma na política migratória portuguesa: o País passa a dar prioridade à atração de migrantes “altamente qualificados”, enquanto endurece as condições de entrada e permanência de trabalhadores com menos habilitações.
O objetivo confesso do Governo é o “alinhamento com as necessidades da economia e dos setores de inovação”.
Embora seja de louvar e apoiar este objetivo de transformar Portugal num polo de talento internacional, não podemos deixar de constatar a existência de dois factos paradoxais.
Newsletter
O primeiro é que, para grande consternação e raiva dum certo setor politico e social, o país de origem duma grande parte destes jovens talentos arrisca-se a ser a Índia, porquanto é por demais sabido e reconhecido o desenvolvimento tecnológico e a aposta na investigação que aquele país tem feito na última década. Não é por acaso que alguns dos grandes “ cérebros” provenientes da imigração e a residir nos Estados Unidos da América e na Inglaterra são indianos.
Naturalmente que iremos ficar com as segundas linhas deste potencial externo, já que não conseguimos rivalizar com outros destinos que oferecem condições exponencialmente melhores que as nossas.
O segundo paradoxo, que decorre do anterior, diz respeito ao timing desta orientação que surge num momento em que Portugal enfrenta a fuga crescente dos seus próprios jovens qualificados — um fenómeno que ameaça a sustentabilidade demográfica e a económica a médio prazo.
Ao seja, ao mesmo tempo que tenta atrair “cérebros” do exterior, Portugal vê os seus próprios jovens a emigrar a um ritmo preocupante. Os números são preocupantes para não dizer assustadores: dados recentes indicam que entre 2021 e 2023 o País perdeu cerca de 42 000 jovens com ensino superior na faixa dos 18 aos 35 anos e o futuro não se perspetiva melhor, segundo a Federação Académica do Porto, que revelou que, 73% dos estudantes ponderam sair do País após a conclusão dos estudos.
O Governo defende que Portugal deve “valorizar talento e conhecimento”, adaptando a imigração às “necessidades reais da economia e à transição tecnológica”.
No entanto, o que os números da economia mostram claramente é que a necessidade imperiosa de mão de obra imigrante faz-se sentir sobretudo nos setores menos qualificados.
A não ser que a ideia (peregrina) de um certo setor da nossa política tenha colhido junto do Governo e este considere que os nossos jovens doutores não se importarão de servir à mesa desde que lhes seja pago principescamente, teremos dificuldades em áreas já identificadas como a agricultura , a hotelaria e restauração, os cuidados geriátricos, etc.
Portugal tem de, urgentemente, apanhar o comboio da reforma tecnológica e a estratégia deverá ser privilegiar, numa primeira fase, os nossos jovens altamente qualificados e não optar por uma política de atração externa. Essa pode ser uma fase subsequente, mas nunca uma primeira opção.
São urgentes políticas de fixação dos nossos talentos através de melhores salários e carreiras estáveis e mais atrativas. Precisamos de incentivar o regresso daqueles que partiram em busca de algo que Portugal não lhes conseguiu dar.
Por tudo isto, a aposta no “talento internacional” pode ser justificada como uma forma de modernizar o mercado de trabalho português, mas não deixa de ser uma contradição estrutural. Com efeito, a médio prazo, esta receita que junta o envelhecimento populacional e a emigração jovem com medidas restritivas à imigração menos qualificada, irá colocar o País perante uma situação de perda-perda: a falta de força de trabalho em setores essenciais e a perda de capacidade de inovação.
A solução terá que passar sempre pelo equilíbrio entre a atração de talento externo e a retenção interna dos recursos humanos formados.
Só assim poderemos construir uma sociedade mais equitativa, dinâmica e sustentável.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.