No início de novembro, Ron Dermer, ministro dos Assuntos Estratégicos e um dos principais colaboradores de Benjamin Netanyahu, o chefe do governo de Israel, viajou para Moscovo, na maior das discrições. Objetivo: pedir ao Kremlin para que o regime sírio de Bashar al-Assad, aliado de longa data da Rússia, impedisse que o Irão e os xiitas do Hezbollah, a principal organização político-militar libanesa, usassem a Síria como uma plataforma logística para contrabandear armas e mísseis contra Israel. Mais do que um simples pedido, tratava-se de um ultimato. Pelos vistos, o Kremlin tentou convencer Assad a fazer alguma coisa. Em vão.

QUAIS OS SINAIS DE QUE ALGO IMPORTANTE IA ACONTECER

A 24 de novembro, é a vez de uma delegação russa viajar para Telavive, para discutir novamente a situação no Médio Oriente. Três dias depois, o mundo ficava a saber que Israel e o Líbano tinham celebrado um acordo de cessar-fogo, após cinco semanas de implacáveis bombardeamentos e raides hebraicos sobre Beirute e a zona sul do país dos cedros. Em simultâneo, nessa mesma data, um outro acontecimento passou praticamente despercebido em termos mediáticos: o início de uma ofensiva militar de rebeldes islamistas, nas províncias sírias de Deraa e de Idlib. No Norte, a Organização para a Libertação do Levante ‒ ou Hayat Tahrir al-Sham (HTS) – avançava a bom ritmo e sem oposição, com o óbvio conhecimento e apoio da Turquia.

Jihadista O líder do HTS deixou de usar turbante para ganhar credibilidade e ter um ar menos radical

A 1 de dezembro, caía a maior metrópole económica e demográfica da Síria e uma das cidades mais antigas do mundo, Aleppo. Nesse mesmo domingo, na capital, Damasco, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, Abbas Araghchi, desdobrou-se em selfies para as redes sociais e deleitou-se com a shoarma e outras iguarias do restaurante Dajajati, no seleto bairro de Mezzeh, onde se concentram várias embaixadas. De acordo com o Financial Times, o chefe da diplomacia da república islâmica avisou o Presidente Assad de que o seu país já não estava em condições de lhe prestar auxílio adicional, caso alguma desgraça viesse a acontecer. O ditador damasceno, de 59 anos, que subiu ao poder em 2000, com múltiplas promessas de reformas económicas e políticas, formou-se em Medicina e esqueceu-se da lei de Murphy: se algo pode correr mal, vai correr mesmo mal. Algumas questões básicas sobre o país que o académico franco-tunisino Michel Seurat definiu como “Estado de Barbárie” ‒ ou não tivesse ele sido um símbolo e um mártir da violência na região.

COMO É QUE O REGIME DE ASSAD COLAPSOU TÃO DEPRESSA?

Abbas Araghchi não quis denunciar as vulnerabilidades do regime sírio, talvez para não o acusarem de fazer de tonto, a exemplo do que aconteceu com o antigo ministro iraquiano da Informação, Mohammed Saeed al-Sahhaf, que, em abril de 2003, com os tanques americanos às portas de Bagdade, insistia em afirmar, de forma patética, que o Presidente Saddam Hussein e o seu governo estavam para durar. Um ilustre comentador político iraniano, Hater Salehi, resumiu tudo o que, neste momento, está em causa: “A grande lição que a República Islâmica [do Irão] pode tirar da Síria é que nenhum governo pode durar sem o apoio do seu povo.”

Ora a Síria, até ao passado fim de semana, foi governada pela mesma família durante quase 54 anos. Hafez al-Assad, o patriarca, um pan-arabista secular que foi piloto e comandante da Força Aérea, instalou-se no poder após um golpe palaciano e só a morte tornou possível que o terceiro dos seus cinco filhos lhe sucedesse no cargo, no dealbar do século XXI. A contragosto, convenhamos. Bashar não tinha qualquer interesse na política e muito menos em prosseguir a “revolução socialista” do seu progenitor que, com o fim da Guerra Fria e a implosão da União Soviética, se aproximou do Ocidente. O jovem amante de novas tecnologias, que se tornou médico oftalmologista em Londres, teve de regressar a casa após o delfim do regime, o seu irmão Bassel, falecer num acidente de automóvel, em 1994. Oito anos depois, Bashar e a mulher, Asma, formada no King’s College e antiga gestora de topo do banco JP Morgan, eram um casal particularmente benquisto na Europa. De Paris a Berlim, representavam a alegada modernização e democratização da Síria, sendo inclusive recebidos, com todas as honras, pela rainha Isabel II, no Palácio de Buckingham. A Casa Branca, então ocupada por George W. Bush, também via Assad como um aliado na luta contra a Al-Qaeda e o terrorismo apocalíptico, com o território sírio a ser usado para os cárceres secretos da CIA e como plataforma logística entre o Afeganistão e Guantánamo.

No entanto, como quem sai aos seus não degenera, os tiques autoritários da dinastia damascena mantiveram-se, com os opositores a serem violentamente reprimidos e a generalidade da população a desconhecer o que era o bem-estar e o progresso. A chamada Primavera Árabe, em 2011, foi a melhor prova de que Bashar e o pai pouco se distinguiam no exercício da autoridade. Em março desse ano, mal começaram os protestos contra o regime em Deraa e Hama, as prisões e as morgues voltaram a ficar sobrelotadas e começou uma guerra civil que viria a provocar meio milhão de mortos, seis milhões de refugiados e outros tantos deslocados internos. O país fragmentou-se como nunca e só o apoio da Rússia ‒ e, em menor medida, do Irão e das milícias do Hezbollah ‒ evitou que Damasco caísse nas mãos do autoproclamado Estado Islâmico, em 2015. O califado terrorista acabaria por soçobrar, mas a Síria converteu-se num estado disfuncional, corrupto e miserável, com Assad a ser odiado por curdos, árabes sunitas, drusos e até pelos seus compatriotas alauitas, a minoria étnico-religiosa xiita a que ele e a família pertencem.

Ajustes Os rebeldes prometem agora perseguir os “criminosos de guerra” que obedeciam a Assad Foto: BILAL AL HAMMOUD

Com os grupos oposicionistas a organizaram-se, a beneficiarem de apoios externos, a juntarem forças contra um inimigo comum e os soldados de Assad a receberem, em média, menos de de 15 euros por mês, a sorte do Presidente sírio ficou selada. Como disseram, em júbilo, muitos sírios, incluindo os da diáspora, “Assad, khalas!” (“Assad, basta!”) 

QUEM SÃO OS REBELDES QUE TOMARAM DAMASCO?

O principal grupo é constituído por diferentes milícias fundamentalistas islâmicas e tem por nome Hayat Tahrir al Sham (HTS), que significa Organização para a Libertação do Levante. Por estranho e paradoxal que tal pareça, trata-se de um movimento considerado “terrorista” pelas Nações Unidas, pelos EUA, pelo Reino Unido, pela França e até pela Turquia. As suas origens remontam ao período crítico da guerra civil na Síria, quando ainda tinha a designação de Jahbat al-Nusra (Frente para a Vitória no Levante) e era considerado o braço-armado da Al-Qaeda no país de Bashar al-Assad. Com um elevado grau de autonomia graças aos mecanismos de autofinanciamento ‒ entenda-se assaltos, sequestros e todo o tipo de traficâncias ‒, os seus combatentes cometeram centenas de atentados, alguns deles suicidas. Em 2017, por discordâncias nunca devidamente esclarecidas com o então líder supremo do movimento responsável pelos ataques do 11 de setembro nos EUA, o egípcio Ayman al-Zawahiri, a HTS passa a atuar por conta própria e instala o seu emirado na província de Idlib, no Noroeste do país, usufruindo da proximidade ao território turco e mantendo um estratégico acordo de não beligerância com outras forças anti-Assad. Na ofensiva militar que culminou na conquista de Damasco, no último fim de semana, participaram ainda outros grupos jihadistas que, no passado, prestaram também vassalagem à Al-Qaeda ou ao Estado Islâmico (que ainda mantém alguns redutos no deserto e perto de Deir Ezzor). A esta amálgama, maioritariamente formada por árabes sunitas, há ainda que somar os guerrilheiros curdos apoiados pelos EUA, que participaram na derrota do Califado (2014-2019), e controlam as principais cidades no Nordeste da Síria, a oriente do rio Eufrates (Raqqa, Qamishli e Hassakah), e algumas das grandes jazidas de petróleo do país.

QUEM É O BARBUDO QUE PARECE MANDAR NA CAPITAL SÍRIA?

Trata-se do líder supremo da Hayat Tahrir al Sham e da extinta Frente al-Nusra, o comandante e emir Abu Mohammad al Jolani. Este jihadista nascido há 42 anos na Arábia Saudita, para onde os pais (sírios) tinham emigrado, tenta agora apresentar-se como um político moderado, com ambições de estadista, e já se deu ao trabalho de abandonar o nome de guerra para assumir a sua verdadeira identidade: Ahmed Hussein al-Chareh. A 8 de dezembro, mal entrou na capital síria, fez questão de discursar na grande mesquita dos Omíadas, uma joia da arte islâmica que presta homenagem ao califado do século VIII e se se estendia da Ásia Central à Península Ibérica. As suas palavras, por mais que se esforce, retratam na perfeição as ideias do antigo combatente da Al -Qaeda: “Esta vitória, meus irmãos, é um triunfo histórico (…). Hoje, a Síria está purificada”, exclamou face a um auditório eufórico, exclusivamente masculino, que nunca parou de ecoar “Allah akbar”. Pormenor adicional. Ao contrário do que sucedia até há meia dúzia de meses, al-Jolani/al-Chareh cortou o cabelo, abdicou do turbante, aparou a barba e passou a envergar calças e camisas verde-oliva, como que a imitar o Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky (ou o falecido Fidel Castro). Uma mudança de visual que o próprio admite sem pruridos, por já não ser “o mesmo indivíduo de há 20 ou 30 anos”, como explicou numa entrevista concedida à CNN.

No início da idade adulta, o antigo estudante de Medicina fartou-se das aulas e rumou a Bagdade, depois da queda de Saddam Hussein, para lutar ao lado do líder da Al-Qaeda no Iraque, Abu Musab al-Zarqawi. O seu percurso como insurreto e decapitador não lhe corre de feição. Capturado pelas tropas americanas, passa quase cinco anos detido no Camp Bucca, um centro penitenciário clandestino, onde conhece Abu Bakr al-Baghdadi, o fundador do Estado Islâmico e futuro califa de um território que chegou a ter o tamanho de Portugal, ou seja, os EUA conhecem-no de ginjeira e continuam a oferecer 10 milhões de dólares pela captura do homem que os sírios hoje aclamam como o seu “libertador”.

QUE IMPLICAÇÕES PODE TER O NOVO REGIME?

Ninguém sabe ao certo como vai ser a Síria pós-Assad e poucos acreditam que uma democracia liberal se instaure de um dia para o outro. Na Foreign Affairs, para os dois académicos americanos, Natasha Hall e Joost Hiltermann, o antigo regime “caiu como um castelo de cartas” e o que lhe suceder não augura nada de bom: “A conquista [de Damasco] pelos rebeldes representa uma mudança tectónica no Médio Oriente que faz com que as potências internacionais e da região não saibam como reagir. Até há poucas semanas, a Administração Biden estava a negociar com os Emirados Árabes Unidos o fim das sanções à Síria, na condição de Assad se distanciar do Irão e do Hezbollah (…). A queda de Assad vai transformar por completo os equilíbrios de poder.” O Irão, que está a viver um annus horribilis perdeu um aliado crucial e o seu “eixo da resistência” ‒ do Iémen, ao Iraque, passando pelo Líbano – pode ter os dias contados.

Enigma As sírias estão na rua a celebrar, mas falta saber se o novo regime vai respeitar as minorias e os direitos das mulheres Foto: BILAL AL HAMMOUD

A Rússia ficou sem dois complexos militares estratégicos em território sírio: a base naval de Tartus e a base aérea de Hmeimim, complicando as aspirações do Kremlin de alargar a sua influência ao Sahel e ao resto do continente africano. A nível doméstico, as rivalidades entre os grupos sírios e a ascensão da HTS podem, segundo os autores, converter o país num “estado falhado” e provocar uma “nova guerra civil” com impacto global. Gilles Keppel, um dos mais prestigiados politólogos franceses e especialista em questões islâmicas, faz um diagnóstico semelhante numa entrevista ao Figaro e adianta que a queda de Assad é mais uma “manifestação crucial” de como “tudo está a mudar” demasiado depressa. E não hesita em responsabilizar, ainda que parcialmente, Israel e Elon Musk. O governo de Telavive parece dar-lhe razão e, desde 8 de dezembro, realizou mais de três centenas de ataques contra a Síria, com o pretexto de que é necessário destruir todos os arsenais de Assad para que estes não caiam em mãos erradas. Quanto ao homem mais rico do mundo, Kepel alega que o patrão da Tesla anda a negociar, por exemplo, o afastamento dos ayatollahs do poder em Teerão.

QUEM SÃO OS GRANDES VENCEDORES COM O FIM DE ASSAD?

O libanês Anthony
Samrani adverte
que, no Médio
Oriente,
“as revoluções
e as transições
de poder raramente
terminam bem”

Em teoria e em primeiro lugar, os sírios que acreditam na liberdade e que julgam ter direito a uma vida digna. Na prática, os jihadistas que derrubaram a dinastia dos Assad e todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para este desfecho. A começar por Israel: “Este colapso é o resultado das nossas ações contra o Hezbollah e o Irão, os principais apoiantes de Assad. (…) Isto provocou uma reação em cadeia”, afirmou o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, referindo-se à forma como o seu governo reagiu aos ataques terroristas do Hamas a 7 de outubro de 2023 e a tudo o que se seguiu. Quem se gaba também de ter acelerado o rumo da história com a queda do ditador sírio é o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan. Além do apoio prestado a vários grupos jihadistas, Ancara tem agora oportunidade de abocanhar mais território no norte da Síria e perseguir os curdos que acusa de terrorismo, em particular as milícias com ligações ao histórico PKK. Um Curdistão independente é agora uma hipótese tão longínqua como um Estado de direito na Síria, nos tempos mais próximos. Como escreveu Anthony Samrani, no centenário jornal libanês L’Orient-Le Jour, “as revoluções e as transições de poder raramente terminam bem no Médio Oriente. (…) O futuro não será cor de rosa, mas não pode ser pior do que o Estado de Barbárie” [descrito por Michel Seurat]. Será que os e as habitantes do Afeganistão e do Sudão concordam?

Palavras-chave:

A beleza das palavras feias dói em lugares que não sabíamos ter. Tal como o tipo de poema que Ana Hatherley considerava ser bom, “não te aperta a mão, aperta-te a garganta”. E de garganta apertada será porventura a única forma sincera de nos atirarmos de cabeça à vida.

“Sibarita”, “Afã”, “Modorra”, “Facécia”, “O enxofre oloroso”. Palavras feias, densas, oleosas, repugnantes, quase caídas em desuso. Palavras que nos apertam a garganta enquanto dão nome a quatro das 16 obras da série Narcissus, apresentada em Beco das Flores, Canedo do Mato, a mais recente exposição de José Loureiro (JL), patente na Galeria Cristina Guerra Contemporary Art, até 11 de janeiro de 2025.

Na folha de sala, que sabe a manifesto modernista e foi escrita pelo próprio artista, fala-se, entre outras coisas, do “elucidar de crianças, adultos e velhos — em folhas A4 impressas depositadas em recipientes de plástico — sempre que entram em salas brancas já de si perfeitamente iluminadas”.

Mordaz e carregado de sentido de humor, o texto resume a atual tragicomédia dos sabichões e dos salamaleques desnecessários que nos afastam daquilo que é mais cru, mais duro, mas mais verdadeiro. A relação pura e despretensiosa entre cada um e a obra de arte, entre cada um e a própria vida.

“Claro que o texto espelha as pinturas e vice-versa, mas o importante são as obras e o silêncio, estar absolutamente calado a olhar para elas, e não estar a ler tabelas ou seja o que for”, defende o artista.

A minha relação com a pintura é selvagem, intensa e descontrolada, porque os meios que se usam para pintar são, de certa forma, indomáveis

josé loureiro

As mãos frenéticas, as mesmas com que pinta todos os dias, “num horário quase fabril”, gesticulam enquanto confessa não pensar nas considerações que o público tecerá sobre a sua obra.

“A pintura não funciona assim. A minha relação com a pintura é selvagem, intensa e descontrolada, porque os meios que se usam para pintar são, de certa forma, indomáveis”.

Pode-se assim imaginar de onde vêm as figuras pintadas a óleo que se contorcem dentro das telas expostas nas paredes da galeria, como se procurassem a posição mais cómoda para conversar connosco, pôr-nos em causa, ou simplesmente largar uma valente gargalhada.

Apesar de serem talvez o conjunto mais figurativo da sua obra, permanecem fiéis à linguagem plástica que o artista costuma utilizar.

São pintadas a óleo, viscosas, enigmáticas, irónicas. E, apesar de agora terem cabeça, tronco e membros, possuem, à semelhança de obras passadas, grelhas, linhas e tramas, que JL transforma em padrões e formas, mais conspurcados pela vida do que pela matemática.

“É como se a cabeça, o tronco e os membros desaguassem em unhas vermelhas, da mesma forma que o Mundo desagua no Beco das Flores” FOTO: Vasco Stocker Vilhena

Começaram a aparecer em Croque-Couleur, exposição que realizou este ano em Dunquerque. “Não mudaram muito, mas também não diria que evoluíram, porque na arte não há evolução. Estão diferentes, talvez mais desenvoltas, surgem na horizontal, fazendo lembrar quase odaliscas”, explica o artista. Em suma, “estão mais lascivas”.

O som arrastado da palavra rende a ideia. É quase possível acreditar que Sibarita, à entrada da galeria, escavou a sua entrada no Mundo precisamente através de tal som. Feita de óleo,“tóxico, imponderável, difícil de dominar”, ainda a fermentar, a figura rasteja pela tela, explorando-a com as mãos, cravando-lhe as unhas, cravando-nos as unhas.

Unhas essas que, curiosamente, foram uma surpresa do processo criativo.“Quando acabei estas pinturas, reparei que todas as mãos tinham unhas e eu nem estava ciente disso”.

Firmemente convicto de que “com coisas pré-determinadas só se fazem pinturas ou arte má”, JL aprendeu a amar estes “rebentos” inesperados. “É como se a cabeça, o tronco e os membros desaguassem em unhas vermelhas, da mesma forma que o Mundo desagua no Beco das Flores”.

“As coisas feias são as mais interessantes”

Esse Beco das Flores, que dá título à exposição, foi encontrá-lo em Canedo do Mato, uma aldeia perto de Mangualde, cidade que o viu nascer em 1961. O título é indireto, mas, como sublinha o artista, “as coisas indiretas dizem muita coisa”.

“Quando eu era criança, a minha mãe dizia ao meu pai: ‘João, nunca nos levas a lado nenhum’. E ele respondia: ‘Ainda um dia vos hei de levar a Canedo do Mato’. Para ele, era o fim do Mundo. Que pode ser em qualquer lado – em Carcavelos ou na Amadora – mas aqui era uma pequena aldeola onde todas as estradas acabam”.

Quis o destino que tal fim de Mundo fosse também “o lugar na Terra onde se esconde o mais amplo mar de narcisos em flor”.

Sob a terra encharcada desse beco perdido, conseguimos imaginar, agora mesmo, centenas de bolbos que latejam, prontos a furar a terra com a pujança daqueles que precisam de chegar depressa à vida. Primeiro o caule, depois as folhas, por fim as flores.

A mesma pujança com que as 16 figuras da série Narcissus parecem contorcer-se e brotar das paredes, empurrando os limites das telas para expandir o espaço originalmente concedido a cada uma. Primeiro o tronco, depois os braços e as mãos, por fim as unhas.

“Começo cada figura pelo tronco e pela roupa, com aqueles padrões que eu adoro fazer. Os braços e as pernas são uma extensão do tronco, as mãos são uma extensão dos braços e das pernas e as unhas são os pontos finais dos dedos”.

Fez alguns desenhos a lápis “para ter uma espécie de orientação”, mas, a partir daí, “a fabricação da pintura é imprevista, há surpresas atrás de surpresas e tem de se saber lidar com o que vai aparecendo”.

Neste caso, além de pontos finais nos dedos, o artista descobriu, num beco da Beira Baixa, o ponto final no Mundo.

A fabricação da pintura é imprevista, há surpresas atrás de surpresas e tem de se saber lidar com o que vai aparecendo

josé loureiro

Nesse lugar onde as estradas todas acabam, e, no entanto, nascem centenas de flores, torna-se mais fácil perceber por que é que JL acredita que “as coisas feias são as mais interessantes”. Talvez por serem aquelas que dispensam adornos, sobretudo sob a forma de adjetivos.

Camilo Castelo Branco dizia que “a felicidade é parecida com a liberdade, porque toda a gente fala nela e ninguém a goza”. Diga-se nada, então. Olhem-se as obras em silêncio sem regurgitar um jorro de palavras desnecessário. Goze-se o momento.

Depois, a arder por dentro com tudo o que sentimos, entreguemo-nos à vida, deixando que esta nos aperte a garganta. Nunca a mão.

Cajado na mão direita, terço na mão esquerda, xaile de lã sobre as costas. Uma coluna de homens emerge do nevoeiro denso que engole a estrada, as árvores e o próprio céu, esbatendo os contornos da paisagem.

Os cabelos encharcados estão colados às cabeças e estas, por sua vez, inclinadas para baixo, colam o olhar ao chão. Quase conseguimos ouvir o silêncio pastoso onde ressoam as orações que saem das bocas entreabertas, e o ritmo compassado dos pés, que se arrastam sob o peso da sacola que os homens trazem às costas.

A imagem misteriosa, capturada na ilha de São Miguel, nos Açores, em 2014, por Jorge Barros, é a primeira do mais recente livro do fotógrafo. Lançado oficialmente a 3 de dezembro, no Teatro Micaelense, Romeiros da Fraternidade (com os textos em português e inglês) apresenta o resultado de quase quatro décadas de trabalho entregues à documentação dos diversos ranchos de Romeiros da ilha de São Miguel.

Todos os anos, durante a Quaresma, ao longo de oito dias, estes grupos de homens trocam os confortos do dia-a-dia por um percurso pedestre em redor da ilha, com 300 km, feito de penitência, oração e conversão FOTO: Pedro Barros

Todos os anos, durante a Quaresma, ao longo de oito dias, estes grupos de homens trocam os confortos do dia-a-dia, o calor da sua casa e a companhia da família, por um percurso pedestre em redor da ilha que, mais do que de quase 300 km de trilhos, caminhos e estradas, é feito de penitência, oração e conversão.

A obra é assinada por JB e pelo filho Pedro, responsável, em 2023, por fotografar alguns momentos específicos da romaria, que o pai considerava ainda não estarem retratados como desejava. “Demorei muitos anos neste projeto, porque, quando o fotografava, achava que faltava qualquer coisa”, conta JB, revelando que sempre sentiu “um pudor muito grande”, por tratar-se de uma manifestação extremamente misteriosa e enigmática.

“Ainda hoje tenho dificuldade em perceber muitas coisas desta romaria, mas com as fotografias que o Pedro tirou, senti que o livro já teria pernas para andar”.

Ainda hoje tenho dificuldade em perceber muitas coisas desta romaria, mas com as fotografias que o Pedro tirou, senti que o livro já teria pernas para andar

jorge barros – fotógrafo

O livro e quem se aventurar através das suas páginas. Já que a obra transporta o leitor para uma semana de caminhada. Encontra-se organizada em oito “capítulos”, tantos quantos os dias necessários para que um Rancho de Romeiros dê a volta à ilha a pé.

Através de fotografias tiradas entre 1994 e 2023, em diversos locais e em momentos tão variados quanto os de caminhada, oração, paragens para almoçar, descansar ou rezar dentro das igrejas, cada capítulo recria um dia de jorna, desde as três da manhã, hora em que os Romeiros começam a andar, até cerca das dez da noite, quando se vão deitar.

A preto e branco, as únicas cores, segundo JB, capazes de reproduzir o dramatismo desta manifestação religiosa, surgem imagens pungentes, onde conseguimos intuir a força do vento, nos cabelos encrespados de uma criança, o frio da noite, nas costas curvadas de um velho, a humidade do nevoeiro, num céu que engole o mar, o calor de uma casa, nas mãos de alguém que lava os pés a outra pessoa, a solenidade de uma igreja, nas pálpebras cerradas de um jovem.

Nos homens que rezam, caminham, descansam, lavam feridas, sorriem, abraçam-se ou esboçam um esgar de dor, página após página, o mistério divino convive com uma fragilidade profundamente humana.

Aqueles que escolheram fazer-se à estrada, e que nos últimos 37 anos têm sido imortalizados pela lente de JB, possuem todos o mesmo olhar, inundado de uma determinação incendiária capaz de pegar fogo mesmo aos corações mais céticos.

Uma caminhada com 500 anos

A tradição da Romaria de Nª Sª do Rosário remonta ao século XVI, quando os sobreviventes de um grande tremor de terra construíram uma ermida à Virgem e começaram a fazer procissões semanais noturnas, que viriam a transformar-se na Romaria à volta da ilha.

Cinco séculos mais tarde, os Romeiros caminham em ranchos de 17 ou mais elementos, ao longo de oito dias e centenas de quilómetros, no sentido dos ponteiros do relógio, parando em todas as igrejas do caminho.

No início de cada semana da Quaresma, cerca de 16 ranchos saem de diferentes localidades da ilha de São Miguel e, seja através de orações, cânticos ou momentos de meditação, não há passo que deem que não seja a rezar.

Os Romeiros caminham em ranchos de 17 ou mais elementos, ao longo de oito dias e centenas de quilómetros, no sentido dos ponteiros do relógio, parando em todas as igrejas do caminho FOTO: Jorge Barros

Ao final do dia, são acolhidos nas aldeias de outros ranchos, no chamado ritual da pernoita. Pedro, que se focou particularmente em fotografar este momento, explica que é o Mestre do Rancho quem faz a distribuição das pessoas pelas diversas casas, consoante aquilo que acha que precisam. “Tem um grande conhecimento da comunidade, percebe como é que cada pessoa está a reagir durante o dia e conhece as dificuldades que cada um teve durante o ano”.

Romeiros da Fraternidade, Letras Lavadas, 224 pp., 56 euros

Poder-se-ia talvez afirmar que a pernoita é aquilo que, na última página do livro, Tolentino de Mendonça define como “a consciência de que precisamos todos uns dos outros, que ninguém se pode salvar sozinho, e que o nosso mais precioso recurso é a fraternidade”.

Ano após ano, centenas de homens, enrolados em xailes de lã, ainda que talvez nunca tenham lido estas palavras, meditam sobre elas. Rezam-nas uma a uma, do primeiro ao último dia do “infinito silêncio circular” que se dispõem a percorrer.

“Esta é uma viagem de reflexão”

Jorge Barros fala da sua experiência junto dos Romeiros, da fraternidade testemunhada e das formas que encontrou para mostrar tudo isto num livro

A caminhada dos Romeiros é algo de muito íntimo. Como conseguiu que lhe abrissem as portas?

Ao princípio, quando ainda não existiam televisões privadas nem RTP Açores, havia de facto um circuito muito fechado entre eles. De maneira que eu, quando entrei, não foi fácil. Quem me facilitou o acesso foi o Emanuel, um tipo característico de Rabo de Peixe que conheci numa igreja, na primeira noite que fui fotografar. Além de já ter sido Romeiro, é um homem de grande carinho e grande afeto, muito conhecido. Ele é que me aproximou das pessoas, se não fosse aquele contacto teria tido muita dificuldade, porque era um intruso.

Mas, depois, em certos anos, acabou até por dormir nas aldeias onde os Romeiros pernoitam. É uma experiência especial?

A pernoita é a situação mais interessante, mais fraterna, que eu encontrei. Os habitantes das aldeias recebem os irmãos em suas casas, dão-lhes as melhores camas, os melhores quartos e fazem um jantar especial. À relação de Fé e religiosidade existente, soma-se aqui uma relação de grande fraternidade e solidariedade entre as pessoas. Quem recebe tem orgulho em receber os outros. É uma coisa extraordinária e, por isso, dão o melhor que têm.

Alguma vez lhe disseram o que os motiva a fazerem-se à estrada?

Das motivações sei pouco. Não pergunto. Ia sabendo que A, B ou C estava com uma promessa, mas esta manifestação não são só as promessas, é também um tempo de reflexão. Não tem nada a ver com Fátima, em que as pessoas viajam e, muitas vezes, estão à espera que Deus lhes dê alguma coisa em troca. Aqui não é bem assim. Esta é uma viagem de reflexão, de meditação, de solidariedade entre as pessoas. Há com certeza promessas, agora quais, não sei. Nunca perguntei.

Por que decidiu retratar esta viagem de reflexão a preto e branco?

A escolha justifica-se pelo dramatismo. Há um sentido dramático em tudo. Naquela peregrinação e na paisagem açoriana, feita de brumas, chuva e vento, que trazem uma certa carga ao semblante das pessoas, à qual o preto e branco dá outra força.

Em muitas páginas do livro surgem ainda versos de poemas. A poesia foi uma fonte de inspiração neste projeto?

A poesia anda sempre comigo. Os poetas têm um sentido de imaginação extraordinário, que é muito fotográfico. É importante porque cria-me imagens de aproximação com o Mundo e com as pessoas. Em muitas situações, os poemas ajudam-me bastante a viver e a tirar partido dessas imagens escritas para as imagens visuais que faço.

Como foi o processo de seleção dos poemas?

Foram noites de trabalho com os livros todos espalhados pela sala para encontrar as melhores citações para cada imagem. Deu-me muito gozo procurar, na obra de poetas portugueses, citações que se dessem com as imagens que eu andava a fazer ou com o sentido dessa imagens.

Fotógrafo, amante de poesia e dono de uma sensibilidade rara, Jorge Barros (JB) tem retratado o nosso país de uma forma que só aqueles que o conhecem profundamente conseguem fazer.

Na fotografia afirma procurar “o encanto que é o milagre da vida – nos gestos, rostos e olhares das pessoas – e as coisas que nos rodeiam no nosso quotidiano”, bem como “momentos únicos que não se repetem”.

Essa busca, aliada a muita persistência, imaginação e trabalho, permitiu-lhe construir uma carreira singular, que conta quase 50 anos, e começou ainda na adolescência, na sua terra natal.

Nascido em Alcobaça, em 1944, JB recorda com carinho “os professores do ensino noturno”, como José Nuno da Câmara Pereira, José Afonso (Zeca Afonso, mais tarde) e José Silva Carvalho, que lhe incutiram “a vontade e a curiosidade de novos sonhos”, sendo a fotografia “(talvez por intuição) a forma razoável de realizar esse grito interior”.

Ávido frequentador de museus, exposições, cineclubes, teatros, livrarias, mas sobretudo encontros intelectuais em tertúlias semiclandestinas, em cafés, acabou por ser convidado, ainda empregado de escritório, para fotografar cavalos de raça portuguesa, com Carlos Gil. As fotografias haveriam de ser publicadas, em 1980, no livro Portugal e os Seus Cavalos.

Trabalhou também com o Teatro da Comuna, o Teatro da Barraca e o Teatro O Bando, foi assessor técnico da XVII Exposição de Arte, Ciência e Cultura – Os Descobrimentos Portugueses e a Europa do Renascimento (1983), aventurou-se no cinema, colaborou com jornais e revistas, e com diversos projetos relacionados com a EXPO98, organizou encontros e exposições, propôs a criação de um Museu Nacional da Fotografia e recebeu, entre outras distinções, o Prémio Ilustração da Bienal Internacional de Arte de Vila Nova de Cerveira.

Grande parte da sua obra está hoje em mais de 30 publicações, nas quais as fotografias são geralmente associadas a textos assinados por nomes como Eugénio de Andrade, Fernando Assis Pacheco, Fernando Dacosta, Helena Vaz da Silva, João de Melo, José Cardoso Pires, Lídia Jorge, Manuel Alegre, Mário Cláudio ou Orlando Ribeiro.

A mais recente, Romeiros da Fraternidade, por exemplo – agora lançada, corajosamente, pela editora açoriana Letras Lavadas – utiliza versos de 31 poetas portugueses, selecionados por JB para dialogarem com as imagens de dezenas de Ranchos de Romeiros de Nossa Senhora do Rosário, que registou ao longo de 37 anos, na ilha de São Miguel, nos Açores.

De Norte a Sul e de Este a Oeste

Não só nos livros, mas também nas exposições realizadas, encontramos fotografias de caráter profundamente poético, “versos visuais”, se assim os quisermos apelidar, que constroem uma narrativa de pendor quase sociológico ou etnográfico.

Sentado no sofá de casa, em jeito de reflexão sobre a facilidade com que, atualmente, se apanham voos para qualquer lado, comenta: “assegurei-me que primeiro conhecia todos os recantos de Portugal e só depois ia viajar para fora”. E, de facto, parece não ter havido recanto que lhe escapasse.

Fotografou o país de lés-a-lés, da janela mais alta e recôndita do Castelo de São Jorge, em Lisboa, à ermida mais isolada da Serra do Gerês.

Assegurei-me que primeiro conhecia todos os recantos de Portugal e só depois ia viajar para fora

jorge barros – fotógrafo

Em livros como Um Olhar Português e Portugal – O Último Descobrimento, mostrou-nos que tudo pode ser visto com novos olhos, que o nosso país é infinito e a sua beleza vive nas varandas decrépitas da Ribeira do Porto, nos carros de bois de uma eira minhota, nas encostas sombrias de Vimioso, no verão amarelo e no inverno verde do mesmo campo alentejano, numa viela perdida em Loulé ou nas encostas das nove ilhas açorianas.

Teve ainda “a sorte e possibilidade de proceder ao levantamento visual da presença dos portugueses no mundo, nos quatro continentes, com a edição de Portugal e o Mar, com texto de Rui Rasquilho, e mais tarde ilustrar a Mensagem, de Fernando Pessoa”, conta.

O amor pelos Açores

Embora afirme que as travessias que fez pelo Mundo deixaram-lhe “sempre mais incertezas do que respostas”, parece bastante claro, a quem o oiça falar, que, de todos os lugares onde esteve, o seu coração bate de forma especial pelos Açores.

“Pelo silêncio contemplativo da paisagem, a suave musicalidade dos ventos e do mar, a passagem das nuvens que se formam, diferentes de ilha para ilha, a luz que realça os contornos daquela maravilhosa costa e o singular engenho das pessoas no seu dia-a-dia”, explica.

O primeiro projeto desenvolvido no arquipélago, a convite do jornalista e escritor Fernando Dacosta e da editora Ângela de Almeida, deu origem ao livro Corvo – Ilha da Sabedoria. “Sucederam-se longas visitas que criaram raízes de amizade com o povo corvino até aos dias de hoje. Nunca mais fui o mesmo!”, conta.

A partir daí, e não só na ilha do Corvo, a sua lente nunca mais deixaria de imortalizar ilhéus coroados de nuvens, campos a perder de vista, falésias chicoteadas por ondas de espuma branca, lagoas mergulhadas em infinitas tonalidades de verde e a bruma que tudo engole.

Estas imagens haveria de entregá-las ao mundo em exposições como Solenidades dos Açores (1990), Aproximações (2009) e Baleeiro – Um Rochedo do Mar (2015), e numa dezena de livros, entre eles, Corvo, a Ilha da Sabedoria, O Príncipe dos Açores, Vitorino Nemésio – Sem Limite de Idade, Escrito no Mar – Livro dos Açores, que reúne os 25 poemas de Manuel Alegre sobre o arquipélago, As Ilhas Desconhecidas, São Miguel – Ilha de Alquimias e, agora, Romeiros da Fraternidade.

Nobre povo da nação imortal

E porque Portugal não é só paisagem, JB assegura que “seria incapaz de trabalhar num projeto onde não houvesse pessoas”.

Em 2011, chegou mesmo a afirmar, na introdução de As Ilhas Desconhecidas, livro onde que faz uma interpretação visual das famosas notas de viagem de Raul Brandão, que “o amor para com os outros é o melhor de nós”.

Portugal tem hoje a agradecer-lhe aquele que é talvez um dos seus mais fiéis retratos, no qual, além das paisagens, cabem também as suas gentes e tradições centenárias

Talvez tenha sido precisamente a convicção de que “é o convívio humano – olhares e gestos – , e a sua generosa entrega” que enriquecem espiritualmente, a responsável por JB ter tomado parte em projetos como Mineiros, editado em 2001, e Festas e Tradições Portuguesas, “oito livros e 25 anos de atividade”.

Neste caso, propôs fazer um levantamento visual das festas de Portugal. O registo fotográfico de rostos, vestes, máscaras, folia e devoção, realizado ao longo de um quarto de século, ilustrou oito volumes, referentes aos 12 meses do ano, que davam a conhecer as festas e romarias de norte a sul do país e nas ilhas.

“Foram 25 anos a cruzar-me com mordomos, feirantes, párocos, carteiristas, bandas de música, etc., de Norte a Sul do país e ilhas atlânticas”, conta. “Muito devo a Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira, pelo seu saber e desinteressados conselhos, e a Dias de Carvalho, saudoso editor do Círculo de Leitores, pela confiança depositada”.

Já o livro Mineiros é um retrato intenso do dia-a-dia de homens cuja vida ocorre a milhares de metros de profundidade. Finalmente, em Romeiros da Fraternidade, cuja edição teve o apoio da Sociedade Portuguesa de Autores, JB volta a mostrar-nos uma face do nosso próprio país que muitos ainda não conhecem, fazendo-nos acreditar, mais uma vez, que sua a beleza é de facto infinita, desde que a saibamos olhar com espanto.

Por tudo isso, Portugal tem hoje a agradecer-lhe aquele que é talvez um dos seus mais fiéis retratos, no qual, além das paisagens, cabem também as suas gentes e tradições centenárias.

Em 2030 (já olho para estas datas com crescente desconfiança e distanciamento), Portugal, Espanha e Marrocos irão organizar o Campeonato Mundial de Futebol. É uma boa notícia para nós, que já temos, de facto, a experiência do Euro – um sucesso – e uma parte importante das infraestruturas necessárias.

Nada disso falta à Espanha, sendo Marrocos quem terá de fazer o maior esforço nos próximos cinco anos. Contudo, esse investimento resultará na dotação do que atualmente lhe falta, beneficiando diretamente os marroquinos. É também um evento de grande relevância por unir dois continentes e três nações que, ao longo da história, lutaram pela sua independência e pelo seu orgulho.

A única dificuldade, que pode ser decisiva, é que não é possível, nem mesmo com a ajuda da Inteligência Artificial, prever em que contexto geoestratégico, económico e político estaremos enquanto Europa, Norte de África e parceiros aliados. O nosso mundo está extraordinariamente imprevisível e instável, tornando inválidas quaisquer projeções a cinco anos.

Uma coisa é certa: Trump já não estará na Casa Branca, e uma onda de mudanças atravessará os países europeus. Quanto a Putin, permanece uma incógnita, e as guerras que conhecemos poderão não ser as que enfrentaremos em 2030. Mas apostamos no Mundial.

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

A confiança é a base para quase tudo na nossa existência, especialmente na interação com os outros, na vida em família ou na sociedade. E é fundamental para o jornalismo e para as empresas de comunicação social, já que constitui o elo principal com a audiência, seja ela composta por leitores, ouvintes, telespectadores ‒ ou com eles em todos esses estados em simultâneo, como agora acontece nas plataformas digitais. A confiança, como sabemos por experiência de vida, fortalece-se ao longo dos tempos, alimenta-se de pequenos gestos ou de provas extremas, mas não é infinita: pode ser quebrada, de forma repentina e permanente, por causa de uma única ação ou de um comportamento inesperado, mesmo que involuntário.

Durante os anos em que, não há muito tempo, fui convidado para dar a primeira aula de uma pós-graduação em Jornalismo, a primeira coisa que fazia quando chegava à sala era escrever a palavra “confiança” no quadro. Tinha por minha missão explicar àquele grupo de jovens alunos como funcionava e se organizava a redação de um órgão de comunicação social, e sempre senti que, antes de apresentar gráficos ou imagens com fluxos noticiosos e hierarquias de comando, o mais importante era sublinhar-lhes a relevância da confiança que é preciso existir entre todos. E como essa mesma confiança constitui, depois, o capital mais precioso para um título de informação, tanto no contacto com as fontes como na forma como apresenta as informações que recolhe, com critério e rigor, ao público.

Ao longo das suas mais de três décadas de história, existiu sempre um enorme cuidado na redação da VISÃO em procurar estreitar e elevar os laços de confiança com os seus leitores. Seguindo aquilo em que acreditamos: informar com rigor, respeitar os princípios deontológicos do jornalismo, afrontar com coragem e independência todos os poderes, nunca vacilar perante a verdade dos factos e o respeito pelas regras do contraditório, olhar o mundo sem preconceitos e soltos de quaisquer amarras ideológicas.

Com esses princípios, criou-se em redor da VISÃO uma comunidade de leitores, exigente e resiliente, que muito nos orgulha: os milhares de assinantes, alguns deles com mais de 20 anos de “casa”, que sempre estiveram connosco e que, persistentemente, nos interpelam e criticam quando consideram que nos afastámos do nosso rumo, mas que, continuamente, nos incentivam a melhorar e, acima de tudo, a não desistir. Milhares destes leitores são também assinantes das outras revistas produzidas nesta redação e que têm contribuído para a afirmação da VISÃO como uma marca de confiança e de qualidade: a VISÃO História, a VISÃO Saúde, a VISÃO Biografia e a VISÃO Júnior.

Como a confiança se constrói numa relação de verdade com os leitores, e porque é agora pública a difícil situação financeira da empresa proprietária da VISÃO, é justo lembrar que os nossos assinantes foram as primeiras vítimas desta crise na Trust in News. Há uns meses, para desespero da redação da VISÃO, deixaram de receber as revistas em papel, quando a empresa se viu incapaz de pagar o crescente preço dos portes de correio das publicações (grátis em diversos países europeus…) e decidiu uma transição acelerada para o formato digital. Se a maioria dos assinantes, habituados a uma relação longa e semanal com a revista, até aceitou essa troca, a verdade é que muitos sentiram essa decisão como uma quebra de confiança – que precisa, urgentemente, de ser restabelecida e, se possível, fortalecida.

Da nossa parte, o mais importante é sublinhar que, tanto nos bons como nos maus momentos, a redação da VISÃO não vacila nos seus princípios, não baixa os braços e permanece empenhada em continuar a produzir o jornalismo rigoroso e de qualidade que é apreciado – e comprado, a preço justo – por milhares de pessoas. É isso que queremos continuar a fazer. Com a confiança dos leitores.

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Qual é a pessoa portuguesa mais famosa? Se fizermos hoje esta pergunta na Europa, na Ásia, nas Américas ou na Oceânia, a resposta sacramental será sempre a mesma: Cristiano Ronaldo. Mas daqui por dez ou vinte anos continuará a ser assim? É de duvidar… Na imparável sucessão das décadas, já lá vão os tempos (relativamente recentes) em que os estrangeiros reconheciam facilmente o nome de Luís Figo e, antes, os de Eusébio e Amália Rodrigues. Passados os circunstancialismos e as modas, permanecerão, no entanto, três figuras de portugueses universais: o infante D. Henrique, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães.

Destes três, o primeiro foi o impulsionador das viagens dos Descobrimentos, esses empreendimentos hoje tão malvistos pela cultura woke, mas que revelaram os contornos do lar mundial à totalidade dos humanos – que até aí viviam fechados cada um em seu quarto. O terceiro, que deu nome a galáxias, crateras da Lua e de Marte, um asteroide, sondas espaciais, telescópios e computadores, esteve na origem da primeira viagem de circum-navegação, mas, por circunstâncias que não vêm agora ao caso, viajou ao serviço da Espanha. Quanto ao segundo, Vasco da Gama, esse foi o homem que comandou a expedição que mostrou à Europa como se podia navegar diretamente até à Índia, trazendo de lá, sem recorrer a intermediários, as tão cobiçadas especiarias, sobretudo a pimenta. Dito assim, não parece nada de muito extraordinário, mas essa façanha literalmente picante inaugurou uma nova era da História da Humanidade.

Vasco da Gama perante o samorim Este quadro de Veloso Salgado, pintado em 1898, reconstitui a audiência dada ao navegador português pelo soberano de Calecute

Vasco da Gama morreu há precisamente 500 anos, em dezembro de 1524, e é justo que essa efeméride seja devidamente assinalada. Já a data em que nasceu não é conhecida com  exatidão, apontando-se para 1469 (mas pode ter sido alguns anos antes), visto que foi com cerca de 30 anos de idade que comandou a grande viagem que o celebrizaria para sempre. O homem propriamente dito é uma figura algo apagada, sobre a qual se sabe pouco, além de ter dirigido a famosa expedição.

Para começar, ignora-se quase todo sobre os seus primeiros anos de vida, sendo contudo provável que tenha nascido em Sines, visto ser filho do alcaide-mor (ou governador civil) da vila, Estêvão da Gama, e de sua mulher Isabel Sodré. Vasco tinha um irmão mais velho, Paulo da Gama, que o acompanharia até à Índia. Há quem levante a possibilidade de ter feito estudos em Évora e de ter aprendido astronomia com o matemático e rabino sefardita Abraão Zacuto, mas tudo não passa de pura especulação. Uma coisa é segura: em 1492, tinha ele vinte e poucos anos, o rei D. João II incumbiu-o de confiscar as mercadorias de navios franceses ancorados em Setúbal e nos portos do Algarve, em retaliação por ataques a barcos portugueses levadas a cabo por corsários daquela nacionalidade. Vasco saiu-se bem dessa incumbência, e o sucesso tê-lo-á catapultado para o comando da aventura indiana.

Mas antes de passarmos à descrição da viagem que mudaria o mundo e celebrizaria Vasco da Gama, que tal recordar os seus antecedentes e descrever o contexto em que ela haveria de realizar-se? É que, sem isso, não se entende bem a importância da coisa.

Picante na língua

Normalmente, quando olhamos para os pequenos frascos alinhados nas prateleiras da cozinha, custa-nos a entender a enorme relevância que as especiarias tiveram no passado. E se, para se nos fazer luz no espírito, tentássemos pensar com a cabeça de uma pessoa da Idade Média, ou mesmo da Antiguidade? Ora bem, ao contrário de hoje, em que grande parte do que se come é “processado” industrialmente, a comida era então insípida, para não dizer enjoativa. Os alimentos, mal cozinhados e por vezes já um pouco decompostos (escusado será recordar que não existiam frigoríficos) estavam “a pedir” um sabor extra que os apaladasse. Nada melhor, para isso, do que a pimenta.

O primeiro ocidental a trazer esse condimento para solo europeu foi Alexandre Magno (que, à frente dos seus exércitos conquistadores, foi até à Índia por terra), e os gregos passaram-na depois aos romanos. Embora sejam muitas as variedades de pimenta, o berço desta planta era a costa indiana do Malabar. Esgotadas as provisões trazidas pelo grande general da Antiguidade, foi preciso ir lá buscar mais. Estabeleceu-se assim um tráfico permanente ligando o oceano Índico ao mar Mediterrâneo – uma viagem aventurosa e dispendiosa. Os carregamentos eram transportados primeiro de barco até ao Iémen e atravessavam depois o deserto da Arábia sobre as bossas dos camelos, até à costa mediterrânica. Quem se encarregava em seguida do seu encaminhamento para a Europa eram os fenícios do atual Líbano, com os quais não era fácil regatear preços. Depois da época de Alexandre, no período helenístico, o grande porto comercial passou a ser Alexandria, na costa mediterrânica do Egito, aonde iam desembocar as caravanas oriundas das Arábias.

Vasco da Gama O navegador, feito almirante e conde da Vidigueira, pintado como vice-rei da Índia

Quando os romanos passaram a dominar grande parte da Europa e a totalidade da bacia mediterrânica, nada mais natural do que terem pretendido apoderar-se do comércio com o Oriente, incluindo o lucrativo tráfico da pimenta. Em grande parte, foi esta a causa das três Guerras Púnicas, que opuseram durante mais de um século Roma a Cartago, as duas superpotências da época. É curioso pensarmos que, pelo seu poder sobre a vida e a morte de muitos milhares de pessoas, a pimenta foi uma espécie de petróleo daquele tempo.

Pouco depois, o Egito era anexado ao Império Romano e transformado em província, pelo que a importância de Alexandria como grande porta para o Oriente se viu amplamente reconhecida pelos novos senhores. O comércio continuou a ser feito como antes, mas com um aumento exponencial de escala, o que contribuiu para que os cidadãos de Roma desenvolvessem à vontade o seu gosto muito particular pelo picante na língua.

Quando a Síria (pobre Síria, que tantos tombos tem dado…) se transformou também em província romana, parte do tráfego passou a ser feito pelo rio Eufrates e em caravanas de camelos que, fazendo escala em Palmira, atingiam o Mediterrâneo. A certa altura, o comandante de um navio romano no Golfo Pérsico fez uma descoberta sensacional: notou que os ventos nas costas da Pérsia e da Arábia sopravam durante metade do ano numa direção e durante a outra metade na direção oposta. Eram as monções. Ora bem, se as viagens fossem planificadas como devia ser, de acordo com estas leis da natureza, seria possível fazer o percurso de ida e volta entre o delta do Nilo e a costa indiana do Malabar, sempre navegando, em menos de um ano.

Depois da queda de Roma, e após múltiplas vicissitudes, o escaldante comércio da pimenta passou para as mãos dos árabes, e Alexandria, como toda a costa sul do Mediterrâneo, tornou-se praticamente inacessível aos europeus. O antigo Mare Nostrum, em torno do qual se desenvolvera o Império Romano, passava a ser um fosso entre dois mundos: a Cristandade e o Islão. As cidades comerciais costeiras deixaram, pois, de ser utilizadas no tráfego da pimenta para a Europa e foi necessário encontrar uma rota alternativa.

Na verdade, existia já uma, que era a da seda. As caríssimas peças deste tecido eram empacotadas na China e transportadas em caravanas de camelos até à costa oriental do mar Cáspio, e aí despachadas, por via marítima, fluvial e uma ou outra ligação terrestre, até à Geórgia de hoje, na costa do mar Negro, onde voltavam a ser arrumadas nos porões de navios que seguiam para Constantinopla, a antiga Bizâncio (e atual Istambul).

Acabou por ser esta a rota adotada para a generalidade dos produtos, cabendo aos venezianos fazerem o seu transporte do Bósforo para cá. A cidade de Veneza tinha sido fundada na alta Idade Média, quando habitantes do Norte da Itália, em debandada perante o avanço das hordas bárbaras do visigodo Alarico, se fixaram nas desoladas ilhotas de uma laguna do Adriático; aí, sem terra para cultivar nem para dar pasto ao gado, não lhes restou outra alternativa que não fosse dedicarem-se ao comércio marítimo – e dentro de poucos séculos formavam uma grande potência comercial. Nem lhes passava pela cabeça que um dia viriam a ser uma das Mecas do turismo…

Os navios de Vasco da Gama  A pequena esquadra do navegador, segundo o Livro das Armadas, de Lisuarte de Abreu

Os venezianos não eram, porém, os únicos italianos que se dedicavam à traficância, já que esta fora igualmente adotada como atividade predominante pelos genoveses, cuja cidade se situava do outro lado da península em forma de bota, no topo do mar Tirreno. Inaugurou-se então uma grande rivalidade entre Veneza e Génova, um jogo de cartas sangrento cujo trunfo era o comércio de Bizâncio/Constantinopla.

Quando a grande cidade do Bósforo caiu nas mãos dos turcos, e apesar das más relações políticas entre a Cristandade e o Islão, os comerciantes venezianos voltaram-se então para o Egito, que levantava menos obstáculos, e em breve detinham o monopólio do comércio oriental; toda a gente lucrava, pois os sultões do Cairo, por si sós, não dispunham de meios para colocar os produtos na Europa. Sendo assim, a partir de Alexandria diferentes frotas venezianas zarpavam ora para Oriente ora para Ocidente: as primeiras iam buscar a pimenta à origem, as segundas transportavam-na para os mercados de destino, na Europa. Imagine-se o preço por que o produto era vendido, após toda a grande sucessão de lucros obtidos por intermediários…

É então que entra em cena um pequeno país do extremo ocidental da Europa chamado Portugal, cujo “plano da Índia” consistia em alcançar as terras da pimenta contornando a África pelo cabo da Boa Esperança, através de – no dizer do grande poeta Luís de Camões – “mares nunca antes navegados”. Não havia, de facto, nada melhor do que ir diretamente à origem e comprar barato para vender caro!

A aventura portuguesa

A aventura marítima de Portugal, que hoje não deixa de nos surpreender, tinha começado com a conquista de Ceuta, no Norte de África, em 1415. A cidade marroquina era o término das caravanas que atravessavam o Sara carregadas de ouro, marfim e malagueta. Dava-se o caso de Portugal viver em paz há três décadas, desde as guerras com Castela (Aljubarrota, etc.), o que impossibilitava a classe nobre de guerrear, quando era essa a sua atividade favorita. “Coitados” dos nobres! Ora, a conquista de Ceuta poderia, assim, servir dois objetivos: favorecer a economia nacional e matar a sede de aventuras da façanhuda fidalguia. Um terceiro argumento, muito medieval e inserido no espírito de cruzada, dava força aos dois anteriores: estender o cristianismo a outras terras, claro está.

Concretizada a tomada de Ceuta, feito o gosto ao dedo, seguir-se-ia a de outras cidades norte-africanas. Mas a tarefa revelava-se dispendiosa, tanto em dinheiro como em vidas humanas. E os portugueses em idade e em condições de servirem militarmente eram poucos, já que o País teria nesse tempo, quando muito, um milhão de habitantes.

Havia, porém, uma alternativa: tomar posse de terras desabitadas e não reivindicadas por ninguém. Mas onde estavam essas terras? No meio do mar. Então não é verdade que os mapas medievais eram “ornamentados” com muitas ilhas, umas imaginárias, outras reais? A desabitada Madeira, por exemplo, figurava já nessas cartas, e desde o século XIV que alguns europeus, sobretudo italianos, lá iam abastecer-se da resina de dragoeira conhecida por “sangue de dragão”. O mesmo se passava com as Canárias, muito frequentadas tanto por portugueses como por castelhanos, tratando-se neste caso de um arquipélago habitado por povos berberes que viviam como se fosse na Idade de Pedra. Se estas ilhas já eram conhecidas na altura da tomada de Ceuta, não era esse o caso de outras. A questão estava em ir descobri-las onde quer que elas estivessem. Nasceu assim a palavra “descoberta”, ou “descobrimento”, hoje muito contestada pela cultura woke, mas que, naturalmente, deve ser tomada do ponto de vista europeu.

O grande promotor da política portuguesa do “descobrimento” de novas terras foi o já atrás referido infante D. Henrique, quarto filho de D. João I e de D. Filipa de Lencastre e irmão do rei D. Duarte. Um dos seus objetivos era entrar em contacto com uma figura mítica: o Preste João, hipotético soberano de um poderoso mas imaginário reino cristão existente algures na Ásia ou na África com o qual os europeus sonhavam aliar-se contra o Islão.

Tapeçaria flamenga de Tournai Encomendada pelo rei D. Manuel I no início do século XVI, a peça representa a chegada de Vasco da Gama à Índia

Aprendia-se em tempos na escola que a Madeira foi descoberta em 1418 por João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira, dois navegadores do infante D. Henrique. Mas a versão da descoberta acidental tem sido recentemente posta em causa, pois, sendo já conhecida na época a existência das ilhas, o infante terá antes incumbido os navegadores de as reencontrarem e de dirigirem a sua colonização, antecipando-se a idêntica iniciativa dos castelhanos. Também os Açores terão sido procurados no sítio onde se dava por quase certa a sua existência.

Ao mesmo tempo que procuravam ilhas, os navegadores portugueses iam explorando metodicamente a costa africana, em busca de uma passagem para o oceano Índico e para as tão desejadas terras das especiarias. O avanço era lento, pois acumulavam-se os terrores infundidos pelo mar, uns com razão de ser, outros fruto das fantasias e crenças da Idade Média.

Depois de, em 1422, e ao fim de várias tentativas, algumas barcas terem dobrado o cabo Não, no extremo sul marroquino, até então considerado o limite sul navegável, foi preciso esperar mais 12 anos para que Gil Eanes vencesse, mais abaixo, o cabo Bojador, dissipando o terror que este promontório do atual Sara Ocidental inspirava. Considerava-se que ali acabava o mundo e que para além existiam monstros e as águas ferviam. Seguiram-se, África abaixo, o rio do Ouro, o cabo Branco, o golfo de Arguim, o cabo Verde e o arquipélago com o seu nome, a Gâmbia e os rios da Guiné.

Entretanto, em 1460, morria o infante D. Henrique. Reinava então o seu sobrinho D. Afonso V, homem avesso a estas navegações e mais seduzido pela conquista das praças norte-africanas, o que fez com que as viagens marítimas ficassem durante algum tempo, como se costuma dizer popularmente, “em banho-maria”. A empresa da exploração africana seria então arrematada por um burguês endinheirado chamado Fernão Gomes; não admira, pois dava lucro, já que os navegadores traziam ouro, malagueta e pessoas escravizadas… Haveria de ser, porém, já com o rei D. João II, no último quartel do século XV, que os progressos se revelariam mais rápidos e espetaculares.

Ignora-se quase tudo sobre os primeiros anos de vida de Vasco da Gama, sendo contudo mais do que provável que tenha nascido em Sines, vila de que o pai era alcaide-mor 

Certo dia, o marinheiro genovês Cristóvão Colombo, residente há alguns anos no nosso país e casado com uma portuguesa, propôs a D. João II, com grande lábia, tentar alcançar a Índia navegando para ocidente. Se o rei lhe confiasse os necessários navios, ele demonstraria a veracidade da hipótese. E fazia, decerto, muitos gestos com as mãos… Mas D. João II recusou: havia de se chegar à Índia contornando a África. Ponto final.

A verdade é que já faltava pouco para atingir esse objetivo. Em 1484, o navegador Diogo Cão chegara à foz do Zaire e subira parcialmente o curso deste grande rio africano. No interior, tinha entrado em contacto com o reino africano do Congo. Numa segunda viagem, dois anos depois, o mesmo Cão exploraria a costa angolana mais para sul, embora sem conseguir ainda contornar a ponta mais meridional da África e abrir a rota para a ambicionada Índia, proeza que seria rubricada por Bartolomeu Dias em 1488.

Quando o caminho para a Índia parecia estar, pois, desimpedido, Colombo foi de novo bater à porta de D. João II. Mas desta vez – estava-se em 1492 – ele acabava de chegar “das Índias”, para onde viajara com patrocínio castelhano. D. João II ficou desolado, receando ter perdido a corrida às especiarias. Mas veio depois a apurar-se que Colombo estivera, não no almejado Oriente, mas sim num “Novo Mundo” – as Américas. Sem ter consciência disso, note-se, sendo engraçado pensar que o genovês morreu a julgar que tinha chegado à Índia. De qualquer modo, a partir de então Castela entrava também na História dos Descobrimentos.

Em 1494, D. João II e os Reis Católicos de Espanha, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, decidiram repartir o mundo entre si. Nesses finais do século XV, fazia já mais de meio século que Portugal tinha iniciado a exploração dos mares. E a Espanha, como acabamos de ver, seguira-lhe o rasto, graças à iniciativa do descarado Colombo. Não admira, pois, que os dois Estados ibéricos tenham achado por bem definir as respetivas esferas de influência. O tratado foi assinado na localidade espanhola de Tordesilhas. Ficou ali estipulado que todas as terras a descobrir a oeste de um meridiano que passava a 370 léguas de Cabo Verde pertenceriam à Espanha, e que todas as que se encontrassem a leste dessa linha caberiam a Portugal. D. João II, que já sabia da existência da terra que viria a chamar-se Brasil, conseguiu que ela viesse a fazer parte do hemisfério português. O árbitro deste jogo de influências foi o Papa Alexandre VI.

A França, que era o Estado predominante na política europeia, não fez qualquer caso do que fora estipulado em Tordesilhas, e passados anos, o rei Francisco I pediria até, gracejando, que lhe mostrassem o “testamento de Adão” que daria fundamento ao tratado… De qualquer modo, na década de 1490 só Portugal e Espanha dispunham de meios – tecnológicos e derivados da situação geográfica – para promover a exploração da Terra. A Inglaterra e a Holanda só passados cem anos, no final do século XVI, entrariam na corrida, e a França ainda mais tarde. Sim, houve um tempo em que Portugal foi mesmo pioneiro, e não devemos ter vergonha disso.

Entra em cena Vasco da Gama

Antes de enviar uma esquadra a demandar em definitivo a Índia, seguindo a rota aberta por Bartolomeu Dias, D. João II incumbiu dois espiões – Pero da Covilhã e Afonso de Paiva – de irem por terras colher informações. Um deles, Covilhã, alcançou o objetivo e reuniu conhecimentos geográficos e culturais preciosos.

Mas, entretanto, D. João II morreu sem deixar filho legítimo e sucedeu-lhe no trono o primo e cunhado D. Manuel. Este homem teve sorte (até foi cognominado O Venturoso), pois veio encontrar, como se costuma dizer familiarmente, “a papinha toda feita”. A primeira escolha do novo rei para comandante da esquadra que navegaria diretamente entre Portugal e a Índia foi Estêvão da Gama, mas o velho alcaide de Sines viria a falecer nesse próprio ano de 1497. A fazer lembrar a história do lobo e do cordeiro (mas ao contrário), a segunda escolha recaiu no filho mais velho de Estêvão, Paulo da Gama, que no entanto declinou o convite e indicou o nome do seu irmão Vasco. Exatamente o “nosso” Vasco da Gama, destinado a tornar-se uma celebridade mundial. Lembre-se de que ele ficara bem-visto ao apreender as mercadorias dos navios franceses em Setúbal e no Algarve.

Vai, pois, arrancar a grande viagem que mudou o mundo. A frota comandada por Vasco da Gama, composta pelas naus S. Rafael e S. Gabriel, pela caravela Bérrio e pela carraca S. Miguel, largou do Tejo, em Belém (nesse tempo uma localidade um pouco afastada de Lisboa), a 8 de julho de 1497, com 170 homens a bordo. Luís de Camões, com a genialidade que o caracteriza, conta, n’Os Lusíadas, que à hora da partida surgiu no areal do Restelo um homem idoso que preveniu toda a gente, incluindo o rei, contra os malefícios da aventura ultramarina, condenada a desviar o País do seu rumo certo, que seria o desenvolvimento interno. Era o emblemático Velho do Restelo, usado de aí em diante como símbolo da reação conservadora. Quem teria razão? O Velho do Restelo saído da imaginação do poeta ou os patrocinadores dos Descobrimentos? E que ligações poderão ser estabelecidas entre essa personagem e o “politicamente correto” dos nossos dias? O problema continua em aberto.

O que sabemos sobre a histórica viagem chegou-nos através de um roteiro não assinado mas atribuído a Álvaro Velho (um dos membros da expedição) e também das descrições que nos deixaram os cronistas quinhentistas Gaspar Correia, Fernão Lopes de Castanheda e João de Barros (todas elas baseadas, fundamentalmente, nesse roteiro). Não é muito, mas mesmo assim permite-nos conhecer – como se verá – alguns pormenores cheios de colorido.

A partida da esquadra Gama e os seus homens embarcam no areal do Restelo, rumo à Índia, segundo uma aguarela de Roque Gameiro, do início do século XX

Após três semanas de navegação sem história, a frota chegou a Cabo Verde. O arquipélago, descoberto 40 anos antes pelos portugueses, quando era desabitado, acolhera desde então colonos, a quem Vasco da Gama comprou galinhas, porcos, frutas e legumes. Mais adiante, Bartolomeu Dias, que acompanhava a expedição num barco próprio, virou a proa à feitoria de São Jorge da Mina, que era o seu objetivo. Vasco da Gama e as suas quatro naus descreveram então uma grande curva pelo Atlântico e, durante três meses, navegaram sem ver terra, só virando a leste na direção da extremidade sul da África. Aproveitavam assim os ventos e as correntes favoráveis. Especula-se hoje sobre a possibilidade de expedições anteriores (e, eventualmente, o próprio Vasco da Gama) terem explorado previamente essa rota, mas nenhum documento nos esclarece a tal respeito. Aparentemente, nunca, desde que o mundo é mundo, alguém tinha navegado três meses seguidos no mar alto! Já perto do cabo da Boa Esperança, atingiram a costa africana e lançaram ferro numa baía que batizaram de Santa Helena.

Estavam os marinheiros a dar largas à alegria por poderem desentorpecer as pernas em terra quando surgiram uns homens de reduzida estatura, pele acinzentada e com tangas por único vestuário. Tratava-se, decerto, de hotentotes, um povo nómada do Sul da África. Estes logo se viram “caçados” pelos portugueses, que os levaram para os navios a fim de melhor os observarem. Deram-lhes de comer, vestiram-nos e devolveram-nos a terra. No dia seguinte aparecerem mais hotentotes, que os marinheiros presentearam com barretes vermelhos e contas de vidro, recebendo em troca brincos de conchas e leques de cauda de chacal.

Autógrafo  Um documento escrito e assinado por Vasco da Gama, como conde da Vidigueira e governador da Índia

Estava tudo a correr pelo melhor quando um jovem marinheiro da esquadra, chamado Fernão Veloso, resolveu ir visitar a aldeia hotentote. Almoçou por lá, mas deve ter feito alguma coisa que violava os costumes locais, pois ao fim da tarde apareceu na praia a correr, perseguido pelos anfitriões, e só a custo conseguiu embarcar no bote que fora mandado para recolhê-lo. Que falta teria ele cometido? Não o sabemos, pois as crónicas omitem-no, e decerto nunca viremos a sabê-lo.

A frota fez-se uma vez mais ao largo e, passados quatro dias, dobrava o cabo que Bartolomeu Dias batizara, uma década antes, de cabo das Tormentas, mas de que o rei D. João II mudara o nome para a mais auspiciosa designação de cabo da Boa Esperança. Foi ali que Camões (sempre n’Os Lusíadas) colocou a monstruosa figura do gigante Adamastor, símbolo do terror do desconhecido experimentado pelos marinheiros, por mais intrépidos que estes fossem.

Numa enseada do oceano Índico, a que os navegadores deram o nome de angra de São Brás, apareceram então mais hotentotes, com os quais os portugueses organizaram um bailarico, ao som das flautas dos nativos. Mas a festa acabou mal quando, no dia seguinte, estes se opuseram à recolha de água pelos marinheiros. Os dois grupos estiveram à beira das vias de facto, só evitadas quando Vasco da Gama mandou disparar para o ar alguns tiros de bombarda.

Resolvido este problema, e feita a aguada, os portugueses pegaram então fogo à carraca dos mantimentos, que estava a navegar mal e se tinha tornado um empecilho (isto, obviamente, depois de terem transportado para as outras três embarcações o que restava dos víveres trazidos de Lisboa). Antes de voltarem a levantar ferro, ergueram ainda um padrão de pedra e uma cruz de madeira, mas tanto um como outra foram logo destruídos à paulada pelos africanos, com os portugueses ainda a assistirem.

Entrada no desconhecido

Desabou a seguir uma enorme tempestade, até que a esquadra, muito danificada pela chuva, pelo vento e pelas vagas, avistou os ilhéus Chãos e o rio do Infante. Estes nomes tinham sido postos por Bartolomeu Dias, que chegara até ali em 1488, na sua viagem em que dobrara a ponta sul da África. Ao contrário do que pode parecer, o “infante” a que se refere o nome do tal rio não é o célebre infante D. Henrique, mas sim João Infante, capitão de uma das caravelas de Dias, a São Pantaleão. Hoje, os sul-africanos chamam a esse curso de água Great Fish River, ou Groot Visrivier (rio do Peixe Grande).

Vasco da Gama e os que o acompanhavam entraram depois em pleno desconhecido (dos europeus, entenda-se). A costa aprazível mas deserta avistada a 25 de dezembro de 1497 foi por eles batizada de Natal, nome que os futuros colonizadores ingleses e os atuais sul-africanos mantêm, assim mesmo em português.

Seis semanas depois de terem deixado a região do cabo da Boa Esperança, ancoraram junto da foz de um outro rio, onde lhes apareceu uma multidão de homens e mulheres, muito diferentes dos hotentotes. Altos, fortes, de pele muito escura, usavam lanças e punhais de ferro com cabo de marfim e adornos de cobre a enfeitar-lhes as cabeças. A troca de calças e barretes por cobre operou milagres, gerando-se um perfeito entendimento entre as duas comunidades. Não admira que os navegantes tenham chamado ao sítio Terra da Boa Gente.

Mais a norte, em Quelimane, já no atual Moçambique, indígenas tripulando esbeltas canoas acostaram às naus e, sem darem mostras de receio, treparam para bordo, sorridentes. Mas eis que aparece aqui um elemento novo: entre aqueles africanos havia alguns indivíduos de pele mais clara e que “arranhavam” a língua árabe.

Chegada à Índia O desembarque dos expedicionários em Calecute, na interpretação de Roque Gameiro

Queria isto dizer que os marinheiros portugueses, depois de terem visitado gentes nunca antes vistas, reatavam o fio à meada, voltando a deparar-se com pessoas algo semelhantes às da costa marroquina e da orla mediterrânica. Aos negociantes do sítio chamou “fidalgos” o nosso cronista Gonçalo Velho (ou outro, pois, como vimos, não se sabe ao certo quem foi o autor do roteiro), e lá tinha as suas razões, tão empertigados e formais aqueles “mouros” se apresentavam. Ali, em Quelimane, procedeu Vasco da Gama à carenagem dos navios, uma operação difícil que consistia em esvaziar os barcos, puxá-los para terra fazendo-os deslizar sobre troncos de árvores bem aparadas e raspar os cascos para remover as conchas ali coladas. Foi nessa altura que muitos marinheiros começaram a queixar-se de falta de forças e de dores no corpo. Seria cansaço devido à dureza do trabalho? Podia ser, mas tratava-se de muito mais do que isso: tinham sido atacados de malária, aquela terrível doença transmitida pelos mosquitos que pousam nas águas paradas. Parece ironia, mas Vasco da Gama chamou ao local rio dos Bons Sinais, privilegiando a presença de gente que falava árabe, o que parecia indiciar a proximidade de terras mais civilizadas.

Reatada a viagem, os expedicionários que iam sobrevivendo às provações depararam-se, passados dias, com a ilha de Moçambique, que daria mais tarde nome à futura colónia portuguesa da África Oriental. E eis que, dobrado um cabo, deram de chofre com um navio ancorado.

E outro! E mais outro! Ao todo eram sete e não se tratava de pirogas como as dos habitantes do litoral que ficara para trás, mas sim de navios a valer, com mastros e velas, embora relativamente pequenos. Aqueles barcos só podiam pertencer a árabes, inimigos tradicionais dos europeus de então – o que prenunciava violentos conflitos.

Traições e amizades

Logo de entrada, e só para mostrar “quem mandava ali”, Vasco da Gama mandou disparar uma salva de artilharia. E a coisa resultou, pois alguns “mouros” (como os ibéricos chamavam sempre aos muçulmanos e aos árabes em geral) aproximaram-se em pequenas embarcações, e daí a pouco surgia o xeque em pessoa. Em conversa, o intérprete Fernão Martins apurou que os tais navios árabes estavam carregados de especiarias, pedras preciosas e tecidos finos acabados de chegar da Índia. De súbito, a desconfiança atravessou o cérebro de um dos árabes, que se lembrou de pedir aos forasteiros que lhes mostrassem os livros sagrados, só para apreciarem a qualidade das suas decorações. Por “livros sagrados” entenda-se o Alcorão. Estava visto que os árabes tomavam os portugueses por turcos, estrangeiros mas muçulmanos como eles. Vasco da Gama e os seus ficaram seriamente atrapalhados, mas lá conseguiram contornar o problema, afirmando que não precisavam de levar livros sagrados na viagem, pois sabiam a doutrina toda de cor e salteado. Os ditos “mouros” é que, como se compreende, ficaram bastante desconfiados. A conversa, no entanto, prosseguiu, com Gama a mudar de assunto fazendo perguntas sobre a rota para atingir a Índia e a pedir os serviços de um piloto.

Retrato O navegador de acordo com uma pintura anónima feita já depois da sua morte 

E nos dias seguintes foi uma roda-viva, com candidatos a pilotos num vaivém entre as naus e terra, até que, de repente, começou a correr a notícia de que os visitantes vindos de longe afinal eram “nazarenos” (ou seja, cristãos), o que, como sabemos, correspondia à verdade. Parece que foi um marroquino que por ali andava, e que conhecia bem os portugueses por os ter defrontado no Norte de África, quem deu o alarme. Provavelmente, ouviu os homens de Vasco da Gama conversarem uns com os outros e identificou a língua em que se exprimiam. Só restava aos expedicionários zarparem enquanto era tempo! E foi o que tentaram fazer. Só que um piloto português tinha ficado em terra, o que obrigou dois marinheiros seus camaradas a meterem-se num bote para irem procurá-lo. Entretanto, surgiram muitos barquinhos carregados de “mouros” fazendo gestos aos portugueses para que não partissem e o piloto muçulmano que estava a bordo da São Gabriel aconselhou Gama a acatar a ordem. Mas este não só não o fez como mandou pôr o “mouro” a ferros e chicoteá-lo. Em seguida, ordenou que fossem disparados tiros de bombarda contra as embarcações muçulmanas.

Esta foi a primeira ação de fogo dos portugueses em marés “exóticas”. O piloto refém, embora contrariado, acedeu a conduzir os expedicionários até Quíloa, na atual Tanzânia, mas o pior é que não havia vento que possibilitasse a partida. E um desembarque para fazer aguada redundou em combate com os “mouros”. Quando, finalmente, partiram, ultrapassaram Quíloa sem que o piloto avistasse esta cidade, pelo que seguiram até Mombaça, no Quénia de hoje.

Mas chegara já ali a notícia de que uma armada de “nazarenos” vinha a caminho, e os da terra, igualmente “mouros”, acharam que a melhor forma de eliminar os importunos estrangeiros seria começar por se mostrarem amigáveis para com eles. Houve, assim, visitas a bordo, troca de presentes, passeios pela cidade com “guias turísticos” e contactos com alguns cristãos nestorianos ali residentes (trata-se de uma seita originária de Constantinopla que teve alguma difusão no Oriente). Pela calada da noite, porém, muitos “mouros” aproximaram-se, em pequenos barcos, da esquadra portuguesa e tentaram furar os cascos das naus.

A aventura marítima de Portugal, que hoje não deixa de nos surpreender, tinha começado mais de 80 anos antes, em 1415, com a tomada de Ceuta, no Norte de África 

Dado o alarme, os atacantes furtivos puseram-se em debandada antes de terem conseguido concretizar os seus intentos e Vasco da Gama ordenou a partida imediata pala Melinde (também no moderno Quénia), onde talvez encontrassem algum piloto que conduzisse a frota à Índia.

No caminho, a esquadra deparou-se com uma pequena embarcação apinhada de muçulmanos, que logo foram apresados sem contemplações. Entre os reféns contava-se um homem idoso acompanhado de uma jovem e bela esposa; para a salvar, o detido prometeu a Gama fornecer-lhe um piloto assim que chegassem a Melinde. E assim aconteceu: nesta cidade, o homem, pelos vistos pessoa bem relacionada, desenvolveu todos os esforços para cumprir a promessa, visitando o xeque local e descrevendo-lhe os portugueses e o seu poderoso e distante rei D. Manuel nos termos mais elogiosos que pôde.

O xeque ficou com tal curiosidade de conhecer Vasco da Gama que lhe enviou emissários pedindo que desembarcasse, mas o nosso comandante achou mais prudente não o fazer, alegando que o seu rei o proibira de abandonar os navios (o que era verdade). O xeque lá aceitou a explicação e organizou, mesmo assim, grandes festejos de acolhimento da esquadra estrangeira.

Só que, à última hora, Gama sempre se decidiu a violar as instruções de D. Manuel I e a ir abraçar o amistoso xeque na praia, ocasião que o anfitrião aproveitou para lhe pedir aliança com Portugal. Esta bela amizade em terras hostis é largamente descrita por Camões n’Os Lusíadas. A substância do célebre poema épico é, como se sabe, a descrição da História de Portugal feita por Vasco da Gama ao “sultão” (como os portugueses chamavam a todos os monarcas muçulmanos) de Melinde.

O piloto efetivamente fornecido por este imprevisível aliado mostrou ser um verdadeiro sábio. Ben Madjid de seu nome conduziu a frota portuguesa ao porto indiano de Calecute sem o menor desvio, atravessando o mar Arábico em 23 dias e aportando ali a 20 de maio de 1498.

Finalmente, a Índia

A frota de Vasco da Gama chegou, pois, à Índia. Mas que Índia era aquela? Claro que, no final do século XV, não se tratava de um país unificado – longe disso.

Em termos simplistas, a norte, no vale do rio Ganges, estendia-se o Império Mogol, enquanto o interior da península indostânica era ocupado pelo império de Vijayanagara, a que os portugueses chamaram, não sem alguma graça, “reino de Bisnaga”. Ao longo da costa do Malabar, o setor sul da orla ocidental da Índia, existia um rosário de pequenos estados, em regra semi-independentes e tributários de Vijayanagara.

Um desses pequenos estados, Kozhikode (Calecute para os portugueses), viria por sua vez a constituir um pequeno império governado por um rajá cujo título era samutiri, que significa “grande senhor do mar” e que os nossos deformaram para “samorim”. Apesar de professar a religião hindu, o samorim de Calecute era, como toda a casta dirigente da costa do Malabar, um grande amigo e aliado dos muçulmanos desde que, seis séculos antes, os árabes tinham estendido o seu domínio comercial (e não só) a quase todo o mundo conhecido.

Concretizado o velho sonho europeu de atingir a Índia por via marítima, Vasco da Gama optou por fazer ancorar a esquadra num local um pouco afastado da cidade de Calecute, junto de uma aldeia de pescadores chamada Kappakadavu. Como era costume, um condenado foi incumbido de desembarcar a fim de tomar o pulso da região. Crivado de perguntas, o desgraçado não percebia uma só palavra do que lhe diziam, quando eis que surgiu um “mouro” que lhe lançou, textualmente, as seguintes palavras: “Al diablo que te doo; quem te trouxe acá?” A presença ali de um indivíduo que falava uma língua tão familiar depressa se esclareceria: tratava-se de um mouro natural de Tunes, no Norte de África, chamado Monçaíde. E pensar que os portugueses se tinham visto na necessidade de contornar toda a África para chegar a um sítio onde alguém se lhes dirigia praticamente na sua língua!

Entre o samorim e o catual

Foi através desse tal Monçaíde, convidado a subir a bordo da São Rafael, que Vasco da Gama veio a saber quem era o senhor local. Uma delegação partiu logo ao encontro do samorim, que nessa ocasião andava em cima de um elefante numa caçada ao tigre, e que convidou os navegantes portugueses a irem na manhã seguinte visitá-lo no palácio. Embora os outros capitães achassem mais prudente que Gama não correspondesse ao convite, este decidiu ir mesmo, acompanhado de uma dúzia de homens. De manhãzinha, esperava-os na praia o catual, uma espécie de primeiro-ministro do samorim, à frente de uma delegação de funcionários da corte. Atrás vinham, alinhados, uns 200 guerreiros, conhecidos por naires.

Vasco da Gama subiu para um palanquim erguido aos ombros de quatro indianos e a comitiva rumou ao palácio, atravessando palmares e arrozais. Já dentro da cidade, caminhando entre alas de gente surpreendida, depararam-se com um templo. Julgando encontrar-se perante uma igreja, os portugueses fizeram questão de entrar e de reverenciar os “santos” cujas imagens se destacavam das paredes. Tratava-se, claro, de um templo hindu e de representações dos deuses dessa religião, tudo coisas que eles desconheciam, visto que a única grande religião que conheciam, além do Cristianismo, era o Islão. Só mais tarde se aperceberiam do equívoco.

Quando D. João II morreu sem deixar filho legítimo, sucedeu-lhe no trono o seu primo e cunhado D. Manuel I, que encontrou tudo preparado para a viagem da Índia. Não foi sem razão que foi cognominado O Venturoso.
Foi este que nomeou Gama para o comando da esquadra

O samorim esperava-os no seu palácio, reclinado num fofo tapete de veludo verde forrado de fino algodão. Ordenou que fosse oferecida fruta aos portugueses e estes, esfomeados e carentes de vitamina C devido à longa permanência no mar, devoraram-na sofregamente, o que gerou gargalhadas entre os cortesãos indianos que enchiam a sala. Foi, portanto, bastante envergonhado que Vasco da Gama esperou que o samorim desse seguimento à audiência. Este, finalmente, perguntou-lhe, ainda no meio dos risos dos nobres locais, o que pretendia dele, ao que o visitante respondeu que preferia que os dois tivessem uma conversa em privado. A condição foi aceite e o samorim e o navegador entabularam um longo diálogo numa outra sala, apenas na presença dos intérpretes e de um conselheiro árabe do soberano local. A verdade é que Gama teve artes de convencer o senhor de Calecute de que era de sua conveniência assinar uma aliança com o rei D. Manuel I de Portugal, já que o seu remoto país era uma grande potência e aquele soberano “o mais poderoso do mundo”. Nesta entrevista ficou decidido que os visitantes residiriam durante a sua estada numa casa própria, posta à sua disposição nos arrabaldes. E, guiados pelo catual, para lá se dirigiram.

Na manhã seguinte, o catual foi acordá-los e levantou o problema da rica oferta que, de acordo com os costumes locais, Vasco da Gama, como embaixador, teria de fazer ao samorim. Ao saberem que os nossos não tinham para oferecer nada melhor do que umas peças de pano, uma caixa de açúcar e alguns ramos de coral, desataram novamente a rir. Esta incapacidade de oferecer coisas valiosas serviu de argumento aos influentes comerciantes árabes para convencerem o samorim de que os homens de Vasco da Gama não eram embaixadores de nenhum reino poderoso, mas simplesmente uns reles piratas.

Só na segunda entrevista que tiveram é que Gama entregou ao samorim uma carta de D. Manuel I, na qual era formalmente pedido um tratado de amizade e de comércio. Ora, comércio já era uma linguagem que agradava ao senhor local, que logo autorizou os portugueses a desembarcarem as mercadorias que levavam e a transacionarem-nas na cidade. Como era de prever, o catual ficou furioso e, no dia seguinte, foi atrás dos homens de Vasco da Gama quando estes se dirigiam para as naus (fundeadas, como já sabemos, num local afastado).

Convidando os portugueses a descansarem numa estalagem que ficava a meio do caminho, não tardou que o edifício estivesse cercado por naires e que os muçulmanos impusessem a Vasco da Gama as suas condições: ou mandava ordenar aos seus marinheiros que depusessem as mercadorias em terra, ou eles atacavam. Vasco fingiu aceitar a imposição e escreveu ao seu irmão Paulo, que ficara a bordo, que se ele não aparecesse daí a pouco junto dos navios se fizesse à vela para Portugal e pedisse ao rei D. Manuel que preparasse uma nova esquadra, mais poderosa, capaz de vingá-lo. Paulo da Gama não desembarcou as mercadorias e decidiu que mandaria bombardear a cidade se o irmão não regressasse a bordo num período de tempo razoável. A verdade é que o catual acabou por ceder, deixando Vasco da Gama seguir para os navios.

“Vascão” Um dos mais conhecidos clubes desportivos cariocas foi batizado numa referência ao navegador português  

No dia seguinte, fingindo desconhecer o que se passara, o samorim autorizou os portugueses a fundearem os navios em frente da cidade e cedeu-lhes, mesmo, uma casa para servir de feitoria; simultaneamente, proibiu os negociantes árabes de comerciarem com os visitantes europeus, reservando esse privilégio aos indianos.

Os dias seguintes decorreram na maior harmonia, com os portugueses a passearem pelas ruas e os indianos a visitarem os navios, em amena confraternização. Mas foi sol de pouca dura. Nomeado feitor por Vasco da Gama, Diogo Dias, irmão de Bartolomeu Dias, foi certo dia levar os célebres presentes ao samorim, e a indescritível irrelevância destes deixou o senhor local muito frustrado e, o que é pior, irritado. Ao saber que Dias fora feito prisioneiro na própria feitoria, Gama reteve a bordo da São Gabriel 19 indianos importantes que ali se tinham deslocado em visita de cortesia. O samorim mandou então libertar o feitor e entregou-lhe uma carta para Gama, em que declarava aceitar ser parceiro comercial de D. Manuel I.

Vasco da Gama não ficou ainda satisfeito, pois faltava-lhe recuperar as mercadorias desembarcadas, e por isso enviou a terra seis dos 19 reféns com a mensagem de que os restantes 13 só seriam libertados em troca das mercadorias. Como estas nunca mais chegassem, Gama mandou um dia levantar ferro rumo a Portugal, levando a bordo os reféns.

O percurso de regresso decorreu sem problemas de maior, aparte os inevitáveis atritos com os “mouros” da África Oriental. Antes disso, no mar Arábico, o comandante português ordenou que fosse afundado um barco carregado de peregrinos muçulmanos que se dirigiam a Meca. Enorme crueldade, sem sombra de dúvida, mas, pensando bem, com equivalência nos nossos dias, tão carregados de matanças de civis e de quase genocídios…

Em Melinde, Gama caiu nos braços do seu amigo “sultão”. Por fim, entrou no Tejo a 29 de julho de 1499, dois anos depois da partida, à frente dos 65 sobreviventes dos 170 expedicionários iniciais. Paulo da Gama adoecera gravemente durante a viagem e fora morrer aos Açores, na ilha Terceira (onde se encontra o seu túmulo). O mundo, depois desta viagem, era já outro, aberta que estava a estrada líquida para o Oriente.      

Vasco da Gama foi premiado por D. Manuel I com recompensas materiais, a partícula “Dom” e o título de “Almirante do Mar da Índia”. Mais tarde seria feito conde da Vidigueira. Haveria de regressaria à Índia em 1502, comandando dessa vez 20 navios. Foi uma expedição muito diferente da primeira, mais manifestação de força do que tentativa de aproximação diplomática. E morreria no decorrer de uma terceira viagem sua ao mesmo destino, na véspera de Natal de 1524, quando ia ocupar o posto de governador e foi acometido de um fatal ataque de malária. Exatamente meio milénio passou desde então.

Nessa altura, já o Estado Português da Índia tinha sido delineado e concretizado por Afonso de Albuquerque. Com efeito, às primeiras viagens à Índia seguiram-se muitas outras, ao longo de séculos, num vaivém marítimo designado por Carreira da Índia. Para comandar a segunda expedição, logo em 1500, tinha sido escolhido Pedro Álvares Cabral, que no caminho descobriu oficialmente o Brasil. Chegado à Índia, Cabral fundou, em Cochim, o primeiro estabelecimento europeu no Oriente.

Os nossos antepassados estabeleceram naquelas paragens um império comercial baseado no poder de tiro dos canhões e fixaram-se em vários pontos da costa, com destaque para Goa, cabeça do Estado Português da Índia, que, tal como Damão e Diu, apenas seria integrada na “nova” Índia independente em 1961 – e também pela força das armas. Região eminentemente turística, Goa, com as suas praias, gastronomia e características muito próprias, é hoje “a Riviera da Índia”. Mas tudo isto foi, como alguém disse, o “império dos pardais”, pois os holandeses, os ingleses e os franceses não tardariam a seguir no rasto das naus portuguesas e a suplantar os nossos antepassados em poder militar, tecnologia e capacidade organizativa.

Pauzinhos e nozes

Se a busca da pimenta foi o verdadeiro motor da viagem de Vasco da Gama, existem outras especiarias muito apreciadas. Por exemplo, a canela, que rima com pastel de nata. Que os povos mediterrânicos já a conheciam na Antiguidade é atestado pela Bíblia, que a ela se refere por diversas vezes. Os romanos pensavam que era originária da Arábia, mas estavam enganados, visto que essa península era um mero ponto de passagem do produto na sua longa caminhada, sob muitos aspetos semelhante à da pimenta.

Os portugueses, nas suas andanças pelo Oriente depois da primeira viagem de Vasco da Gama e do estabelecimento da “carreira da Índia”, aperceberam-se de que o principal ponto difusor da canela era a ilha de Ceilão (hoje Sri Lanka). A permanência dos nossos antepassados na grande ilha, onde muitos apelidos têm ainda ressonâncias lusas, prende-se sobretudo com esta especiaria, que permitia fazerem-se negócios tão bons como os da pimenta. O monopólio destes cobiçados produtos passaria das mãos dos portugueses para as dos holandeses, que aumentaram os preços, e das destes para as dos ingleses, tudo em menos de cem anos. Os nossos ancestrais de há quatro séculos e os dos holandeses (ou neerlandeses, como pedem agora que se diga) travaram até uma grande guerra pela posse da ilha e do mercado. 

Antes de se retirarem definitivamente de Ceilão face ao avanço inglês, os holandeses meteram ao bolso sementes de canela, que plantaram em Samatra, Java e Bornéu, grandes ilhas da atual Indonésia (até à independência, em 1945, conhecida por Índias Orientais Holandesas). Os portugueses fizeram o mesmo do Brasil e os franceses, que entretanto tinham tido acesso à planta, na ilha Maurícia (então Île-de-France).

Quem fala de pimenta e de canela fala também de noz-moscada. Esta especiaria chegou à Europa mais tarde do que as duas anteriormente referidas, já no período da expansão árabe. Primeiro usavam-na para fins aromáticos, à maneira do incenso, mas a certa altura passou a ser utilizada na confeção da cerveja, entrando dessa forma na cadeia alimentar. Julgava-se no Ocidente que a noz-moscada provinha da “Índia” (que era então uma noção geográfica vaga), e seriam os portugueses a descobrir que a sua pátria eram as ilhas Molucas, que hoje fazem também parte da Indonésia. Dali era ainda originário o cravinho. Antes da irrupção dos portugueses no arquipélago, já os soberanos locais faziam bom dinheiro à custa destas exportações. Escusado será dizer que, uma vez mais, aos comerciantes portugueses se seguiram ali os seus congéneres holandeses e a estes os ingleses. Porém, desta feita, a presença neerlandesa reiniciar-se-ia posteriormente, com a consolidação do seu domínio sobre o gigantesco arquipélago indonésio.

Um dia, na Índia, um jornalista português (por acaso, o autor deste texto) fazia compras a vendedores de rua na companhia de uma camarada belga. Por mais de uma vez, notou que os comerciantes identificavam imediatamente a nacionalidade portuguesa, mas desconheciam a existência de um país chamado Bélgica. Por outro lado, e como se viu há um quarto de século nas negociações para a restituição de Macau, a poderosa China continua a tratar Portugal com a deferência devida a um parceiro ancestral. Quanto aos japoneses, conhecem desde os bancos da escola as andanças dos velhos portugueses pelo Oriente, introdutores da espingarda no arquipélago. E não é verdade que a língua que falamos é a sexta do mundo enquanto idioma materno? Bom ou mau – ou, simplesmente, factual – , tudo isto se deve a um fenómeno chamado “Descobrimentos”.

À laia de remate, assinale-se que, por curiosa coincidência, Luís de Camões nasceu no ano em que Vasco da Gama morreu. Tratou-se de uma espécie de continuidade imediata no tempo entre a vida do descobridor do caminho marítimo para a Índia e o poeta que, n’Os Lusíadas, cantaria a viagem que mudou o mundo, e de que Vasco da Gama é o herói, à semelhança dos protagonistas da Odisseia, de Homero, e da Eneida, de Virgílio. “Cesse tudo o que a musa antiga canta,/ que outro valor mais alto se alevanta”, escreveu, com um certo exagero patriótico, o poeta, relegando para segundo plano os feitos dos míticos Ulisses e Eneias.

Estranhamente, antes de, em 1998, ter sido inaugurada a monumental Ponte Vasco da Gama sobre o estuário do Tejo, não existia em Portugal nenhuma forma de homenagem pública bem visível e permanente àquele que foi – e é – um dos mais famosos “portugueses universais” de sempre.

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Cientistas da Universidade de Bristol e da Autoridade para a Energia Atómica do Reino Unido (UKAEA) desenvolveram uma bateria de diamante carbono-14 que se destaca pelo tempo de vida espantosamente longo. A equipa antevê que esta bateria possa alimentar um leque variado de dispositivos ao longo de milhares de anos. Com uma vida prolongada este design permite uma abordagem mais ‘amiga’ do ambiente.

“As baterias de diamante oferecem uma forma segura e sustentável para fornecimento contínuo de energia ao nível de microwatts. São uma tecnologia emergente que usa diamantes manufaturados para encapsular de forma segura pequenas quantidades de carbono-14”, afirma Sarah Clark, diretora na UKAEA em comunicado.

O carbono-14 emite eletrões à medida que decai e que são depois capturados pela bateria de diamante para criar baixos níveis de energia constantes, num processo semelhante ao que acontece nos painéis solares para converterem luz em eletricidade, avança o website Gizmodo. Eseosa Ekanem, da equipa de engenharia da UKAEA, descreve que “estamos a tentar criar uma fina camada deste diamante sob pressões abaixo da pressão atmosférica (…) estes eletrões quando passam pelo diamante, que é um material semicondutor, criam eletricidade e energia”.

Veja o vídeo

O tempo de meia vida do carbono-14 é de 5730 anos, o que significa que, após esse período, apenas metade da quantidade original deste elemento se terá deteriorado, o que permite perceber que uma bateria de diamante com este material poderá durar milhares de anos.

A equipa refere que a bateria, por ser biocompatível, pode ser usada em dispositivos médicos, como implantes oculares, aparelhos auditivos ou pacemakers. Por outro lado, pode ainda ser usada em condições extremas, como na exploração espacial, para ‘alimentar’ aparelhos necessários para missões de longa duração, onde não é fácil substituir baterias. “A tecnologia de micro-energia suporta um variado leque de aplicações importantes, desde tecnologia espacial e dispositivos de segurança até aparelhos médicos”, afirma Tom Scott, da Universidade de Bristol, que reforça a intenção de a equipa colaborar com a indústria e com as entidades de investigação nos próximos anos para continuar a desenvolver a bateria.

Já Fatimah Sanni, da UKAEA, vai mais à além nas previsões de uso: “as baterias podem ser usadas para quase tudo”, listando depois pequenos satélites, chips de computador, controladores remotos, relógios de pulso como algumas das potenciais aplicações, acrescentando que “quando tivermos uma bateria limpa com as de diamante, tal irá mitigar as alterações climáticas”.

A Samsung deve centrar o evento Unpacked de janeiro em torno do novo smartphone Galaxy S25, mas deve aproveitar a ocasião para mostrar também o Galaxy S25 Slim, um concorrente ao iPhone 17 Air e anunciar o primeiro headset de realidade mista. Ao que tudo indica, este aparelho está a ser desenvolvido há alguns anos e uma nova fuga de informação aponta que não deve servir para rivalizar com o Apple Vision Pro, mas sim com os óculos inteligentes desenvolvidos pela Meta em parceria com a Ray-Ban.

Dados de novembro apontam que a Samsung se prepara para produzir 500 mil unidades destes óculos. Em termos de hardware, devem ter um chip AR1 da Qualcomm e uma câmara de 12 MP para dar ‘olhos’ ao assistente baseado no Gemini da Google. Agora, a nova informação, avançada pelo website sul-coreano SEDaily pinta um quadro ainda mais entusiasmante, com a estratégia a passar por apresentar o produto no evento Unpacked, mas sem confirmar a data de lançamento.

O aparelho deve ser um conceito de óculos de Realidade Aumentada, mais sofisticado do que os típicos óculos inteligentes. No que toca a produção, os novos números são mais conservadores, apontando para 50 mil unidades produzidas inicialmente, com um incremento de 20 mil no terceiro trimestre e de 30 mil no quarto trimestre de 2025, noticia BGR.

Nesta fase, ainda não há indicação de preços, mas é expectável que sejam mais caros do que o modelo da Meta. A empresa de Zuckerberg criou um protótipo de óculos com Realidade Aumentada que custa dez mil dólares a fabricar, pelo que não deve conseguir chegar ao mercado nos próximos tempos ainda.