Caroline tem 45 anos e é “a filha do meio” de Gisèle Pelicot. Os seus irmãos, David e Florian, têm 50 e 38 anos, respetivamente. Os três acompanharam a mãe durante os meses que durou o julgamento dos crimes de Mazan, no Tribunal Criminal de Vaucluse, em Avignon. Caroline Darian já registara as suas memórias, num livro que sairá em Portugal na segunda semana de fevereiro, com a chancela da Guerra e Paz. Chama-se Et J’ai Cessé de T’Appeler Papa (E Deixei de te Chamar Papá) e acaba de ser lançado no mercado anglo-saxónico. A autora assina-o com um pseudónimo – Darian –, que é uma composição a partir dos nomes dos seus irmãos. “Em homenagem ao seu apoio”, explicou, numa das inúmeras entrevistas que deu à imprensa britânica.
Há quatro anos, Caroline Darian achava que tinha uma “vida normal”. Vivia em Paris, tinha um filho com 6 anos, um emprego no departamento de comunicação de uma grande empresa, um marido que trabalhava num programa de televisão. Numa segunda-feira à noite, por volta da hora do jantar, a mãe ligou-lhe, pedindo-lhe que atendesse a chamada num sítio sossegado. Caroline pensou que fosse uma má notícia relacionada com o pai, que sofria de problemas respiratórios (nessa altura, em França, bem como na maioria dos países europeus, a epidemia de Covid-19 ainda provocava muitos lockdowns e, sobretudo, muitas vítimas).
Em vez disso, no telefonema, Gisèle contou à filha o impensável, o inimaginável: Dominique, o pai, havia sido preso por filmar por baixo das saias de mulheres num supermercado. Durante a investigação, a polícia encontrara centenas de fotografias e vídeos da própria Gisèle a ser violada por inúmeros homens. “Foi um cataclismo. Todas as minhas fundações colapsaram”, conta Caroline ao The Guardian. Algumas dessas fotografias foram captadas na Île de Ré, numa casa que é propriedade de Caroline e do marido, no seu próprio quarto. Mais tarde, a polícia também encontrou duas imagens da própria Caroline, despida, com roupa interior que ela diz não reconhecer, em posições em que nunca dorme. Perante os juízes, a filha de Gisèle declarou acreditar que o seu pai também a drogou e violou: “Não é uma hipótese, é a realidade, eu sei-o.” Dominique sempre o negou.
Não há vídeos que comprovem a violação da filha e, por isso, Caroline ficará para sempre trancada numa espiral de suposições e silêncio. Nos subterrâneos da internet onde Dominique recrutava os seus cúmplices, a polícia também encontrou fotomontagens de imagens de Caroline com o título “a filha vagabunda” legendadas com comentários obscenos. Caroline compara a sua mãe a “uma rainha medieval”, como que dirige sobre ruínas, diz. Ao mesmo tempo, porém, sente-se ignorada, sozinha, entregue às suas próprias dúvidas, aos seus próprios pensamentos. No tribunal, na última sessão em que participou, notou: “Sou a vítima esquecida deste caso.”
O livro é uma espécie de diário do primeiro ano após Caroline ter sabido de tudo. Escreveu-o com o objetivo de mostrar a forma como o “trauma se expande” numa família, “uma onda de choque”. Justifica também que a promoção a que entretanto se dedicou é “uma maneira de recuperar algum tipo de dignidade” e, por isso, fundou o movimento M’endors pas, para apoiar as vítimas de violação e de submissão química. Durante o julgamento, chegou a dirigir-se ao juiz: “Como é que é suposto reconstruir-me a partir das ruínas quando se sabe que o meu pai é o pior predador sexual dos últimos 20 anos?”
O caso Pelicot marcou o final do ano passado e, sobre ele, já muito se escreveu. Gisèle Pelicot simboliza muita coisa: é a mulher que mudou a vergonha de lado; é a mulher transformada, ainda que involuntariamente, em heroína feminista; é a mulher que, apesar da destruição interior, foi capaz de arranjar forças para transformar a tragédia de ter sido violada em benefício de uma causa. Em tempo de debates polarizados, desinformação e rara empatia pelo outro, é também a mulher que contrariou narrativas e falsidades para fazer valer a verdade.
Apesar das tentativas de a denegrir, apesar de ser apenas uma contra 51 homens sentados no banco dos réus, apesar das perspetivas ultrapassadas acerca do consentimento e do corpo da mulher que permanecessem para lá de todo o progresso social e cultural. Apesar de tudo isso, a partir do lugar tenebroso onde esteve durante dez anos, Gisèle Pelicot conseguiu reconstruir-se e, por isso, este caso é também um sinal de esperança. Assumiu que o homem com quem viveu 50 anos, mais de metade da sua vida, era, afinal, a personificação do horror, da barbárie, da miséria humana. Provou que é possível, sabe Deus a que custo, um ser humano começar de novo. Conseguirá Caroline também reconstruir-se, a partir das suas trevas de dúvida?
Breviário
Didion e os ventos de Santa Ana
Há muito de metafórico na triste coincidência de, a dias de Donald Trump tomar posse, vermos arder a cidade que tantas vezes desapareceu na ficção. Como se, de alguma maneira, por ironia do destino, a catástrofe natural antecedesse a catástrofe política… Construída no deserto, esplendorosamente virada para o oceano Pacífico, Los Angeles sempre foi o lugar da glória, da perfeição, dos sonhos. Joan Didion diz que “o clima de Los Angeles é o da catástrofe, do apocalipse”, num ensaio publicado em 1968 sobre os ventos de Santa Ana. Estes, segundo a escritora, recordam-nos como “estamos próximos do abismo”. Estamos?
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