A imagem do copo meio vazio, ou do copo meio cheio, é das mais usadas no campo da autoajuda, mostrando-nos qual é a perspetiva com que encaramos o mesmo meio copo. Mas um copo vazio é um copo vazio. Não há nada a fazer. Há uma falta de líquido que, qualquer que seja a perspetiva, nunca lá estará. Pior, se está vazio é porque antes esteve cheio. Um copo vazio é a imagem do líquido que se perdeu e é, ainda muito pior, a imagem negativa do oásis: se o oásis é a miragem da água que se deseja beber, o co(r)po vazio é a certeza de não vir a matar a sede.
O copo vazio é a perfeita síntese deste livro de Natália Timerman, a história de uma perda, do fim de uma relação amorosa, que deixa esse vazio imenso que é um copo sem nada. Mas é uma perda, e esse é o drama da narrativa, que vai além da perda em si. No texto de Natália, a perda é uma perda que se arrasta no tempo, que se torna como que constitutiva daquela que a sofreu, a personagem central do romance, e que é sobretudo uma sede. Uma perda que para a personagem nunca é definitiva e, por isso, está lá sempre presente como uma sede imensa que não se consegue matar.
Quantas perdas todos nós temos na vida, sejam perdas de pessoas com quem nos relacionamos afetivamente de forma mais intensa e prolongada, sejam os amigos de quem fomos muito próximos, confessores e confessados. Experimentei ambas, e todas elas nos deixam essa sensação que não é simplesmente a ideia trivial que nos diz que qualquer pessoa, sendo única e irrepetível, é insubstituível. Não, não é nada disso. É que algumas pessoas, poucas, mais que deixarem um vazio, deixam uma vontade de estar com elas que é implacável na forma como se impõe.
Mirela, a quem Pedro desapareceu, passa a ser essa imagem do copo vazio que nunca consegue corresponder à sede que tem. Uma sede de Pedro que a leva quase à loucura, apesar todas as técnicas para superar a perda, especialmente a substituição por Rui. Uma perda tão forte que, para Mirela, à medida que se desvanece a memória de Pedro, aí sim, a perda toma o seu lugar. Pedro passa a ser a perda. E Pedro passa a ser inconcebível sem ser ausência.
E a principal imagem nesta conceção de perda que passa a ser a natureza daquilo que é perdido, encontra-se na forma como a perda acontece. Regressando a tudo o que todos nós já vivemos, a todas as perdas com que fomos vivendo, algumas delas vão sendo construídas, outras ocorrem abruptamente. As construídas, como que encerram nesse processo um luto que se vai fazendo; as outras, as inesperadas, carecem sempre da presença do corpo que permite o luto. Assim é Mirela e Pedro. Apenas com o Pedro-ausente, não há luto possível. O copo vazio é também o corpo igualmente vazio.
Um dia, sem mais nem menos, o Pedro que no dia anterior era parte central numa vida, desaparece. Sem sinais, muito menos, sem notas ou justificações, apenas se eclipsa. Esta forma abrupta de nos apresentar a perda, rasga o tempo e o espaço numa narrativa escrita de forma esplendorosa. O arrastar do primeiro ano depois desse desaparecimento misterioso, mostra-nos uma vida totalmente centrada nessa perda. Já não necessariamente o Pedro que desaparecera, mas o que de constitutivo a perda se tornara em Mirela.
Não fosse Natália Timerman médica psiquiatra, e mestre em psicologia, e talvez nos fosse mais difícil apanhar a profundidade existencial que foi colocada nesta personagem. Cansados e esgotados, tantas vezes, por correr atrás de perdas, não percebemos que são essas perdas que possivelmente nos formam.
Aliás, arrisco dizer que mais que sermos aquilo que conseguimos adquirir e manter, somos aquilo que perdemos. Somos as inúmeras sedes que nunca conseguimos matar, somos os copos vazios que não conseguimos encher.
Este livro de Natália Timerman é uma obra espantosa, de leitura de um só folego, que merece ser editada em Portugal com a maior brevidade possível.
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