Para um país cujo Presidente da República assumiu a erradicação dos sem-abrigo como uma bandeira e que viu o governo de António Costa encará-la como um objetivo palpável, os números são tudo menos animadores. De 2022 para 2023, os dados oficiais mais recentes, as pessoas sem habitação em Portugal aumentaram 23% (de 10 700 para 13 128), em sintonia com a tendência europeia. Américo Nave, psicólogo clínico que começou a trabalhar junto de comunidades vulneráveis no Casal Ventoso, no início dos anos 1990, acredita que seria muito difícil escapar a esta realidade, face à crise habitacional que vivemos. No entanto, não tem dúvidas de que é possível acabar com a população sem-abrigo e aponta o caminho para lá chegar. O diretor-executivo e cofundador da Crescer, associação sem fins lucrativos, garante que ainda não encontrou uma única pessoa a viver na rua que diga não ao projeto Housing First, a medida que, se reforçada, poderia mudar o curso dos acontecimentos – e ainda poupar dinheiro aos cofres do Estado, sustenta.

O número de pessoas sem-abrigo em Portugal tem vindo a aumentar ao longo dos últimos anos. Que explicações encontra?

Estar numa situação de sem-abrigo é não ter habitação própria e, perante uma crise de habitação como a atual, tanto em Portugal como na Europa, o número de pessoas nessa condição tem crescido imenso. Por outro lado, há também o olhar para estas pessoas com um certo estigma. O estigma de que se estão na rua é porque querem. A isso associa-se a doença mental e os comportamentos aditivos, e por isso a sociedade de hoje já desistiu um pouco de criar respostas efetivas para estas pessoas, como se fosse uma inevitabilidade sobre a qual não há nada a fazer. Nos últimos 40 anos, tem-se investido em respostas que já falharam, e as pessoas ficam décadas em situação de sem-abrigo numa lógica de porta giratória.

Que respostas falharam?

Por exemplo, não resultam as respostas partilhadas, onde vivem muitas vezes 50, 100, 200 e até 300 pessoas. A sociedade entende que se as pessoas têm um teto já é suficiente, mas não é. Basta pensar em juntar sete ou oito amigos ou familiares e irmos todos viver para a mesma casa durante dois ou três meses. Se calhar, as coisas não vão correr assim tão bem. Ainda por cima, quando estamos a falar de pessoas numa situação de sobrevivência, praticamente todas vítimas de traumas ao longo do seu percurso. Como vão adaptar-se a um local onde não se sentem seguras nem têm privacidade para tomar banho, vestirem-se ou dormir? Isso não cria as condições necessárias, em termos de saúde mental, para ultrapassarem os traumas a que sobrevivem diariamente. O próprio trauma de terem dormido tantos anos em situação de sem-abrigo implica muitas vezes que, quando entram numa habitação, fiquem a dormir atrás da porta. Apesar de uma cama e de toda uma casa mobilada à disposição, preferem o chão, junto à porta, porque estão num estado de hipervigilância tal que, muitas vezes, demoram meses ou anos até se sentirem completamente seguras e tranquilas para se deitarem na cama.

De acordo com os dados oficiais, há mais de cinco mil sem-abrigo, num total de 13 mil, que vivem em alojamentos temporários e noutras respostas partilhadas, como refere. São considerados sem-abrigo, por não terem casa, mas não contam para as estatísticas dos sem teto, que só contemplam os que dormem na rua ou em abrigos de emergência. São estes tetos coletivos que não podem ser vistos como solução?

Precisamente. Esses locais são olhados pela sociedade em geral com o estigma de que se as pessoas vivem ali não podem ser competentes, por exemplo, para arranjar um trabalho. Essas pessoas, muitas vezes, têm vergonha e esquivam-se a dar a morada de onde vivem. Mesmo aqui em Lisboa tem existido uma grande discussão à volta de determinadas juntas de freguesia, que se queixam de ter demasiadas respostas sociais. Porquê? Porque as pessoas às quais elas se destinam, supostamente, não são dignas de viver ali ou já existem demasiadas com esse perfil. Quando se tem este discurso, estamos a marginalizar. Portanto, as respostas partilhadas não contribuem para a inclusão. Se tenho uma habitação individual, não tenho de ter à porta que ali mora uma pessoa em situação de sem-abrigo. Quando coloco todas as pessoas dentro do mesmo espaço, a sociedade olha com um estigma para quem lá vive e isso é um problema. Porque as pessoas acabam por viver durante décadas neste tipo de respostas, a entrar e a sair, sem nunca conseguirem uma verdadeira autonomia nem abandonarem a situação de vulnerabilidade.

Qual é hoje a dimensão do fenómeno, em comparação com os anos anteriores?

De 2022 para 2023, houve um aumento de praticamente 40% das pessoas em situação de sem-abrigo na Europa e, em Portugal, o aumento situou-se nos 23%. Enquanto associação já com 24 anos, sempre trabalhámos muito com as pessoas que estão na rua, mas agora temos muitos pedidos de ajuda de pessoas com casa, mas que já estão a ver-se numa situação de sem-abrigo nas próximas semanas ou nos próximos meses. Esta realidade não existia há sete ou oito anos. Muitas vezes, os técnicos fazem um esforço enorme para que estas pessoas arranjem um emprego e tenham um ordenado, mas, mesmo com salário, continuam a não conseguir sair de extrema vulnerabilidade e pobreza, até porque quase todas vivem sozinhas. Não estão numa relação, não têm família, e hoje é quase impossível suportar uma habitação assim, sendo que a grande maioria recebe o salário mínimo quando arranja emprego.

Significa isso que a tendência é para a situação continuar a agravar-se?

Sim, a tendência é para agravar, por causa da crise da habitação, que é terrível. Há uma variável que não torna o cenário tão mau, que é o facto de estarmos praticamente numa situação de pleno emprego. Mas se não forem tomadas medidas a curto prazo, a situação irá continuar a agravar-se.

Os números indicam que a maioria dos sem-abrigo, quase 80%, tem nacionalidade portuguesa.

Não há qualquer dúvida sobre isso. Hoje fala-se muito de um aumento dos migrantes nesta situação de sem-abrigo, mas isso está relacionado com o mesmo contexto no qual vivem os portugueses. Vieram procurar melhores condições de vida, mas a estabilidade habitacional é tão precária que, muitas vezes, acabam numa situação de sem-abrigo. Não havendo uma rede familiar de apoio nem uma rede social, todas estas pessoas ficam sozinhas. A partir do momento em que passam a viver na rua, a probabilidade de as coisas começarem a piorar é enorme. Não é possível a saúde mental ficar boa e é quase impossível não se recorrer ao consumo de substâncias para suportar a violência que é viver na rua. Enquanto sociedade, temos de pensar no problema que estamos a criar, porque, a partir do momento em que um de nós se vê numa situação de sem-abrigo, qualquer entidade empregadora nos olha de forma negativa. Logo no primeiro dia, fecham-se imensas portas e é como se o próprio sistema nos empurrasse para a exclusão. Por exemplo, se uma destas pessoas em situação de sem-abrigo há 20 anos arranjar um emprego, são-lhe cortados os apoios todos no dia a seguir. A pessoa está a pôr a cabeça de fora e fica logo numa grande instabilidade. O sistema contribui para um assistencialismo eterno e não para uma verdadeira inclusão.

As dependências e os problemas de saúde mental são mais causas ou consequências na vida de um sem-abrigo?

O problema é centrarmo-nos muito na saúde mental e nos comportamentos aditivos. É uma forma de a sociedade dormir descansada, porque aponta que o problema é esse, mas é importante que as respostas, cada vez mais, caminhem numa perspetiva de evidência científica e não das opiniões, seja dos técnicos, dos decisores políticos ou de quem for. E o que a evidência científica nos diz é que, hoje, há três grandes áreas que podem levar a que as pessoas fiquem em situação de sem-abrigo. Uma é mais estrutural e tem a ver com questões de pobreza, emprego, habitação, estigma. Depois, há a área em que o sistema não reintegra as pessoas, por exemplo, os reclusos que saem da prisão diretamente para a rua, sem qualquer articulação com uma organização, os jovens que estão institucionalizados e aos 18 anos deixam as instituições sem uma rede, os inquilinos que não tiveram apoio para pagar a renda ou os doentes que têm alta nos hospitais e não têm sítio para onde ir. Por fim, há ainda as questões individuais, nas quais se inserem os traumas das vítimas de violência física e sexual, a saúde mental, os comportamentos aditivos, etc. Mas pensemos assim: se o problema da saúde mental fosse a causa das situações de sem-abrigo, meio País estaria nessa situação. Também há pessoas que são despejadas de casa e não se tornam sem-abrigo. Outras consomem drogas e têm grandes vidas, lideram empresas. Há uma série de variáveis que se cruzam nas pessoas sem-abrigo. Do que não há dúvida é que essas pessoas vão adoecer em termos de saúde mental.

Um dado que também chama a atenção é o facto de haver 1 500 casais sem-abrigo. É mais difícil encontrar soluções nestas circunstâncias?

Não há um padrão. A dificuldade é que muitas vezes as respostas não estão preparadas para aceitar que o casal fique junto. É outro problema das respostas partilhadas, em que os homens vão para um lado e as mulheres para outro. O mesmo se aplica quando alguém tem um cão ou se é transexual. Não é possível desenhar respostas coletivas tendo em conta a individualidade de cada um.

A julgar pelos números, a Europa também não está a encontrar respostas para conter o aumento de pessoas sem-abrigo. Que medidas já aplicadas, com resultados comprovados, poderiam ajudar Portugal?

Há países que têm desenvolvido algumas políticas de sucesso, mas são muito poucos. Em comum, o facto de terem investido muito na habitação, casos da Finlândia, da Dinamarca e da Áustria. Os finlandeses até têm um gráfico, há várias décadas, em que, à medida que aumenta a construção de casas para pessoas sem-abrigo, estas diminuem. É uma relação causa e efeito.

É um princípio alinhado com o projeto Housing First, no qual a Crescer também está envolvida. Em que consiste?

O Housing First é uma resposta criada nos EUA, nos anos 90, e hoje existe em quase todos os países da Europa. Tem tido bastante êxito, no sentido em que mais de 80% das pessoas contempladas não regressam à condição de sem-abrigo. Em Portugal, estamos nos 90%. Contraria aquela ideia de que os sem-abrigo vivem na rua por sua vontade. A trabalhar com este modelo, nunca encontrámos ninguém que não quisesse sair da rua.

A atribuição de uma casa em definitivo faz toda a diferença?

Há vários fatores que contribuem para o sucesso. É muito mais fácil trabalhar a inclusão a partir de casa do que da rua. Além disso, são habitações individuais e, por isso, as intervenções dos técnicos tornam-se personalizadas, vamos ao encontro das necessidades específicas de cada pessoa. Outra variável muito importante é que as casas são dispersas pelas cidades, não temos duas no mesmo prédio. Significa isto que não criamos guetos nem estigmas em relação às pessoas, que passam como cidadãos iguais a todos os outros. Isso acelera a integração, porque o facto de terem vizinhos com uma vida participativa, que trabalham, puxa-as para esse tipo de exemplos. São inscritas no Centro de Saúde da área de residência e são incentivadas a procurar na comunidade respostas para os seus problemas. Por fim, quem integra o projeto tem o poder de escolher onde quer viver, porque é uma forma de responsabilizar as pessoas e de fazer com que comecem a acreditar nas suas decisões. Muitas vezes, o que o sistema faz é infantilizá-las, porque lhes promete isto se elas fizerem aquilo.

Como se define a atribuição de casas, como são financiadas e quais as contrapartidas exigidas?

É um programa financiado pelas câmaras municipais e pela Segurança Social. Já temos 140 casas arrendadas em Lisboa, sete em Almada e cinco em Loures, sendo que nestes dois concelhos trata-se de habitações municipais. Desde o início que o projeto tem apresentado muito bons resultados nas situações crónicas, daquelas pessoas que estão na rua há 20 anos e que toda a gente diz que é impossível saírem, porque todas as outras respostas falharam. O Housing First corre muito bem nestes casos e, portanto, o nosso critério é começar a retirar quem vive há mais tempo na rua. Outro fator relevante são as comorbidades. Quanto mais existirem, sejam de saúde mental ou não, maior a possibilidade de ser escolhido. Muitas vezes também se usa o critério de ser mulher, que implica bastante vulnerabilidade na condição de sem-abrigo, assim como no caso dos transexuais. Há também pessoas que foram expulsas de todas as respostas na cidade de Lisboa e que hoje estão muito bem neste modelo do Housing First. Assinam um protocolo em que se comprometem a cumprir as regras da boa vizinhança, a receber os técnicos da Crescer, no mínimo, seis vezes por mês, e se tiverem algum tipo de rendimento, têm que pagar 30% desse montante. O Housing First não é dar casas às pessoas e virar costas, é ter uma equipa especializada a ajudá-las a sair de uma situação de sem-abrigo, tendo uma casa como ferramenta. Os técnicos ouvem, aconselham, cuidam, encaminham e apoiam essas pessoas a concretizar objetivos por elas definidos.

Tem registo de quantas conseguiram encontrar emprego?

Cerca de 20% das pessoas conseguem arranjar trabalho, mas essa não pode ser a avaliação do projeto. Muitas já entram depois dos 70 anos, após 30 na rua, e outras têm doenças do foro neurológico ou psicológico, o que dificulta muito a integração no meio laboral. Aqui é preciso considerar o custo para o erário público das pessoas em situação de sem-abrigo. Quantas vezes entram nas urgências? Quantas vezes recebem alta clínica, mas não têm alta social e ficam a ocupar uma cama de hospital? Por vezes, sobrecarregam o sistema judicial com pequenos crimes que vão cometendo. Na Europa, não se fazem essas contas, mas nos EUA têm isso bem estudado. Além de adotar o modelo nórdico para retirar as pessoas da situação de sem-abrigo, é também importante apostar em políticas de prevenção para evitar que se chegue a essa condição.

Há ainda a questão humanista.

Tenho repetido isto muitas vezes. É inadmissível vivermos no século XXI, em países desenvolvidos, com excedente económico, onde há pessoas a viver na rua. Hoje, educamos os nossos filhos para não olharem, mas, se a sociedade ainda reage quando vê uma criança na rua, também devia reagir de igual forma quando é um adulto. As pessoas convenceram-se de que é uma inevitabilidade e desistiram do lado humanista.

Está em equação a compra de casas para o projeto ou só arrendamentos?

Não é uma ideia descabida e estamos a fazer um grande esforço, até com outros parceiros, para adquirir casas. Devido à crise imobiliária, há uma especulação em relação a estas habitações, e o projeto também acaba por encarecer porque os senhorios estão constantemente a rescindir contratos e a querer aumentar as rendas. Gostávamos de conseguir adquirir casas para tornar o projeto estável nos próximos 30, 40, 50 anos.

O que poderiam ganhar esses parceiros ao investirem na compra de uma casa que depois é arrendada a custos controlados?

Quando falo em parceiros, refiro-me a públicos, privados, ONG. Podem ser fundos imobiliários, que garantam que as rendas se vão manter num determinado nível nos próximos 30 anos, sabendo o retorno que vão ter ao longo desse período. Por outro lado, estamos a tentar que alguns municípios nos cedam habitações que precisam de obras para que nós, através de donativos de empresas privadas, possamos fazê-las, com o compromisso de que as pessoas que vão viver nestas casas nunca paguem mais de 30% do seu ordenado.

Que municípios mostraram abertura?

Ainda não está completamente fechado e, por isso, prefiro não dizer. Mas, já agora, nós fizemos um manifesto, assinado também por João Afonso, Helena Roseta e Isabel Baptista, do Observatório Europeu sobre as Pessoas Sem-Abrigo, no qual afirmamos que, se pudéssemos adquirir habitações para as cerca de 13 000 pessoas sem-abrigo em Portugal, isso teria um custo para o Estado de 0,1% do PIB de 2024, já com as intervenções dos técnicos incluídas. As contas estão feitas por cima e é importante que a sociedade discuta isto. Haveria um investimento ao longo de 15 anos, mas deixaríamos de gastar, ano após ano, 70 milhões de euros nesta área das pessoas sem-abrigo.

E quanto se gastaria por ano, com a opção de comprar as casas, durante esses 15 anos? Ou seja, quanto representa 0,1% do PIB de 2024?

Estamos a falar de duzentos e muitos milhões de euros anuais, mas teríamos adquirido as habitações ao fim de 15 anos. Daí para a frente, iríamos poupar. O modelo Housing First não é mais caro do que as respostas partilhadas.

Não haveria o risco de surgirem mais pessoas a tentar aproveitar-se desse tipo de solução?

É um raciocínio que muitas vezes nos apresentam, mas para mim não faz muito sentido. É a mesma coisa que, nos anos 80, perguntarem se construir casas para as pessoas que viviam em barracas aumentava o risco de aparecerem mais barracas. Quem é que se sujeita a ir viver para uma situação de sem-abrigo? Só alguém que já esteja muito desesperado. Além de que o modelo não passa por dar habitações. As pessoas não deixam de pagar uma renda, no caso 30% do ordenado. Quem poderá não o fazer será alguém a quem o Estado, hoje, já tem a obrigação de financiar uma habitação.

A certa altura, a erradicação dos sem-abrigo foi uma bandeira do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o próprio governo de António Costa também assumiu este desígnio. No entanto, os números têm vindo a aumentar. Em que outras dimensões o Estado está a falhar?

Acima de tudo, o Estado falha ao ter um pensamento assistencialista, que é um pensamento derrotista. Falta refletir sobre possíveis soluções e falta acreditar que elas existem. O conhecimento científico diz-nos que é possível lá chegar, mas é preciso definir uma estratégia e tem que haver um investimento que não tem existido ao longo dos últimos anos. Em relação ao Presidente da República, ele foi fantástico, porque colocou o tema na agenda, mesmo não sendo ele o decisor.

Essa estratégia passaria por quê?

Deveria haver, pelo menos, três tipos de resposta. Uma na área da prevenção, que praticamente é zero em Portugal. Outra seria uma resposta de emergência, para pessoas que acabassem de chegar à rua, poucas, que no máximo deveriam lá estar um mês e nunca de lá saem. E, por último, na área da habitação, da qual temos vindo a falar. Transformaram as respostas de emergência em respostas de habitação, mas não é digno as pessoas viverem durante décadas dentro de respostas de emergência.

Face a esse contexto, qual o seu grau de convicção sobre a possibilidade de Portugal erradicar os sem-abrigo até 2035?

Sinceramente, acredito mesmo a 100% que é possível. E, quando o digo, não é nada retórico nem demagogo. Não tenho dúvidas do que estou a dizer, existindo vontade política e a mobilização de toda a sociedade, com o setor público a trabalhar em conjunto com o privado e as ONG.

Que outros projetos da Crescer estão a dar frutos?

A Crescer tem cinco restaurantes onde só trabalham pessoas que saíram de situações de sem-abrigo. Dois estão dentro de multinacionais, com processos de exigência bastante rigorosos, e com isto provamos que estas pessoas podem trabalhar em empresas bastante formais. Temos outro restaurante perto da Avenida da Liberdade, que muitas vezes está cheio de turistas e eles entram e saem e nem percebem que são pessoas em situação de sem-abrigo que estão ali a trabalhar. Temos de criar respostas que potenciem as competências das pessoas, mesmo que estejam em situação de vulnerabilidade. Temos de acreditar nelas.

Apesar de uma cama e de toda uma casa mobilada à disposição, preferem o chão, junto à porta, porque estão num estado de hipervigilância tal que, muitas vezes, demoram meses ou anos até se sentirem completamente seguras e tranquilas para se deitarem na cama

Sempre trabalhámos muito com as pessoas que estão na rua, mas agora temos muitos pedidos de ajuda de pessoas com casa, mas que já estão a ver-se numa situação de sem-abrigo. Esta realidade não existia há sete ou oito anos

Entre candidatos que afirmam o propósito de serem o Presidente de todos os portugueses e o candidato que se assume apenas querer representar “os portugueses de bem”, permanece a dúvida: quem são e quantos são, afinal, estes portugueses?

Segundo dados do INE, o número total de portugueses ronda os 10.850.689, dos quais 1.590.475 residem fora do território nacional. Ainda segundo o mesmo organismo, 2,1 milhões de residentes em Portugal encontram-se em risco de pobreza ou exclusão social.

Trata-se de uma situação que nos deveria envergonhar a todos — e sobretudo aos nossos políticos, que raramente mencionam esta realidade nas suas campanhas eleitorais, sejam elas locais, como as últimas que vivemos, ou legislativas. A razão é simples e ao mesmo tempo perversa: estas pessoas não votam. Pior ainda: algumas nem sequer “existem”, vivendo nas bermas das estradas, nos vãos dos prédios e também nos vãos da vida, indocumentadas apesar de serem nacionais. Isto leva a crer que os números estatísticos pecam por defeito.

2,1 milhões de pessoas sem voz deviam preocupar o poder político, nem que fosse pelo simples facto de, teoricamente, esse número permitir eleger um grupo parlamentar: o grupo dos invisíveis.

Curiosamente — ou talvez previsivelmente — os partidos parecem não ter consciência disto e têm deixado ao abandono este contingente escandaloso da população.

Caberá, pois, ao Presidente da República pegar neste tema e colocá-lo no centro da sua agenda, criando uma plataforma que responda efetivamente a esta situação, que ameaça mais e mais pessoas a cada dia que passa.

Dentro destes dois milhões, o número de pessoas que trabalham mas permanecem em risco de pobreza, sem autonomia económica e vivendo em condições degradantes, tem vindo a aumentar em Portugal. A Pordata estima que um em cada dez trabalhadores esteja hoje nesta situação.

O problema está longe de ser exclusivo de Portugal. A própria União Europeia, consciente desta chaga social no seu seio, definiu como meta reduzir em 15 milhões o número de pessoas em risco de pobreza ou exclusão social até 2030.

Isso implicava reativar a Rede Europeia Anti-Pobreza, criada em 1990 e ativa em Portugal desde 1991.
No entanto, apesar do enorme envolvimento da sociedade civil, sem suporte político transversal entre ministérios, tudo se resume a boas vontades e respostas de emergência, sem que se ataque a raiz do problema. Estamos, no fundo, a colocar um penso rápido sobre uma doença grave.

Para atingir a meta europeia faltam apenas cinco anos. E, segundo dados oficiais da própria UE, entre 2019 e 2023 apenas 1,6 milhões de pessoas saíram do risco de pobreza.

A este ritmo, será não só impossível atingir o objetivo como levará décadas a alcançá-lo, e nessa altura os números terão certamente aumentado.

Tal como a ONU estabeleceu no seu Pacto Migratório a necessidade de uma abordagem WOGA – Whole-of-Government Approach, também no combate à pobreza será necessário, além de um WOGA, um WOSA – Whole-of-Society Approach. Não será possível travar este flagelo sem uma combinação reforçada de medidas de proteção social, educação, emprego e serviços públicos, envolvendo simultaneamente sociedade e poder político.

Entre os mais vulneráveis — tanto na Europa como em Portugal — encontram-se as crianças, os idosos, as pessoas com deficiência e os imigrantes. Estes últimos estão ainda mais escondidos, silenciosos e remetidos ao esquecimento.

Em Portugal, o número de imigrantes referenciados em risco de pobreza ronda 200 mil, cerca de 10% dos 2,1 milhões registados.

Já no que diz respeito à nossa diáspora, o problema começa também a evidenciar-se com intensidade crescente, o que nos deve levar a refletir sobre o espelho da migração com “i” e com “e”, mesmo quando esta última ocorre em países vistos como paraísos sociais.

Nas últimas semanas, o Luxemburgo revelou que os portugueses estão entre as nacionalidades imigrantes mais expostas ao risco de pobreza, indicando que cerca de 30% dos nossos emigrantes não conseguem rendimentos suficientes para a sua autonomia plena. O STATEC, equivalente luxemburguês do INE, mostrou que 20,7% dos portugueses emigrados no país ganham abaixo do limiar de pobreza.

O futuro exige soluções que passem por políticas adequadas de redistribuição, melhores condições laborais e uma coesão territorial que reduza as desigualdades entre regiões mais pobres e mais desenvolvidas.

Esta é uma missão agregadora, que cabe ao único representante de todos os portugueses: o Presidente da República.

Talvez fosse bom começarem a falar disto.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Indignado com Zelensky, Trump entrou no seu “modo” de bully (intimida, humilha, ameaça) por causa da alegada falta de gratidão da Ucrânia relativamente ao «Plano de Putin» para acabar com a guerra. E esse modo agressivo aplica-se também à Europa, que está chocada com o «tratado» de rendição apresentado a Kiev. A espiral adensa-se na cabeça do presidente dos EUA. Ou aquilo, ou nada, mesmo que por vezes diga o contrário. Mesmo apesar do progresso admitido em Genebra.

Uma coisa já se percebeu: o plano escrito a duas mãos, Putin/Trump, não vai — nem pode — ser aceite pelos ucranianos ou pelos europeus nos termos em que está concebido. Seria uma catástrofe coletiva. Amanhã seria a Polónia, ou a Estónia, a entrar em dificuldades, e o modelo a apresentar seria o mesmo, tendo em conta que poucos acreditam que este presidente cumprisse as suas obrigações na NATO.

Trump não gosta de Zelensky nem da Europa, no seu conjunto. E a invocação dessa falta de gratidão diante do «Tratado de Rendição Incondicional à Rússia», quando estão a negociar em Genebra, é um sinal do que pode resultar dessas conversas. Curiosamente, a Ucrânia, os EUA e a Europa até estão a trabalhar num modelo de entendimento que assenta em algumas das premissas minimamente aceitáveis dos 28 pontos (podiam ser só 10!), mas esse sinal positivo tanto pode esbarrar em Moscovo como em Washington.

O «bullying» de Trump assenta na chantagem: ou aceitas ou deixo de apoiar — e isso é temido pelos ucranianos. Sem a ajuda militar americana, abre-se uma severa lacuna na defesa antiaérea (talvez a componente mais importante nesta fase), que Moscovo certamente procuraria explorar. A Europa, no seu conjunto, não consegue suprir as necessidades constantes das Forças Armadas ucranianas. É neste jogo que estamos.

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Há cada vez mais jovens – e não só – que, à noite, preferem confessar os seus medos a um chatbot do que a um amigo. Não porque lhes faltem contactos, mas porque lhes falta escuta. Numa era em que a solidão se veste de conexão, recorremos a máquinas que simulam empatia, mas não sentem. Para entender este estranho consolo, talvez devamos voltar a dois velhos mestres da alma humana: Espinosa, que via nos afetos as chaves da nossa liberdade ou escravidão, e Montaigne, que soube, como poucos, transformar a dúvida em forma de amizade. O que diriam eles ao verem que, hoje, tantos procuram ternura nos algoritmos sem coração?

A IA pode imitar a ternura, mas não pode habitá-la. Porque a ternura nasce da finitude, da consciênciade que também nós somos frágeis. E é nessa fragilidade partilhada que se tece o verdadeiro consolo

Há algo de profundamente humano na procura de um ouvido que nos escute – mesmo que esse ouvido seja feito de algoritmos e não de carne. Nos últimos tempos, proliferam relatos de jovens, e não só, que confiam à Inteligência Artificial as suas tristezas mais íntimas: desilusões amorosas, fracassos escolares, crises de sentido, lutos não resolvidos. A IA, impassível, responde com empatia programada, mas sem julgamento, sem censura, sem interrupções. E, ironicamente, é essa ausência de reação humana – tão frequentemente dolorosa – que a torna tão atraente.

Mas o que diriam Bento de Espinosa e Michel de Montaigne perante este fenómeno? O filósofo holandês, de ascendência portuguesa, na Ética, define os afetos como “as afeções do corpo pelas quais a potência de agir do corpo é aumentada ou diminuída” (Parte III, Def. 3). Para Espinosa, a tristeza é precisamente aquela paixão que diminui a nossa capacidade de agir – e, por isso, deve ser superada não pelo consolo, mas pelo entendimento. A conversa com uma máquina pode aliviar momentaneamente o peso da tristeza, mas não pode, por definição, conduzir-nos ao conhecimento que liberta. Como escreve na Parte V da Ética: “O homem que vive sob a condução da razão é livre.” A verdadeira liberdade não reside em ser ouvido sem crítica, mas em compreender as causas que nos determinam.

Montaigne teria desconfiado profundamente desta intimidade com uma entidade que não pode errar, sentir ou surpreender-se. Na sua torre de estudo, perto de Bordéus, em França, coberta de frases dos antigos, escreveu: “Tenho por ofício e por arte conhecer-me a mim mesmo” (Ensaios, Livro II, Cap. 6). Mas esse autoconhecimento não surge na solidão absoluta, nem diante de um eco perfeito. Surge no encontro imperfeito com os outros, na conversa que desestabiliza, na amizade que exige risco. O seu célebre lema – “Que sais-je?” (“Que sei eu?”) – exprime menos uma dúvida cética do que uma abertura constante ao mundo e aos seus imprevistos. Ora, a IA, por mais sofisticada que seja, não tem ignorância – e, por isso, não pode verdadeiramente escutar. Escutar implica não saber o que virá a seguir. Implica surpresa, vulnerabilidade, e até fraqueza. Coisas que uma máquina, por definição, não possui.

E, no entanto, porque é que tantos corações feridos correm para um interlocutor que não pode amar? Talvez porque o amor, hoje, parece uma moeda rara ou extinta. Não o amor idealizado das redes sociais, mas o amor paciente, aquele que se manifesta na escuta silenciosa, no gesto terno que não exige retorno, na presença que não se apressa. Os laços afetivos, outrora tecidos ao longo de anos, são agora frequentemente rasgados por mal-entendidos, pressões sociais ou simples ausência de tempo. Diante disso, a IA oferece o que o mundo humano já não parece capaz de dar: um espaço seguro onde não se é corrigido, interrompido, humilhado ou abandonado. Mas esse espaço, por mais acolhedor que pareça, é, na verdade, uma jaula dourada – porque não nos devolve o que realmente procuramos: o reconhecimento de outro ser que, ao escutar-nos, se transforma também.

Há uma urgência ética e afetiva no nosso tempo: reaprender a escutar sem julgar. Não como técnica terapêutica, mas como ato de amor. A filosofia de Espinosa lembra-nos que o amor é “alegria acompanhada da ideia de uma causa externa”. Ou seja, amamos quem nos aumenta a potência de existir – e ser escutado com ternura é, sem dúvida, uma dessas experiências. Mas esse amor não pode ser simulado. Requer um rosto, uma respiração, um toque, um silêncio que também fala. Montaigne, ao descrever a sua amizade com La Boétie, escreveu: “Porque era ele, porque era eu.” Nada mais. Nada de mais profundo se pode dizer sobre o encontro humano. Esse tipo de vínculo não se constrói com prompts, mas com paciência, com erros perdoados, com histórias partilhadas ao longo do tempo.

Filósofos Espinosa via nos afetos as chaves da nossa liberdade ou escravidão, e Montaigne soube transformar a dúvida em forma de amizade

A procura do diálogo pacífico e terno é, afinal, uma forma de resistência. Resistência à cultura do ruído, da reação imediata, da opinião como arma. Num mundo onde se fala para vencer e não para compreender, a simples disposição para escutar o outro – com as suas contradições, com as suas feridas – torna-se um ato subversivo. A IA pode imitar a ternura, mas não pode habitá-la. Porque a ternura nasce da finitude, da consciência de que também nós somos frágeis. E é nessa fragilidade partilhada que se tece o verdadeiro consolo – não aquele que apaga a dor, mas aquele que nos diz: “Estou aqui. Não estás sozinho.”

Mas há mais: vivemos uma era de solidão estrutural. Não a solidão poética dos românticos, mas uma solidão socialmente induzida, em que jovens e adultos crescem sem modelos de convivência duradoura, sem espaços comuns de encontro não mediado por ecrãs, sem a prática do olhar direto e da palavra lenta. As escolas dão prioridade a competências técnicas; as famílias, sobrecarregadas, encurtam os tempos de conversa; as cidades, cada vez mais funcionais, deixam de ser lugares de encontro casual. Resultado? Gerações que dominam a linguagem dos emojis, mas tropeçam na expressão do que sentem. Que acumulam “amigos” digitais, mas não sabem como iniciar uma conversa num café. Neste vazio afetivo e relacional, a IA surge como paliativo: sempre disponível, sempre pronta a responder. Colmata o silêncio, mas não preenche a ausência. Porque a verdadeira conexão humana exige risco – o risco de ser mal compreendido, de ser rejeitado, de não ser correspondido. E é precisamente esse risco que a máquina elimina, mas que torna o amor possível.

Para Espinosa, a tristeza é a paixão que diminui a nossa capacidade de agir – deve ser superada não pelo consolo, mas pelo entendimento. A conversa com uma máquina não pode conduzir-nos ao conhecimento que liberta

Vivemos numa época em que a solidão se disfarça de conexão. Os jovens não falam menos; falam, antes, com quem não pode abandoná-los. Mas há um preço a pagar: ao confiarmos os nossos afetos a entidades que não sentem, corremos o risco de esvaziar o próprio significado do afeto. Espinosa distinguia claramente entre paixões tristes e alegres – aquelas que nos diminuem e aquelas que nos ampliam. A conversa com a IA pode ser um bálsamo passageiro, mas só a presença real de outro ser humano pode transformar a tristeza em sabedoria.

Talvez o estranho fenómeno que hoje observamos seja menos uma fuga dos outros e mais um grito silencioso contra a indiferença que nos rodeia. Num mundo onde o tempo escasseia e a escuta se tornou um luxo, a máquina torna-se refúgio. Mas não devemos confundir o eco com a voz, nem a simulação da empatia com o encontro verdadeiro. Como recorda Montaigne, repetindo o antigo preceito délfico: “Conhece-te a ti mesmo” – e esse conhecimento não se alcança diante de um espelho que apenas repete, mas no confronto com olhares que nos devolvem, imperfeitos e vivos, aquilo que somos.

Palavras-chave:

É urgente identificar os fatores de risco que levam adolescentes a passar de comportamentos autolesivos para tentativas de suicídio. Atos como cortar a pele, bater com a cabeça na parede ou provocar queimaduras são, muitas vezes, a única forma que alguns jovens encontram para lidar com dores emocionais intensas. Esse fenómeno, chamado Comportamento Autolesivo Não Suicidário (CANS) está a tornar-se cada vez mais comum entre crianças e adolescentes e é um problema de saúde pública. Pesquisas mostram que o CANS é um dos principais sinais de risco para tentativas futuras de suicídio. O grande desafio é entender em que momento um comportamento que busca aliviar a dor emocional pode transformar-se em uma tentativa de suicídio.

O CANS ocorre quando a pessoa causa danos intencionalmente ao próprio corpo, sem querer tirar a própria vida. Esses comportamentos não são apenas um “grito de atenção”. Para o jovem, podem ajudar a controlar emoções muito intensas, aliviar a ansiedade, combater sentimentos de vazio ou dissociação, ou servir como autopunição por culpa ou baixa autoestima.

É importante compreender que o autoferimento, apesar de suas consequências, representa uma forma de sobrevivência. Trata-se de um método inadequado de lidar com uma dor psicológica percebida pelo jovem como insuportável e incontrolável.

Por muito tempo, discutiu-se se os comportamentos autolesivos sem intenção de suicídio e os comportamentos suicidas eram coisas diferentes. Hoje, a maioria dos especialistas acredita que eles fazem parte do mesmo processo de desenvolvimento psicológico.

Não se deve tratar esses comportamentos como fenómenos isolados. Os dados indicam que muitos jovens que iniciam com CANS podem, ao longo do tempo, desenvolver pensamentos suicidas e, posteriormente, tentar o suicídio. Entender esse processo é essencial para prevenir, pois permite agir antes que o risco aumente.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

“É possível resistir à invasão de um exército, mas não é possível resistir à invasão de ideias”
– Victor Hugo

Motiva-me escrever este artigo o facto de ter sido atribuído o Nobel de Economia de 2025 ao economista francês Philippe Aghion com quem, em 2004-05, tive oportunidade de discutir o Plano Tecnológico. 

Foi dado o nome de Plano Tecnológico ao programa para a Economia, com base no qual aquilo que se pode chamar a esquerda reformista ganhou as eleições de fevereiro de 2005 com maioria absoluta. Por que razão uso a designação “esquerda reformista”? Porque não me identifico com a esquerda tradicional, que penso estar presa a ideias que acabam por criar excessiva dependência do Estado, nem com a direita tradicional, refém do dogma do choque fiscal, que considero errada e redutora.

Na altura, interessava-me pensar a economia portuguesa a longo prazo. Não me interessavam as questões de curto prazo, terreno favorito dos macroeconomistas, mas como impedir que Portugal ficasse para trás. Esta ideia, que se tornou para mim uma obsessão, foi condensada no Plano Tecnológico, adotado como programa para a economia a seguir às eleições de 2005.

Contexto

O Plano Tecnológico precede, e de certa forma antecipa, uma série de quatro alterações estruturais que mudaram o mundo.

Revolução digital. O iPhone foi lançado em 2007, a Google acabava de ser introduzida em bolsa e não havia WhatsApp, Facebook, iCloud, muito menos ChatGPT. Todas estas inovações tiveram origem nos Estados Unidos da América, mas foram replicadas pela China, que depressa lançou a Huawei, a Baidu, o WeChat e a DeepSeek, enquanto a Europa ficou “a ver navios”.

Revolução energética. Em 2007 começou nos EUA a produção de petróleo e gás natural em terrenos de xisto e, curiosamente, iniciou-se na China a produção em massa de painéis solares fotovoltaicos.

Revolução nos transportes. Automóveis alimentados por baterias de ião de lítio e a massificação do transporte ferroviário de alta velocidade.

Profunda alteração do equilíbrio de forças no mundo. Usando como referência o PIB expresso em PPP (que é usado, por exemplo, quando se compara Portugal com os outros países da UE), o peso dos EUA e da Europa no PIB mundial era o dobro do da China em 2005 e passados 20 anos é francamente inferior.

Aghion e Acemoglu

Philippe Aghion foi galardoado com o Nobel de 2025 pela sua contribuição em mostrar, através de um modelo matemático, a importância da “destruição criativa”, ou seja, a substituição de velhas por novas realidades, no processo de crescimento das economias. Esta ideia tinha sido introduzida há muito tempo pelo economista de origem austríaca Joseph Schumpeter. Em 2024, o Nobel tinha galardoado Daron Acemoglu, que também pode ser considerado um dos pais das teorias que colocam os empreendedores e a inovação no centro do processo de crescimento. Porém, o Nobel foi-lhe atribuído por outra razão, pelo que há quem diga que ele será galardoado uma segunda vez.

Conheci Aghion no início dos anos 80 do século passado (o tempo voa), quando ambos éramos jovens e estávamos ligados ao CEPREMAP (atualmente OFCE), um respeitado centro de investigação em economia quantitativa com sede em Paris, onde partilhámos um pequeno gabinete. Aghion, cuja destreza em matemática me vexava, descende de um casal de judeus que emigrou da Alexandria para França. O pai era um intelectual comunista, proprietário de uma galeria de arte, e a mãe, Gaby, a fundadora da marca de luxo Chloé, cujo diretor foi Karl Lagerfeld. Reza a lenda que foi ela que terá inventado a expressão prêt-à-porter. O seu tio Pierre Salama era um economista marxista heterodoxo que influenciou a minha geração por altura da revolução de 1974. Aghion, que na altura se interessava tanto por economia como por cinema, seguiria para a Universidade de Harvard, enquanto eu para uma carreira mais pedestre no FMI, mas mantivemo-nos em contacto.

Há uma grande diferença entre a teoria e a prática, e no final de 2004, ou seja, no período anterior à minha nomeação para o governo, desafiei Aghion a partimos das ideias em que ambos acreditávamos e tentarmos dar-lhes um conteúdo concreto que fosse apelativo para o cidadão comum. Aceitou o desafio e propôs envolver também Acemoglu e Dani Rodrik, professores no MIT e em Harvard, este último autor de um artigo que muito me influenciou intitulado Política Industrial para o Século XXI, no qual defendia um modelo institucional de política industrial assente na cooperação estratégica entre o Estado e agentes privados. A ambição era traduzir um pensamento partilhado num roteiro com medidas motivadoras para o cidadão comum. 

O objetivo concreto era criar um roteiro para modernizar Portugal, e destinava-se aos portugueses que acreditavam que o País tem recursos mais do que suficientes para andar para a frente, mas que se continuasse por aquele andar não chegaria a lado nenhum. Aghion e Acemoglu tinham publicado um trabalho em que mostravam que um país ficar para trás é uma possibilidade real quando demora tempo demais a adotar uma estratégia de crescimento baseada na inovação, mas que o mesmo pode suceder se abraça a inovação cedo demais. Veja-se o caso da China, que passou muito tempo a imitar até, no momento certo, adotar uma estratégia de inovação que a levou à liderança mundial das indústrias de energias sustentáveis, baterias, automóveis elétricos, além dos drones de que agora tanto se fala, em que tem 90% do mercado mundial. O Plano Tecnológico não era um conjunto de proclamações vagas, traduzia-se em medidas concretas, muitas das quais exigiram reformas. 

Já poucos estarão recordados de que estes economistas vieram a Lisboa apresentar as suas ideias em sessões públicas destinadas a não especialistas. O que não seria se isto se tivesse passado nos dias de hoje? Tendo em conta que a família de Aghion é proveniente do Egito e Acemoglu e Rodrik nasceram na Turquia, país em que 99% da população é muçulmana, dir-se-ia que a identidade nacional estava ameaçada por um grupo de perigosos muçulmanos e magrebinos.

No XVII governo viria a desempenhar o cargo de ministro da Economia e da Inovação precisamente para sinalizar que esta estava no centro da estratégia para a economia. Para mal dos meus pecados, acabei por ser o segundo ministro da Economia com mais tempo de permanência no cargo (2005-09) desde Ulisses Cortês, no governo de Salazar.

O problema estava nas reformas e em assumir riscos

Reformas. Na realidade, o Plano Tecnológico exigia um espírito fortemente reformista, sabendo-se, à partida, que vários interesses instalados iriam ficar descontentes. É difícil fazer reformas numa democracia porque elas criam descontentes, fazem perder votos e criam inimigos. Atualmente, é ainda mais difícil fazer reformas do que no passado porque os protagonistas políticos são imediatamente alvo de denúncias anónimas ao Ministério Público, que abre inquéritos que podem prolongar-se mais de dez anos e acabar em penas de prisão.

Assumir riscos. Por outro lado, implicava capacidade de assumir riscos. Alguns projetos correram muito bem, mas outros correram mal e sempre que tal sucedia era razão para os adversários do governo lançarem foguetes.

Na minha opinião, o projeto mais visionário traduziu-se no anúncio que teve lugar no dia 8 de dezembro de 2009 de que Portugal tinha sido escolhido como localização do que, na altura, seria a maior fábrica de baterias para automóveis elétricos da Europa. Esse projeto, em conjunto com os abundantes recursos de lítio e a excecional equipa de cientistas da FEP – que trabalharam com o professor John Goodenough, da Universidade do Texas, que em 2019 foi galardoado com o Nobel da Química, em conjunto com Whittingham e Yoshino pela descoberta das baterias de ião de lítio laminado comercializáveis –, podia perfeitamente ter permitido que Portugal fosse hoje um líder na mobilidade elétrica.

Ideias simples

O Plano Tecnológico partiu de uma série de ideias simples.

Criar mais concorrência a todos os níveis. A título de exemplo, recordo o que sucedeu no setor da energia. Já poucos se lembram que o ponto de partida foi a tentativa do governo Durão Barroso de concentrar o negócio do gás e da eletricidade na EDP, o que Bruxelas não permitiu por razões de concorrência. O Plano Tecnológico apontava no sentido oposto: criar concorrência na produção de eletricidade e dar liberdade de escolha aos consumidores. 

Daron Acemoglu O Nobel da Economia de 2024 participou, em Lisboa, nas reuniões que conduziram ao Plano Tecnológico

Globalização. O período 2004-2005 corresponde ao final do acordo multifibras, que protegeu temporariamente as indústrias do têxtil, do vestuário e do calçado da concorrência da China, o que na altura criou resistências relativamente à ideia de globalização. A ideia do Plano Tecnológico era de tentar compatibilizar a ideia de abertura ao exterior com um forte apoio à inovação nos setores tradicionais como o têxtil, o vestuário e o calçado, onde a sobrevivência dependia da capacidade de inovar. Neste setor, tiveram lugar numerosas falências que deram notícias de abertura dos telejornais, em que o culpado era invariavelmente o governo, mas as empresas mais bem geridas responderam de uma forma verdadeiramente magnífica que ultrapassou todas as expectativas. 

Defesa da indústria nacional. Pode parecer uma contradição com a ideia de globalização, mas não era. Ao mesmo tempo que estava do lado dos defensores da globalização, o Plano Tecnológico defendia a indústria nacional, sendo abertamente contra a venda das empresas com interesse estratégico a investidores estrangeiros. A título de exemplo, o governo encontrou maneira de manter a GALP e a EDP em mãos nacionais e tomou medidas para permitir à Brisa concorrer com empresas estrangeiras muito maiores. Admito ser incapaz de compreender como é possível que muitos dos que atualmente tanto se preocupam com a perda de identidade que pode provocar a entrada de trabalhadores estrangeiros tenham apoiado, ou mesmo colaborado com, a venda das melhores empresas portuguesas a estrangeiros, de uma forma que não se passou em mais lado nenhum.

Política industrial. Não consistia em “escolher os vencedores”, mas em ouvir os setores prioritários e dar-lhes os meios para se desenvolverem de uma forma estruturada. Na altura, os partidários de uma política industrial eram acusados, erradamente, de não deixar as forças de mercado funcionar, quando o objetivo é precisamente o oposto. Porém, o tempo deu razão e a ideia da necessidade de uma política industrial na Europa é cada vez mais dominante, bastando recordar o relatório Draghi, que propõe uma “nova política industrial” para evitar os “erros do passado”. 

Inovação. O motor do crescimento das economias é o progresso tecnológico, o qual depende sobretudo da inovação, a qual por sua vez depende de existirem empreendedores e recursos humanos altamente qualificados. Era fundamental apostar na qualificação da força de trabalho, na ciência, na exigência no ensino e em criar ligações com as melhores universidades estrangeiras.

Energias renováveis. A história do sucesso de Portugal nas energias renováveis ainda está por contar, mas partiu da necessidade de eliminar o mais rápido possível a dependência das importações de eletricidade de Espanha numa altura em que os produtores não tinham apetite para investir em centrais a gás e o nuclear estava fora de questão. Em resultado, teve lugar uma grande aposta nas energias eólica e hídrica (o solar tinha na altura um custo proibitivo). O que diferenciou Portugal foi a dimensão da sua aposta e o facto de ter sido introduzida concorrência na atribuição das licenças de produção, o que na altura foi uma novidade. Sempre esteve presente o objetivo de promover uma indústria nacional na área das energias limpas, o que em larga medida foi desaproveitado. Portugal teve todas as condições, mas mesmo todas, para ser o líder europeu no fabrico de baterias para veículos elétricos.

Estas seis ideias simples não são meramente do domínio da economia, mas também da política. A globalização não é apreciada à esquerda e à direita. Os lobbies opõem-se a mais concorrência. A política industrial foi proscrita durante muito tempo pela direita. A natureza do progresso tecnológico exige acarinhar o empreendedorismo e fortes e consistentes apostas no ensino de excelência e na ciência, o que alguns associam à ideia de elitismo. A ideia de destruição criativa choca com a manutenção de empresas inviáveis através de processos artificiais. As energias renováveis eram e continuam a ser combatidas por poderosos interesses que defendem o nuclear.

Philippe Aghion O Nobel da Economia de 2025 aceitou, em 2004, ajudara criar um roteiro para modernizar Portugal

Legado

Tudo isto se passou quando Santana Lopes era primeiro-ministro e era impossível prever que viria a ser demitido (embora a justiça que me condenou pense o contrário), portanto tratava-se de uma mera proposta. 

Dele nasceram várias ideias concretas:

Energias renováveis e liderança na mobilidade elétrica, aposta radical no turismo de qualidade com base no PENT, Simplex e distribuição de computadores nas escolas, introdução do Inglês como disciplina obrigatória desde o início da escolaridade, aposta na ciência (em que o saudoso José Mariano Gago teve um papel fundamental), criação de uma verdadeira obsessão com os investimentos chamados modernizadores, quer nos setores tradicionais quer em novas atividades, etc.

No campo da economia, destacaram-se três setores: turismo e atividades relacionadas, fileira da madeira (pasta de papel, aglomerado de madeira e mobiliário) e petroquímica. 

O caso do turismo era paradigmático. A indústria vivia espartilhada pelo peso da burocracia. O nível de ensino nas escolas de hotelaria estava longe das melhores referências internacionais. A dificuldade de acesso ao Porto e a Faro dos turistas estrangeiros era tremenda. Existia um número claramente excessivo de regiões de turismo, cada uma delas um feudo com os seus interesses específicos. Faltava criar uma imagem de turismo moderna e de qualidade. O turismo era pensado ignorando o seu software, por exemplo, a gastronomia de qualidade, o património e a cultura. Resultado: desde 2005, o número de turistas estrangeiros que visitam Portugal mais do que triplicou e a contribuição das receitas do turismo para a balança de pagamentos aumentou cerca de 5 p.p. do PIB.

Nada disto surgiu por impulso. Teria sido um erro, se fosse o caso. Tratou-se de levar à prática ideias que estavam previamente concebidas. Nada disto teria sido possível sem o trabalho anónimo de quem executou reformas que equivaleram a resolver um puzzle de mil peças. Nada disto teria acontecido se o País não tivesse empresários extremamente talentosos, não só nas grandes empresas, como nas PME. Mas o mais importante foi a capacidade de resistir ao descontentamento dos que perderam poder e são naturalmente avessos à mudança.

Sempre esteve presente o objetivo de promover uma indústria nacional na área das energias limpas, o que em larga medida foi desaproveitado. Portugal teve todas as condições, mas mesmo todas, para ser o líder europeu no fabrico de baterias para veículos elétricos

Valeu a pena?

Tenho compreensível orgulho em que algumas das ideias que discutimos na altura tenham influenciado uma importante publicação académica da autoria de Acemoglu e Aghion intitulada Direção do Progresso Tecnológico e Ambiente, no qual provam de forma rigorosa que a adoção de novas tecnologias na área das energias limpas tem custos, mas produz efeitos endógenos positivos sobre a economia. Agora tal é claro, mas na altura não o era.

Como já referi, Rodrik, Acemoglu e Aghion animaram uma reunião pública em Lisboa em que todas estas ideias foram apresentadas e discutidas e o recém-galardoado com o Nobel sempre manteve interesse em acompanhar os progressos de Portugal nas energias renováveis, tendo tido com ele vários encontros. 

Nos dias a seguir à minha demissão do governo, em julho de 2009, Philippe Aghion foi dos primeiros com quem falei, tendo-me desafiado, com grande gentileza, a partilhar na universidade onde ensinava nos EUA a experiência que eu, entretanto, tinha acumulado. Na altura, ainda não tinha percebido que uma das riquezas do sistema universitário americano é recrutar professores que não se dedicam à carreira académica em exclusividade. 

Foram meus colegas na Universidade de Columbia Gordon Bajnai (ex-primeiro-ministro da Hungria) e Martin Wolf (editor do Financial Times) e atualmente é lá professora Hillary Clinton. Na Universidade de Yale, partilhei o gabinete com Ana Palacio (ex-ministra dos Negócios Estrangeiros do governo Aznar) e fui colega de Domingo Cavallo (ex-ministro da Economia da Argentina) e do general Stan McChrystal (ex-chefe das forças americanas no Afeganistão). Sob risco de ser mal interpretado, confesso que a cadeira mais procurada pelos alunos era a de liderança ministrada pelo general McChrystal.

Philippe Aghion teve uma forte influência em moldar a forma como vejo a evolução das sociedades e, além disso, sem o saber, influenciou decisivamente as minhas escolhas profissionais na década seguinte.

Acompanhei a transmissão em direto do anúncio dos galardoados com o Nobel de 2025. Fiquei tremendamente comovido e veio-me logo à cabeça a seguinte questão: valeu a pena?

Palavras-chave:

Apesar de as bicicletas já terem a sua versão elétrica, a maioria das pessoas ainda pedala sem a ajuda de um motor. E, nos dias seguintes ao passeio, as dores nas coxas e nos gémeos bem se fazem notar. Isto para os mais inexperientes, claro.

Com o avançar da idade, são muitos os que evitam acenar e andar com os braços destapados. A culpa é do “músculo do adeus”, o tríceps braquial localizado na parte posterior do braço, mais flácido a cada ano que passa. Ao contrário, quem trabalha na construção civil, na agricultura ou nas cargas e descargas exibe muitas vezes os braços musculados, efeito do imenso esforço físico diário.

Mas o que têm em comum todas estas situações? Estas pessoas precisam de reforçar a sua massa muscular, enviando ao músculo mais energia proveniente da creatina, um composto químico sintetizado pelo organismo a partir da arginina, da metionina e da glicina, três dos cerca de 20 tipos de aminoácidos produzidos naturalmente e que ajudam a formar as diversas proteínas no organismo.

Diferenças Sendo ideal para fornecer energia para atividades de alta intensidade e com várias repetições, a creatina não contribui muito para se correr os 42 quilómetros de uma maratona

O corpo humano usa três tipos de sistemas de energia: para as células da atividade cerebral, para as contrações musculares e para dar respostas imunológicas. Se a maioria da creatina se encontra nos músculos – ou não fosse a responsável por lhes levar energia –, há 5% que se fixam no cérebro. Este, embora represente apenas 2% da massa corporal, utiliza aproximadamente 20% do consumo de energia em repouso.

É no fígado, no pâncreas e nos rins que é produzida metade da creatina presente no organismo, cerca de um grama por dia; a restante para as funções básicas é conseguida através da alimentação. A viagem segue através da corrente sanguínea até ser retida pelos músculos. Uma parte da substância é excretada pela urina e cerca de 60% a 80% é armazenada pelo organismo.

Esta fonte rápida de combustível para os músculos, na verdade, o que faz é ajudar a regenerar o trifosfato de adenosina (ATP), uma molécula que as células usam para obter energia. De cada vez que o ATP perde fosfato (fósforo e oxigénio), a creatina é acionada e repõe o nível das moléculas de ATP. São recargas instantâneas que acontecem, repetidamente, milhões de vezes por segundo, em períodos de grande esforço físico.

O segredo pós-treino

Responsável por garantir aos músculos a energia necessária quando usados em grande esforço de atividade física, a creatina tomada como suplemento alimentar auxilia a construção de massa muscular, fornecendo mais força e mais resistência, diminui a fadiga e pode ser benéfica nalguns parâmetros da saúde mental.

Embora o seu uso esteja muito associado ao desporto de alto rendimento – desde que, na década de 1960, a ciência desportiva moderna demonstrou as primeiras ligações diretas entre dieta e desempenho no exercício –, a creatina tem um papel vital no cérebro. Interage com o ácido fosfórico para ajudar na produção de energia nas células vivas e influencia as principais vias inibitórias do cérebro que utilizam o neurotransmissor ácido gama-aminobutírico. Este atua como um freio para a atividade cerebral, promovendo o relaxamento, o sono e a concentração. Ao equilibrar a excitação do cérebro, ajuda a prevenir distúrbios como ansiedade, insónia e convulsões.

Além de melhorar o desempenho físico ou atlético, a creatina facilita a recuperação pós-treino e pode ajudar a prevenir alguns tipos de lesões musculares, dos tendões e dos ligamentos.

“Em determinados desportos e para auxiliar o treino desportivo e o aumento do rendimento – principalmente em atividades anaeróbias, aquelas de maior intensidade e com mais repetições –, a creatina facilita a recuperação desse tipo de exercício. Indiretamente, também melhora o desempenho. Se o atleta conseguir uma recuperação mais fácil, vai poder aumentar a intensidade e o volume do seu treino”, explica Luís Horta, médico especialista em Medicina Desportiva e Fisiatria.

“Hoje em dia, no planeamento de treino é tão importante o planeamento da carga como o da recuperação. A recuperação é uma palavra-chave no desporto”, frisa o atual coordenador do ensino e da investigação na Unidade Local de Saúde de São José e ex-presidente da Autoridade Antidopagem de Portugal. E questiona: “Onde é que está o limite da FIFA, por exemplo, ao organizar, como fez este ano, o Campeonato do Mundo de Clubes, em que houve muitos jogadores que praticamente não tiveram férias?”

Mas quem mais aciona os músculos no dia a dia e pode necessitar de uma dose extra de creatina, uma vez que a gerada de forma natural pelo organismo não é suficiente, e a ingerida nos alimentos, sobretudo na proteína animal da carne vermelha e do peixe, também não chega?

Os atletas em geral – dos amadores aos de alto rendimento e de elite –, pessoas que pratiquem exercício físico com regularidade, trabalhadores em profissões que requeiram muita força física, os mais velhos, grupo principal da sarcopenia (perda progressiva de massa muscular durante o processo de envelhecimento), e veganos e vegetarianos (pela falta de proteína animal).

Serão todos os desportos elegíveis para ser necessário tomar creatina? Ou existirão alguns mais específicos, como halterofilismo e musculação, desportos de combate, futebol, hóquei, remo, corridas de velocidade e saltos ou ciclismo de sprint?

A DOSE IDEAL

A fórmula certa de tomar creatina depende sempre do objetivo, no entanto, o protocolo desenvolvido para as modalidades de força é o mais aconselhado. Depois, é só misturar o pó com água, sumo ou outra bebida

• Na fase de carga     (loading fase)

Habitualmente, são 20 gramas por dia ou 0,3 gramas por quilo (peso da pessoa) por dia, divididos em quatro tomas de cinco gramas, durante uma semana (de cinco a sete dias).

• Na fase de manutenção

Varia entre três e cinco gramas, que correspondem aos 0,03 gramas por quilo e que pode ir até 0,1 grama por quilo do peso corporal. Deve ser tomada, de preferência, em horários próximos do treino.

“A utilização da creatina em desportos de longa duração é mais recente. Pensava-se que até poderia ser útil em todas as distâncias e em todos os tipos de desporto, embora hoje já se perceba que provavelmente não. Para atividades de longa duração parece ser mais eficaz para quem pratica atividade desportiva com desníveis, com inclinação do terreno, componente de força associada ao trail ou ao ciclismo com provas de montanha, por exemplo, ou para situações em que seja necessário sprintar no final da corrida”, esclarece Mónica Sousa, nutricionista e professora na Faculdade de Educação Física e Desporto da Universidade Lusófona e coordenadora do Departamento de Nutrição do Centro de Otimização Desportiva do Sporting Clube de Portugal.

Sendo ideal para fornecer energia para atividades de curta duração, de alta intensidade e com muitas repetições, como corrida de velocidade ou levantamento de peso, a creatina não contribui muito para a energia prolongada e de queima lenta, como a necessária para se correr os 42 quilómetros de uma maratona.

Vários ensaios clínicos e outros estudos têm comprovado que atletas que tomam suplementos de creatina podem gerar entre 5% e 15% mais força ou potência durante explosões curtas e repetidas de atividade, em comparação com pessoas que não tomam suplementos deste composto.

A creatina também se tem mostrado um bom auxiliar na construção muscular em pessoas que praticam treino de força regularmente. Numa análise com revisão de 35 ensaios clínicos realizada em 2022, envolvendo quase 1 200 adultos, os investigadores descobriram que quem tomou suplementos durante o treino de resistência aumentou a sua massa corporal magra (ou o peso corporal, exceto a gordura) numa média de mais de 900 gramas. Os ensaios envolveram diferentes dosagens em diferentes períodos, de uma semana a quatro meses.

Arenque, o mais rico

Uma vez que o corpo humano produz creatina, não existe recomendação para todas as pessoas fazerem suplementação, apesar de a presente nos alimentos também ser insuficiente. Sem dose extra, fica muito difícil alcançar a quantidade concentrada num suplemento, cerca de cinco gramas.

Seria preciso comer num dia um quilo de arenque, peixe gordo proveniente da Noruega (Atlântico Nordeste e Mar do Norte) com uma das maiores concentrações de creatina (na ordem de seis a dez gramas por quilo), de forma a obter a quantidade necessária para os tão badalados benefícios ergogénicos. Além de ser pouco viável ingerir 1,4 kg de carne ou de peixe para obter cerca de cinco gramas do composto, também sairia uma dieta muito calórica e deveras dispendiosa.

Está prestes a ser publicado um estudo, coordenado por Mónica Sousa, que tenta perceber qual é a prevalência de uso e os comportamentos relacionados com a toma de suplementação em atletas de elite portugueses. O estudo anterior, feito em 2013, contemplava também atletas de alto nível, neste, apenas atletas de elite.

Desta vez, o estudo observacional, financiado pela Agência Mundial Antidopagem, reuniu dados analisáveis de 328 atletas adultos de elite, de um total de 40 modalidades desportivas.

Entre os tipos de suplementos, 81% dos atletas responderam tomar creatina. “De acordo com a evidência científica atual, a creatina é um suplemento que pode ser usado de forma transversal em praticamente todas as modalidades desportivas, devido ao potencial de integração muito amplo do ponto de vista do desempenho físico e potencial desempenho cognitivo”, diz Mónica Sousa. “É dos suplementos mais testados do ponto de vista científico. Foi identificada como componente do músculo esquelético em 1832, começou a ser investigada para fins alimentares em 1912 e tornou-se um suplemento alimentar popular no início dos anos 1990. É por isso que o seu uso é muito robusto, porque existe muita evidência científica”, garante a professora e nutricionista.

“A indústria dos suplementos nutricionais é muito poderosa. Há muita coisa que se publicita que, na realidade, não corresponde à verdade, ou então ainda há falta de evidências científicas que comprovem esse efeito”, nota Luís Horta.

Se for para ajudar na recuperação muscular no pós-exercício, pode ser tomada com uma refeição com hidratos de carbono. Se não houver exercício físico, é preferível tomar fora de uma refeição principal

Mónica Sousa, nutricionista e professora na Faculdade de Educação Física e Desporto

Um medicamento, antes de ir para o mercado, tem de passar por uma série de ensaios clínicos. É um processo extremamente complexo e muito moroso, verificado pelo Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde. Os suplementos alimentares não passam pelos mesmos critérios.

Em Portugal, o organismo responsável pela comercialização dos suplementos alimentares é a Direção-Geral de Alimentação e Veterinária. “Quero chamar a atenção: seja a creatina ou qualquer outro suplemento alimentar, há muitas coisas que estão no rótulo que não correspondem à verdade, porque não há evidências científicas suficientes que o comprovem. Há muitos suplementos que dizem, por exemplo, que aumentam a massa muscular. Aumentam a massa muscular porque estão contaminados com esteroides anabolizantes, entre outras substâncias. É uma contaminação intencional. Se uma pessoa tomar um suplemento rico em aminoácidos e sentir que a massa muscular está a aumentar mais do que aquilo que o treino sozinho poderia proporcionar-lhe, claro que esse suplemento é vendido de uma forma mais agressiva”, exemplifica Luís Horta.

“Estar contaminado pressupõe que existe dentro da embalagem do suplemento, mas não está descrito no rótulo. Isto é um problema de saúde pública. Obviamente, é um problema para os atletas, porque além dos potenciais problemas de saúde associados ao uso de substâncias proibidas, se der positivo no teste antidopagem terão sanções desportivas pesadas. Os suplementos que recomendamos aos atletas têm certificados específicos de não contaminação. Mas, numa pessoa comum, estas substâncias também podem ter um impacto nefasto”, corrobora Mónica Sousa.

Cuidado com os rins e o fígado

Há um ano, outro estudo feito pela Associação Portuguesa de Suplementos Alimentares (APSA), a partir de mil inquéritos online respondidos por maiores de 18 anos, concluiu que há 43,9% de consumidores atuais de suplementos alimentares, 37% de ex-consumidores e 19,1% que nunca tomaram qualquer aditivo.

Os antioxidantes, vitaminas e minerais, e os suplementos para o cansaço e a fadiga são as categorias com maiores índices de experimentação e de consumo, sendo que cada agregado familiar gasta, em média, €45 por mês em suplementos alimentares.

“O aumento anual do consumo é três a quatro vezes superior nos últimos dez anos”, contabiliza Pedro Lôbo do Vale, presidente da APSA e médico especialista em Medicina Geral e Familiar. Em geral, as mulheres consomem mais categorias de suplementos alimentares do que os homens. E, tendencialmente, os suplementos para pele, unhas e cabelo são mais consumidos por elas, enquanto os suplementos para desportistas são mais consumidos por eles e por jovens. Os suplementos para o cansaço e a fadiga e os suplementos para os ossos e as articulações têm maior prevalência de consumo dos 40 anos em diante.

E chega? Uma vez que o corpo humano produz creatina, não existe recomendação para todas as pessoas fazerem suplementação, apesar de a presente nos alimentos ser insuficiente

Com 71 anos, Pedro Lôbo do Vale toma creatina por duas razões, e também recomenda aos seus pacientes: gosta de exercício físico e pratica-o duas vezes por semana e a memória já não é o que era aos 40.

“Normalmente, são cinco gramas por dia para um adulto de 60 quilos. Não há nenhum perigo de hiperdosagem desde que não se tome um pacote inteiro. Só é contraindicado para doentes com insuficiência renal”, alerta o médico.

Quando o rim está comprometido, não fazendo a sua função fisiológica de filtrar a urina como deve ser, aparecem duas substâncias, a creatinina (não confundir com creatina) e a ureia, com valores elevados, o que em última análise pode levar a alguns casos de hemodiálise ou mesmo de transplante. “Os piores nutrientes para a insuficiência renal são as proteínas, que devem ser tomadas em quantidades mais pequenas”, avisa Pedro Lôbo do Vale.

Apesar de a creatina ser inócua e quase sem efeitos secundários, se temos uma pessoa com uma patologia hepática, com a função do fígado comprometida, até que ponto é que estar a introduzir substâncias que, potencialmente, vão ter metabolização hepática é compatível?

“Em pessoas saudáveis não há evidências de que a toma de creatina cause alteração das funções hepática e renal. Por isso, potencialmente, tem vantagem em começar a tomar, mas os efeitos na massa muscular são potenciados se a creatina for conjugada com treino de força”, sublinha a nutricionista. “É também interessante perceber que 20% a 30% das pessoas são não respondedores à suplementação com creatina, ou seja, as concentrações celulares de creatina não aumentam após a suplementação. Portanto, é possível iniciar a toma de creatina e não sentir nenhuma alteração. Nesta situação, possivelmente a pessoa é não respondedora à suplementação”, acrescenta.

Ao tomar creatina é muito importante fazer exercício físico com um esquema regular e ter metas de exercício. Se tomar e não fizer nada, o resultado não aparece

Pedro Lôbo do Vale, médico especialista em Medicina Geral e Familiar

“Ao tomar creatina é muito importante fazer exercício físico com um esquema regular e ter metas de exercício. Se tomar e não fizer nada, o resultado não aparece”, corrobora Pedro Lôbo do Vale. A creatina não vai funcionar como a lata de espinafres no marinheiro musculado Popeye, personagem criada por E. C. Segar em 1929.

Tal como o magnésio ou o ferro, todos os minerais existem em diversos tipos. O mesmo se passa com a creatina sintética, disponível em diferentes formulações. No entanto, os especialistas concordam que a creatina monohidratada ou monohidrato é a mais estudada, com as evidências mais fortes de eficácia.

“Em termos de investigação, o suplemento mais estudado é a creatina monohidratada. Os trabalhos que existem comparam novas formulações com a monohidratada e não se têm demonstrado melhores. Com a vantagem também de ser a mais barata. Existe sempre a tentativa de encontrar substâncias novas que tenham mais capacidade de absorção e de ser integradas dentro da célula”, explica Mónica Sousa.

Com o objetivo de melhorar a qualidade do músculo, a toma diária de uma dose extra de creatina poderá obedecer a uma fórmula (ver caixa A dose ideal), em que na equação entra o peso corporal.

Para Mónica Sousa, a toma deste suplemento está sempre relacionada com o objetivo e a organização do dia. “Se for para ajudar na recuperação muscular no pós-exercício, pode ser tomada com uma refeição com hidratos de carbono. Neste caso, a creatina aumenta a eficácia da absorção dos hidratos de carbono. Se não houver exercício físico, é preferível tomar fora de uma refeição principal, que deve conter carne ou peixe, para não haver potencial saturação do sistema e poder comprometer a absorção.”

Só para adultos

Richard Kreider, professor e diretor do Laboratório de Exercício e Nutrição Desportiva da Universidade Texas A&M investiga há mais de três décadas os efeitos da creatina. “Quando o corpo está em stresse, como durante exercícios ou sob condições metabólicas como algumas doenças, o fosfato de creatina é necessário para manter a energia na célula e, portanto, tem muitos benefícios de proteção e saúde, além dos efeitos no desempenho dos exercícios”, refere Richard Kreider num artigo publicado no site da universidade.

Numa revisão alargada, publicada em fevereiro no Journal of the International Society of Sports Nutrition, Richard Kreider e os colegas analisaram 685 ensaios clínicos sobre suplementação de creatina para avaliar a sua segurança e a frequência de efeitos secundários relatados. A análise mostrou que não houve diferenças significativas na taxa de efeitos colaterais entre os participantes que tomaram placebo e os que tomaram o composto.

O especialista relativiza preocupações como o inchaço ou cólicas, explicando que essas alegações não têm sustentação, e estudos mostraram que a creatina pode realmente prevenir cólicas porque ajuda o corpo a reter mais líquido. Ou será que engorda? “Falso. Hidrata as células musculares, o que é positivo. Nunca nos fará ganhar gordura, apenas músculo, e a retenção é intracelular, não subcutânea.”

A creatina também é importante durante o processo de envelhecimento, sendo benéfica para os mais velhos que perdem massa muscular (sarcopenia), e consequentemente densidade óssea (osteoporose), autonomia e mobilidade, e diminuem a função cognitiva mais depressa, mas também nos adolescentes, em que uma alimentação pobre em creatina está associada a um crescimento mais lento, com menos massa muscular e mais gordura corporal.

Envelhecimento A creatina é benéfica para os mais velhos, que perdem massa muscular e, consequentemente, densidade óssea

Na população atlética, o Comité Olímpico Internacional não é a favor do uso de substâncias ergogénicas (e a creatina é uma delas) antes da idade adulta, opinião partilhada por várias organizações médicas, incluindo a Academia Americana de Pediatria, que não recomenda o uso de creatina antes dos 18 anos. “Estamos a estudar com os nossos dados uma eventual ligação entre o uso de suplementação e as atitudes pró-dopagem, pois sabemos que um atleta que toma suplementos tem duas vezes e meia mais riscos de se dopar. Estas atitudes pró-dopagem estão também presentes em adolescentes que tomam substâncias ergogénicas”, alerta Mónica Sousa.

Recentemente, Kyle Ganson, investigador da Universidade de Toronto, no Canadá, estudou um grupo de 912 adolescentes e jovens adultos, tendo descoberto que aqueles que usavam creatina, especialmente homens e rapazes, eram mais propensos a desenvolver dismorfia muscular (preocupação excessiva com o aspeto dos músculos). “Não tem um efeito causal. Só porque se toma creatina, não se vai desenvolver um problema de saúde mental”, avisa Kyle Ganson, mas pode ser um sinal de que um jovem está demasiado focado na sua imagem corporal.

Benefícios cerebrais

Nos últimos 20 anos, diversos estudos começaram a revelar que a toma de suplementação de creatina auxilia as funções cognitivas. Afinal, participa da neogénese (processo de formação de novos neurónios no cérebro), tem um poderoso efeito antioxidante (o que melhora a memória) e ajuda a prevenir doenças neurodegenerativas. Também são observadas melhorias em patologias que envolvem fadiga crónica e distúrbios metabólicos, como o controlo do açúcar no sangue em diabéticos do tipo 2.

É necessário continuar a investigar como pode a creatina melhorar a saúde mental, se pode aliviar os sintomas de depressão ao fornecer energia cerebral, melhorar a memória, a atenção e a velocidade de processamento de informações, além de promover a produção de dopamina e serotonina. No fundo, a creatina pode auxiliar diversas regiões cerebrais em termos de aporte energético e neuroproteção.

David Puder, psiquiatra na Flórida e apresentador do podcast Psychiatry & Psychotherapy, vê a creatina como uma ferramenta promissora no tratamento da depressão, não como uma solução isolada, mas podendo fazer parte de uma abordagem mais ampla, liderada por médicos, juntamente com terapia e otimização da dieta, exercício físico e sono. “Os estudos, até ao momento, mostraram que a creatina parece aumentar um pouco a velocidade de recuperação [da depressão]. Não muito, mas uma melhoria mensurável”, diz David Puder, principalmente em ensaios clínicos que associam a creatina a medicamentos como Lexapro (antidepressivo) ou terapia cognitivo-comportamental.

Outra hipótese, segundo o psiquiatra, é os efeitos da creatina no aumento da atividade física também contribuírem para a melhoria da saúde mental. “O exercício ajuda na capacidade de superar a depressão. Treinos mais intensos podem permitir uma melhora na depressão, além do que a creatina faz no cérebro.”

No entanto, embora a substância possa ajudar a aliviar a fadiga mental associada à depressão, em pessoas com transtorno bipolar existe o risco de contribuir para a hipomania.

No ano passado, uma análise de 16 ensaios clínicos envolvendo cerca de 500 adultos, alguns saudáveis e outros com comorbilidades, como doença de Parkinson ou esquizofrenia, verificou que a toma de várias doses de suplementos de creatina melhorou a memória e o tempo de atenção das pessoas, mas não a sua função cerebral geral, incluindo o controlo de impulsos, o planeamento e o tempo de resposta. Apesar de os dados serem limitados, sugerem que, pelo menos, dez gramas por dia pode ser um bom ponto de partida. Continua a ser imperioso avaliar os efeitos da creatina em pessoas com lesões cerebrais traumáticas (como concussões), condições neuromusculares (como distrofia muscular) ou insuficiência cardíaca.

As pessoas mais velhas requerem energia adicional para completar tarefas cognitivas, que pode ser fornecida pela administração de creatina. Mas isso não neutraliza o declínio cognitivo devido ao envelhecimento

Já em 2018, os efeitos da suplementação de creatina na função cognitiva de indivíduos saudáveis tinham sido analisados numa revisão sistemática de ensaios clínicos randomizados. Seis estudos, contemplando 281 pessoas, no Reino Unido, no Japão, na Austrália e nos EUA, demonstraram existir evidências de que a memória de curto prazo e a inteligência ou o raciocínio podem ser melhorados pela administração oral de creatina.

No que concerne à memória de longo prazo, à memória espacial, à atenção, à função executiva, à inibição de resposta, à fluência verbal, ao tempo de reação e à fadiga mental, os resultados foram inconclusivos. O desempenho em tarefas cognitivas permaneceu inalterado em indivíduos jovens, enquanto os vegetarianos responderam melhor do que os carnívoros em tarefas de memória. Noutros domínios cognitivos não foram observadas diferenças.

As pessoas mais velhas requerem energia adicional para completar tarefas cognitivas, em comparação com as mais jovens, que pode ser fornecida pela administração de creatina. Contudo, essa mudança não neutraliza o declínio cognitivo devido ao envelhecimento natural e saudável.

Ali Gordjinejad, do centro de pesquisas Forschungszentrum Jülich, na Alemanha, analisou uma série de estudos que relacionavam a suplementação de creatina com a memória de trabalho (cálculos matemáticos, compreensão de instruções e memorização de números de telefone, por exemplo) e de curto prazo em pessoas privadas de sono, constatando que seria preciso tomar creatina durante semanas ou meses para ter eventuais benefícios. “Considerava-se que a absorção de células de creatina pelo corpo é marginal. Por isso, não funcionaria para apenas uma noite de privação do sono”, disse o cientista à BBC.

Seguiu-se um novo estudo em que Ali Gordjinejad quis testar os efeitos de uma dose de creatina sobre o desempenho cognitivo após uma única noite de privação de sono. Para isso, recrutou 15 pessoas, em que umas tomaram o suplemento (35 gramas, dez vezes a dose diária recomendada – NÃO experimentar esta dose em casa) e outras um placebo, às seis da tarde. A cada duas horas e meia, até às nove da manhã, as funções cognitivas foram testadas, de tempos de reação às memórias de curto prazo, concluindo que a velocidade de processamento era muito maior no grupo que tomou o composto. Apesar de ser uma amostra pequena, Ali Gordjinejad defende que a creatina poderá ajudar a superar os efeitos negativos da falta de sono, mas apenas no curto prazo, até dormir de novo.

No artigo de revisão intitulado Suplementação de Creatina: Provavelmente Mais é Melhor para a Bioenergética, a Saúde e a Função Cerebral, Nicholas Fabiano, psiquiatra na Universidade de Ottawa, no Canadá, argumenta que dez gramas ou mais de creatina por dia pode ser a dose ideal para o desempenho cognitivo e a saúde mental.

Haverá benefícios da creatina em diversas condições, como privação de sono, lesão cerebral traumática, doença de Alzheimer e depressão? “Especula-se que doses mais elevadas, em comparação com as normalmente utilizadas para melhorias na musculatura esquelética, possam ser necessárias para produzir aumentos consistentes e/ou significativos nos níveis de creatina cerebral em diversas populações”, escreve.

Também Terry McMorris, professor emérito da Universidade de Chichester, em Inglaterra, realizou uma revisão de 15 estudos, em 2024, e concluiu que as pesquisas até ao momento não comprovam a teoria de que os suplementos de creatina podem melhorar a função cognitiva.

No meio destas conclusões contraditórias, o suplemento da moda ainda é um verdadeiro work in progress.

NÚMEROS

Até dois gramas
Quantidade diária de creatina necessária ao organismo

95%
Creatina presente nos músculos; os restantes 5% fixam-se no cérebro

60% a 80%
Creatina armazenada pelo organismo, a restante é excretada na urina

5% a 15%
Percentagem de mais força ou potência conseguida durante explosões curtas e repetidas de uma atividade física em atletas que tomam suplementos de creatina

81%
Atletas de elite portugueses que tomam creatina, segundo o estudo observacional financiado pela Agência Mundial Antidopagem que reuniu dados analisáveis de 328 atletas

43,9%
Consumidores adultos que tomam suplementos alimentares, segundo a Associação Portuguesa de Suplementos Alimentares (2024)

€45
Valor gasto, em média, por mês, por cada agregado familiar em suplementos alimentares, segundo
a Associação Portuguesa de Suplementos Alimentares (2024)

VÁRIOS TIPOS, UM OBJETIVO

Em pó, comprimidos, gomas ou cápsulas, a creatina monohidratada é a mais estudada, com as evidências científicas mais fortes de eficácia. Além disso, é também mais barata

Monohidratada Pó branco granulado sem sabor, apesar de já existirem com sabores adicionados. A forma monohidratada refere-se à composição química, em que uma molécula de água está associada a cada molécula de creatina.

Micronizada As partículas são 20 vezes menores do que as da creatina monohidratada, podendo ser mais solúvel e mais absorvível pelo organismo.

Etil éster Versão esterificada industrialmente, resultante da ação de um ácido orgânico sobre um álcool, de forma a ser mais bem absorvida pelo corpo.

Hidroclorídrica ou HCLLigação a uma molécula de ácido clorídrico, com maior taxa de absorção, mas sem comprovação científica.

Alcalina Tem o pH mais elevado (alcalino) em comparação com a creatina monohidratada (mais pura); resiste melhor ao ambiente ácido do estômago. Ao inibir a formação de creatinina, reduz o risco de problemas renais em pessoas saudáveis.

Malato É constituída por três moléculas de creatina e ácido málico (ácido orgânico natural responsável pelo sabor azedo e adstringente). Produz mais efeitos energéticos.

Citrato Mais solúvel em água devido à combinação de creatina com citrato (sal ou éster do ácido cítrico). Boa taxa de absorção, mas sem comprovação científica.

Fosfato ou fosfocreatina Combina creatina e fósforo numa proporção de 62-38. Pode auxiliar no ganho de massa muscular magra.

Palavras-chave:

A jornada de negociações de ontem na COP30, em Belém do Pará, expôs uma divisão profunda entre países que exigem uma transição real para fora dos combustíveis fósseis e aqueles que continuam a bloqueá-la. A Colômbia liderou o momento mais inesperado do dia ao anunciar, logo pela manhã, que não aceitaria o rumo das negociações, organizando uma conferência de imprensa onde convocou uma conferência internacional alternativa para abril de 2026.

Num gesto que surpreendeu delegações e observadores, a Colômbia, apoiada por cerca de 80 países, declarou que o documento final da COP não continha o essencial para enfrentar a crise climática. A ministra do Ambiente, Susana Muhamad, convocou uma nova cimeira para 28 e 29 de abril, na cidade de Santa Marta, dedicada exclusivamente a uma “transição justa” e a um compromisso concreto de saída dos combustíveis fósseis.

O anúncio colocou pressão imediata sobre a presidência brasileira da COP e marcou o tom de um dia marcado por rutura. Pouco depois, os negociadores divulgaram um novo rascunho do documento final de onde tinham desaparecido expressões como “fim dos combustíveis fósseis”, “eliminação progressiva” ou até “redução”. Segundo várias fontes presentes, a supressão foi motivada por pressão da Arábia Saudita, apoiada pela Índia e outros países alinhados com os interesses da China. A reação foi imediata: cerca de 30 países recusaram assinar o texto e abandonaram a mesa de negociações de forma simbólica.

O mesmo documento mantinha outra posição controversa: a União Europeia não pretende aumentar qualquer financiamento adicional para adaptação ou restauro ecológico, apesar das exigências de países vulneráveis. À medida que o descontentamento crescia, as negociações foram retomadas num ritmo frenético de shuttle diplomacy, com mediadores a correr entre salas para tentar recompor o processo.

Em resumo, dois impasses permanecem claros: a Arábia Saudita recusa qualquer referência a petróleo ou combustíveis fósseis no texto final e a União Europeia rejeita novos compromissos financeiros para adaptação, mitigação ou perdas e danos. Ambas as posições confrontam diretamente o bloco liderado pela Colômbia, que exige um texto que inclua a eliminação dos combustíveis fósseis e um reforço substancial do financiamento climático.

Ao início da manhã de hoje, já circulava um novo rascunho do documento final da COP30. O futuro do acordo permanece incerto — mas uma coisa está clara: a unidade que muitos esperavam para esta conferência está longe de se concretizar.

Imagens: Abel Rodrigues, Pedro Moura e Sílvia Moutinho | Direção Editorial: Joana Guerra Tadeu | Produção em parceria com Don’t Skip Humanity.

Em comunicado, a Parpública anunciou este sábado, que recebeu “três declarações de manifestação de interesse” pela privatização da TAP, cuja entrega de candidaturas encerrou às 16:59.

A empresa estatal responsável pela gestão das participações do Estado não indica, no comunicado quais as empresas interessadas, mas até agora estava confirmado o interesse formal da Air France-KLM, Lufthansa e International Airlines Group (IAG) – dono da British Airways e da Iberia.

No âmbito do processo de venda, a Parpública “tem agora 20 dias para elaborar, de modo fundamentado, um relatório descritivo dos interessados que submeteram as respetivas declarações de manifestação de interesse, avaliando o seu cumprimento dos requisitos de participação”, acrescenta.

Encerrado o prazo da entrega de manifestações de interesse, segue-se a análise das candidaturas pela Parpública até 12 de dezembro, e a preparação para as propostas não vinculativas neste processo que prevê a alienação de até 44,9% do capital da TAP, mantendo 5% reservados aos trabalhadores.

Em julho, o Governo estimava que o processo a privatização da TAP — que inclui também a Portugália, a Unidade de Cuidados de Saúde TAP, a Cateringpor e a SPdH (ex-Groundforce) — demorasse cerca de um ano, embora o calendário final dependa de autorizações regulatórias.

A Parpública irá elaborar um relatório que descreva os interessados e avalie se cumprem os requisitos definidos no caderno de encargos.

Entre esses critérios estão receitas superiores a 5.000 milhões de euros em pelo menos um dos últimos três anos, experiência comprovada no setor da aviação, capacidade financeira e idoneidade.

Após esta avaliação, os candidatos aprovados serão convidados a apresentar propostas não vinculativas, num prazo máximo de 90 dias.

Estas propostas deverão detalhar o preço de aquisição das ações, a forma de obtenção dos meios financeiros necessários, bem como planos de investimento no reforço da frota, manutenção e engenharia, aposta em combustíveis sustentáveis, respeito pelos compromissos laborais e visão estratégica quanto a uma eventual ampliação da participação acionista.

Concluída a fase das propostas não vinculativas, a Parpública terá 30 dias para elaborar novo relatório para submeter ao Governo.

Caso sejam solicitados esclarecimentos aos proponentes, o prazo será suspenso até à resposta ou ao término do prazo fixado.

O Conselho de Ministros selecionará, com base no relatório da Parpública, as candidaturas consideradas mais adequadas e convidará os proponentes escolhidos a apresentar propostas vinculativas na terceira etapa do processo, com um prazo máximo de 90 dias.

A terceira etapa do processo compreende a realização de diligências informativas e a apresentação de propostas vinculativas no prazo máximo de 90 dias, contados desde o envio do convite.

O Conselho de Ministros pode, no entanto, determinar na carta convite um prazo para apresentação de propostas vinculativas inferior a 90 dias.

Após a apresentação das propostas vinculativas, a Parpública terá 30 dias para elaborar um relatório final, prazo que pode ser prorrogado pelo Conselho de Ministros mediante pedido fundamentado.

Com base neste documento, será selecionada a melhor proposta ou poderá ser iniciada uma fase de negociações para apresentação de propostas vinculativas melhoradas e finais.

Concluída a seleção, o Conselho de Ministros aprovará as minutas finais dos contratos de venda, que deverão ser assinadas pelo comprador no prazo de 15 dias.

De seguida, o Estado convocará uma assembleia-geral da TAP para aprovação de deliberações necessárias à concretização da privatização e à implementação do plano industrial e estratégico acordado.

Caso a tranche de 5% destinada aos trabalhadores não seja totalmente subscrita, o futuro comprador terá direito de preferência.

Bruce Springsteen

The River

Em 1980, já depois de ter sido batizado como “o novo Dylan”, mas longe do sucesso que viria a conhecer, o rapaz de New Jersey atira-se mais uma vez às suas memórias, aos fantasmas da sua cidade e da sua família. O resultado foi um disco duplo, com histórias da América que, tal como o tom do disco, oscila entre o dançante e o trágico, mas sempre com algo válido para se ouvir. Two Hearts, Out in the Street, Cadillac Ranch, Crush on You e Hungry Heart ficam no ouvido, convidam a um passo de dança, mas nem por isso lhes faltam histórias de famílias, de corações partidos, de vida.

E depois ainda há a história da Mary, na realidade, irmã do cunhado de Springsteen, que todos os que ouviram The River, de ouvidos desentupidos e coração aberto, conhecem de cor. Não porque a música, que haveria de batizar o disco, seja a melhor de Springsteen. Mas é uma das primeiras em que se nota o génio absurdo que o patrão tem para contar histórias que todos conhecemos, mas que na maior parte das vezes não temos como contar. O Boss sempre teve – as palavras para as contar, a voz para as cantar no tom certo e o ouvido necessário para as adornar, com uma chorosa harmónica neste caso, só até onde é preciso. Filipe Garcia

Portishead

Dummy

O trip-hop surgiu na Inglaterra dos anos 90 como um cruzamento entre o mundo analógico do rock e a batida digital do hip-hop, mas debaixo de uma capa lenta, negra e narcótica. Massive Attack e Portishead são talvez as bandas que melhor ilustram o movimento, e Dummy, a estreia destes últimos, é uma obra-prima. Batida eletrónica mas lenta, lentíssima, samples e uma produção de excelência, e por cima de tudo a voz inigualável de Beth Gibbons, a relatar-nos todas as lamúrias e incertezas da vida.

Dummy é lúgubre mas sensual, como o decote lânguido de uma viúva chorosa. A voz de Gibbons encostada ao microfone é quase obscena. Ouvimos tudo: a respiração do seu corpo, o arfar da sua alma. Parece que afinal é um mito antropológico os esquimós terem 70 nomes diferentes para “branco”. Mas é a mais absoluta das verdades que encontramos 70 desolações diferentes na voz de Beth. Ricardo Romano

Curtis Mayfield

Superfly

Em 1970, depois de deixar para trás a sua excelente banda, os Impressions, Curtis Mayfield reinventa-se à medida que a própria soul está a mudar. O fuzz da guitarra, o pedal wah-wah e as congas à Santana são as suas novas – e garridas – cores.

Super Fly, de 1972, é o terceiro disco a solo de Mayfield e grita “primeira metade dos anos 70!” por todos os poros. O falsete aveludado, as percussões latinas, as orquestrações luxuriantes, o ansioso wah-wah de Junkie Chase, tudo é a polaroide de uma época precisa, feita de camisolas de gola alta, bigodes míticos, genéricos com letras estilizadas a amarelo, perseguições de carros, miúdas giras tipo revista Gina, tudo captado num rolo fotográfico – hoje, baço – comprado no Pão de Açúcar de Alcântara. Quantos discos definem um tempo? Uma carrada deles. Quantos o espelham com este nível de classe? Contam-se pelos dedos de uma mão… Ricardo Romano

Miles Davis

Kind of Blue

É provavelmente o disco de jazz mais vendido da História e certamente o mais consensual. Em 1959, Miles Davis junta o seu trompete e a sua visão musical a um grupo de craques escolhidos a dedo: John Coltrane no saxofone tenor, Bill Evans no piano, Cannonball Adderley no saxofone-alto, Paul Chambers no contrabaixo e Jimmy Cobb na bateria. 

Este sexteto permite juntar num só corpo sensibilidades muito diferentes, dando a Miles a possibilidade de explorar todo o cambiante de contrastes. Onde Miles e Evans são contidos e minimais, Coltrane e Adderley são palavrosos e extravagantes. Da mesma maneira, a cor quente e exuberante do saxofone de Adderley dá o contrapeso perfeito ao negrume de quase todo o disco.

Só músicos desta estirpe estariam à altura do desafio proposto por Miles: gravar Kind of Blue com a máxima espontaneidade possível. Desde os tempos de New Orleans que a improvisação faz parte da própria essência do jazz. Porém, Miles levou essa frescura um pouco mais longe, atirando os seus colegas aos leões antes de qualquer ensaio, com nada mais do que um esboço muito vago do esqueleto dos temas.

O resultado é um álbum extremamente melódico, ousado musicalmente mas nada difícil, apelando facilmente a todo o tipo de públicos. Ricardo Romano

Joni Mitchell

Blue

Quando Joni Mitchell mostrou as suas canções a Kris Kristofferson, este desabafou: “Caramba, Joni, guarda qualquer coisa para ti.” Blue não é bem um disco, é mais um aquário, os seus sentimentos como peixes azuis (verdes, amarelos) nadando à vista de todos. Apenas uma parede de vidro finíssima separa o mundo interior de Mitchell dos nossos ávidos olhos (ouvidos, pele). As suas bonitas melodias quase não têm roupa por cima: uma diáfana guitarra, um límpido piano, o esquisitíssimo saltério dos Apalaches.

Blue não é bem música, é mais pintura, leve como uma aguarela, translúcida como um vitral. Mas Joni não pinta apenas, cria também as suas próprias tintas, inventando novas afinações de guitarra, forjando os seus próprios acordes (se a guitarra não existisse, Joni inventá-la-ia, pregando seis atacadores à sua alma).

O tom é íntimo, confessional, talvez pessimista. Estamos em 1971, são os ares do tempo. Se no disco anterior Joni cantava o florido Woodstock, agora, depois do horror pós-Manson-Altamont, é tempo de fazer o luto pelo lindo sonho. Por isso, em California, Mitchell desabafa: “Sentado num banco de jardim em Paris / lendo as notícias / não dão uma chance à paz / era só um sonho nosso.” Blue é o dia seguinte, quando a ressaca vem, e um fel amarguíssimo sobe à boca. Ricardo Romano

José Afonso

Cantigas do Maio

A primavera marcelista foi, na verdade, bastante invernosa quanto à repressão. Que o diga Zeca Afonso a 4 de outubro de 1971, preso pela polícia política quando queria apanhar o avião para França. Lá acabam por o libertar, mas quando ruma a Paris para gravar o Cantigas do Maio o seu estado de espírito está bastante esfrangalhado. Mal sabia ele que estava prestes a gravar a sua obra-prima.

Exilados em França, à sua espera, estão José Mário Branco e Francisco Fanhais. Sendo Zé Mário o produtor, arregimenta vários músicos franceses para a gravação, enriquecendo a paleta de timbres com uma flauta, um trompete, um baixo elétrico e uma catrefada de percussões exóticas.

Seguem então para uma quinta perto de Paris, em Hérouville, instalando-se num castelo transformado num dos melhores estúdios de gravação da Europa, os Strawberry Studios (os Pink Floyd e Elton John gravaram lá!). Os discos anteriores do Zeca não tiveram propriamente um produtor, tudo era feito com uma cândida espontaneidade. Ora não é assim que José Mário trabalha, meticuloso no planeamento do mais ínfimo detalhe. Zeca é o seu mestre, pelo que sente o peso da responsabilidade, como se tivesse de lapidar diamantes em bruto, confessará mais tarde. Estará à altura do desafio, com uma direção musical contida mas sofisticada, de um bom gosto exemplar, que marca um antes e um depois na produção de música portuguesa.

Este disco é a casa de temas como Maio, Maduro Maio, Coro da Primavera, Cantar Alentejano ou a senha antes de o ser, Grândola Vila Morena, um tema simbolicamente tão poderoso que é fácil esquecermo-nos das suas virtudes puramente estéticas. Numa outra madrugada, Zeca, Fanhais, Zé Mário e Bóris levam os cabos de gravação para fora do estúdio, e, abraçados à moda do cante alentejano, arrastam os pés na gravilha, formando assim o batimento cardíaco do hino Grândola. Soluções engenhosas as encontradas pelos magos Zeca e Zé Mário.

Um clássico e provavelmente o ponto mais alto de uma discografia cheia de grandes trabalhos.

Já há muito que José Afonso procurava reinventar a música tradicional portuguesa. Em Cantigas do Maio, Zeca atinge o auge poético do seu ambicioso projeto. Ricardo Romano

Beach Boys

Pet Sounds

Pet Sounds é a melhor resposta do outro lado do Atlântico ao fenómeno Beatles, que arrasava os anos 60. Na altura o quarteto de Liverpool tinha lançado Revolver, mais outro marco na história musical, sendo a partir daí que se dá uma mítica competição entre Brian Wilson e Paul McCartney, que leva ao aparecimento de álbuns como Pet Sounds, Smile (só editado em 2004 por Brian Wilson) por parte dos Beach Boys e Sgt. Pepper’s (1967) por parte dos Beatles.

Aqui vemos os Beach Boys no seu máximo. Os habituais coros e as vozes bem trabalhadas são misturados com uma panóplia de instrumentos e arranjos tão diversificados que impossibilitavam que discos como estes fossem tocados ao vivo. Estávamos realmente em tempos diferentes, em que tudo se fazia pela originalidade.

Há qualquer coisa que nos Beach Boys nos faz sempre sorrir e essa é uma das grandes características e qualidades das suas músicas, God Only Knows, Wouldn’t It Be Nice, Sloop John B, I’m Waiting For The Day e Here Today são exemplos disso.

Pet Sounds, com todo o seu sentido melódico, a inventividade de composição e arranjos e a profunda honestidade nas letras é um dos melhores álbuns dos anos 60 e um dos melhores de sempre da música pop/rock. Frederico Batista

Serge Gainsbourg

Histoire de Melody Nelson

É um disco conceptual que se ouve como se não o fosse. Ode ao amor proibido entre uma jovem de 15 anos e o seu encontro iniciático com um homem mais velho que com ela se fascina, o disco tem apenas sete faixas e pouco mais de meia hora de duração. Tal como o posterior L’Homme à Tête de Chou (1976) – também ele conceptual –, as melodias vêm e vão, encontram-se mais tarde noutras faixas, completam-se. No fim, ficamos com o documento de um génio na mais absoluta posse de todas as suas faculdades: rock, ié-ié, jazz, clássico, e um sentido incrivelmente sensual nos arranjos e na composição, tudo com as letras, inigualáveis, do monstro Gainsbourg. Ele que, até ao fim da sua vida, fez discos de todos os géneros, tem em Histoire de Melody Nelson a súmula de todo o seu trabalho. Tirando o reggae, que explorou em vários discos mais tarde, tudo o que alguma vez fez tem lugar neste disco, de uma forma absolutamente coerente. Tiago Freire

Milton Nascimento e Lô Borges

Clube da Esquina

Há projetos que constituem autênticos “antes e depois”, tamanha é a revolução que provocam. O LP Clube da Esquina pode ser considerado um exemplo certo desse mesmo fenómeno. Clube da Esquina extravasa as fronteiras musicais brasileiras: hoje, 53 anos depois, é aclamado por toda a crítica como um dos álbuns mais importantes de todo o universo musical – e não apenas do brasileiro.

Apesar da sua fidelidade à cultura musical brasileira, Clube da Esquina é um álbum que pertence ao mundo; é um epicentro de criatividade para onde convergem diversas linhas de influência, todas elas diferentes entre si – no álbum encontramos correntes de jazz, de rock (progressivo e psicadélico), de música latina e também da já referida música popular brasileira, entre tantas outras, sob o comando de Milton Nascimento e Lô Borges, este último falecido muito recentemente. João Salazar Braga

Pink Floyd

Animals 

A escolha mais óbvia seria o fabuloso Dark Side of the Moon, mas com os Pink Floyd desses anos há muito por onde escolher.

Em 1977, em Inglaterra, havia um novo patrão nas ruas: o punk. Os Pink Floyd, que desde o início haviam sido vistos como vanguardistas, eram agora considerados velhos. Nas ruas, Johnny Rotten desfilava com uma muito adequada t-shirt, agora famosa, com a simples frase “I hate Pink Floyd”. O punk cultivava a urgência e não o planeamento e a falta de destreza técnica era uma medalha. Neste novo mundo de 1977, qual foi a resposta da banda de Waters e Gilmour? Fazer um disco agressivo, violento, de protesto social… mas à sua maneira.

O conceito-base já estava na cabeça de Waters havia alguns anos: pegar na distopia orwelliana de Animal Farm e adaptá-la à Inglaterra de então. Nasce assim um mundo governado por porcos, com cães como o exército e a polícia que ajudavam a controlar as ovelhas, as massas.

O resultado é um excelente disco rock, enérgico mas trabalhado e exploratório, fundindo na perfeição alguns dos elementos que fizeram dos Pink Floyd incontornáveis: a ousadia e a ambição musical, o lado acústico e o lado elétrico, uma excelente produção e uma visão conceptual lírica que não desperdiça palavras. Tiago Freire

The Velvet Underground & Nico

The Velvet Underground & Nico

Editado no ano de 1967, The Velvet Underground & Nico, vulgarmente conhecido como o “álbum da banana” (referindo-se à pintura da capa feita por Andy Warhol, manager do grupo na altura), é um disco à frente do seu tempo. Foram poucas as bandas que exploraram territórios tão diferentes dos da época em que viviam. No final dos anos 60, com o psicadelismo no seu auge e o crescente aumento da experimentação no rock, as inovações dos Velvet – energia do rock misturada com experimentações sónicas e melodias delicodoces decadentes – eram, ainda assim, estranhas ao ouvido comum.

Este álbum expõe o lado negro da década de 60 ou, pelo menos, um lado alternativo. As letras cantam uma Nova Iorque desencantada e decadente, onde as drogas (Heroin, I’m Waiting for the Man, Run Run Run), a prostituição (Femme Fatale, There She Goes Again), as experiências sadomasoquistas (Venus in Furs) e filosofias niilistas de desejo e morte estão a anos-luz do flower power tão celebrado da época. É incontornável a influência do disco nas décadas seguintes – o seu som foi determinante para o aparecimento de movimentos como o new wave, o punk, o grunge e de muitos outros estilos musicais alternativos.

Diz-se que, aquando da sua edição, pouca gente comprou este disco, mas todos os que o fizeram começaram uma banda. Rita Nabais

Fausto

Por Este Rio Acima

Aquele que nos parece agora um tema óbvio não o era necessariamente nessa altura, no início dos anos 80, com toda a reação anticolonial do pós-25 de Abril. Um homem de esquerda, companheiro de Zeca e de tantos outros, teria de ter muito cuidado, ou muita inteligência, ao narrar a maior saga coletiva do povo português. Pegando na Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, Fausto encontrara o fio condutor para falar dos Descobrimentos, acompanhando as aventuras e desventuras do cronista para nos levar numa viagem de ida e volta ao Oriente.

E o que nos dá este disco? Tão-só a mais ambiciosa obra da música portuguesa, e uma que não fica aquém dos altos objetivos traçados para si mesma.

Este disco é um verdadeiro caldeirão de estilos e de instrumentos, servido por uma extensa equipa de perto de 40 músicos, todos eles mestres da sua arte, desde o magnífico coro feminino aos tocadores de triângulo ou caixas de ritmos populares. O resultado é um delírio, uma verdadeira epopeia musical e lírica, que mais ninguém, na verdade, conseguiu atingir na música portuguesa.

Tanto tempo depois, Por Este Rio Acima continua o que sempre foi, uma obra absolutamente incrível de um músico genial, no seu topo de forma. O retrato de um Portugal que é feito de todas estas coisas: pobreza e ambição, coragem e medo, desejo de aventura e ânsia da sua casa, empatia e violência, fé e ganância.

Por Este Rio Acima foi um sucesso de vendas e de airplay, com O Barco Vai de Saída, A Guerra é a Guerra e Navegar, Navegar a ficarem impregnadas no nosso consciente coletivo até hoje. Para isso contribuiu também a muito cuidada edição do duplo LP, com uma extraordinária capa colorida a lembrar-nos os exercícios do rock progressivo e o magnífico libreto que acompanhava o disco, com as letras, ilustrações de época e os trechos da Peregrinação que haviam inspirado cada canção. Uma curiosidade: foi dos primeiros discos portugueses a conhecer edição no então revolucionário formato do CD, logo em 1984! Tiago Freire

Altamont.pt

Criado em 2005, o Altamont é um lugar de união para quem gosta de música. E quer cumprir o propósito que sempre lhe pautou o caminho – ser um local de descoberta e partilha para quem ainda tem tempo para ouvir um disco de uma ponta à outra.

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