O discurso do Estado da União de Ursula von der Leyen, proferido há pouco mais de duas semanas, foi talvez o mais incisivo do seu mandato. Pela primeira vez em muito tempo, a presidente da Comissão falou de uma Europa que queria tomar nas suas próprias mãos não apenas o seu destino, mas também o da Ucrânia, o do povo palestiniano, o da democracia liberal e das liberdades que definem a nossa identidade política. Foi um discurso raro porque teve chama e teve densidade. Von der Leyen perguntou aos líderes europeus se tinham “estômago” para o que era preciso dizer e, mais ainda, para o que seria preciso fazer. Foi também a primeira vez que a Europa se reconheceu em guerra, ainda que de forma indireta, confrontada com a invasão russa, com a erosão da ordem internacional, com a necessidade de agir para não se tornar irrelevante.

Acontece que, passadas duas semanas, o que resta é sobretudo o eco de uma boa peça oratória. A política europeia continua onde estava: prisioneira das hesitações nacionais, dos bloqueios internos, das prioridades domésticas que desmentem qualquer ambição comum. O discurso da presidente da Comissão não obriga governos a alterar orçamentos de Defesa, não cria consensos em matéria de política externa, não desbloqueia a exigência de unanimidade. O que se viu, desde então, foi um conjunto disperso de intenções, pequenas medidas embrionárias, alguma coreografia diplomática e pouco mais. O contraste entre a altura da retórica e a mediocridade da ação volta a ser doloroso.

O que está em causa não é apenas a guerra na Ucrânia, embora esta seja o centro da questão. Zelensky recordou, há um mês, que as garantias de segurança para o seu país estariam fechadas numa semana. Não estão. As promessas de integração militar e financeira arrastam-se, os detalhes perdem-se nos corredores de Bruxelas e de capitais onde a coragem se mede em ciclos eleitorais. A cada dia que passa, a Rússia testa a firmeza da NATO, provoca incursões no espaço aéreo, mede a paciência do Ocidente. Mark Rutte disse-o com crueza: por que razão temos de esperar sempre que a Rússia permita à NATO reagir? A questão é a mesma para a União Europeia. Se a União quer ser mais do que um prolongamento hesitante da Aliança Atlântica, precisa de assumir a sua autonomia estratégica. Não basta rosnar como um leão se depois se arrisca a revelar-se um cordeiro.

Mas não é só a Ucrânia. Von der Leyen colocou também a tónica na Palestina e na urgência de devolver ao processo de paz alguma credibilidade. A Europa podia, e devia, ser o pivô dessa mediação, não apenas uma voz tímida entre Washington e as capitais árabes. Podia, e devia, assumir-se como força normativa capaz de pressionar, sancionar, negociar. Não o fez. O tempo da política externa europeia continua a ser o tempo do adiamento. Cada semana que passa é mais uma semana em que a União abdica de liderar e se resigna a comentar.

É precisamente por isto que defendo que o momento do discurso era único. A Europa tinha ali uma oportunidade rara de se afirmar como grande líder internacional. Não como potência militar bruta, mas como potência política, como mediadora de paz, como guardiã de valores. Uma Europa capaz de fazer convergir interesses dispersos numa vontade comum. O problema é que, como tantas vezes, não soube aproveitá-la. O contraste entre o que podia ser e o que é torna-se insuportável.

A fragilidade interna explica parte da inércia. França atravessa turbulência política, a Alemanha está absorvida por divisões económicas e energéticas, Itália governa para já sem sobressaltos, Portugal é espectador sem peso, a Europa de Leste exige muito, mas oferece pouco em termos de unidade. Com este pano de fundo, as palavras de Von der Leyen ficaram suspensas no ar, sem chão para pousar. Aplaudidas, citadas, mas sem tradução em atos.

O discurso de Ursula von der Leyen mostrou que a Europa pode, quando quer, falar como potência. Mas mostrou também que ainda não sabe agir como tal. E sem ação, as palavras, por mais fortes que sejam, não mudam o curso da História. A questão é saber se ainda haverá estômago para isso.

Palavras-chave:

Há pais que se orgulham de ter filhos “desenrascados” no mundo digital – como se isso fosse virtude, e não urgência de sobrevivência, num mundo que coloniza a infância antes mesmo de ela aprender a soletrar “liberdade”. 

Há pais que se vangloriam de “não ser autoritários” – como se deixar uma criança de 10 anos vaguear sozinha no Instagram fosse democracia e não abdicação. 

E depois há pais – como eu e outros certamente – que, com a serenidade dos que escolhem o caminho mais difícil, disseram: até aos 13 anos, nada de redes sociais. Nem Facebook. Nem Instagram. Nem TikTok. Nem “só para ver memes”. Nada. Aliás, smartphone também nunca antes dessa idade.

E cumprimos. À risca. Não por fanatismo. Mas por amor. Por ciência. Por conhecimento. Por responsabilidade.

Porque educar não é acompanhar a maré – é construir diques. Porque amar não é ceder – é proteger. Porque a infância não é um território livre para algoritmos – é um santuário que os pais têm o dever de vigiar, como se vigia e cuida de um jardim onde só se quer que cresçam flores e não ervas daninhas digitais.

O cérebro aos 13:
Um limiar que a Ciência impõe – e os pais ignoram

Não inventei esta regra. A neurociência impõe-na. Um estudo de 2023 publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA Pediatrics) – e citado por pediatras e psicólogos pelo mundo – demonstrou, com dados longitudinais robustos, que crianças expostas precocemente às redes sociais (antes dos 13 anos) apresentam risco significativamente maior de desenvolver ansiedade, depressão, distúrbios do sono e comportamentos de comparação social patológica. O córtex pré-frontal – a região do cérebro responsável pela tomada de decisão, o autocontrolo e a regulação emocional – só amadurece plenamente por volta dos 25 anos. Aos 13, ainda é um esboço, um rascunho. Entregar-lhe o poder de um feed infinito, de likes condicionantes e de stories de performance é como dar um Ferrari a um miúdo que ainda mal sabe andar de bicicleta.

A Academia Americana de Pediatria (AAP), desde 2016 – e reforça em 2024 –, recomenda expressamente: “Nenhuma conta em redes sociais antes dos 13 anos.” Não é capricho moral. É proteção cerebral. É higiene mental. É prevenção.

E em casa não esperamos por recomendações internacionais. Agimos. Porque educar é antecipar – não remediar.

Ver filmes juntos? Conhecer os conteúdos? Isso Chama-se Parentalidade Ativa – Não é controlo. Não proibi por medo. Proibi por cuidado. E não me limitei a dizer “não”. Fui curador. Filme de animação? Só depois de eu ver. Série nova? Só depois de eu pesquisar, ler as sinopses, perceber as mensagens subliminares, valores transmitidos, densidade emocional. Porquê? Porque não deleguei a educação emocional das minhas filhas a estúdios de Hollywood, à Netflix ou a streamings sem rosto. Porque acredito que o que entra pela retina se instala na alma – e nem tudo o que brilha é bom para ficar.

Eduardo Sá, psicólogo e uma das vozes mais lúcidas da parentalidade em Portugal, escreveu no Público em março de 2024: “Ser pai ou mãe hoje é ser curador – não de museus, mas de mundos. O mundo real, o mundo digital, o mundo emocional. Se não somos nós a escolher o que entra na alma das crianças, serão os algoritmos. E os algoritmos não amam.” E eu amo, amo muito. (Eduardo Sá, Curadores de Infâncias, Público, 15 de março de 2024).

Sá não fala de proibição cega. Fala de presença lúcida. De pais que não se escondem atrás do “deixa-o, ele sabe o que faz” –, mas que se sentam ao lado, que veem juntos, que explicam, conversam, debatem, que filtram, que protegem. Porque proteger não é aprisionar – é preparar.

O lixo digital não é metáfora – é realidade. E os pais são os cantoneiros da limpeza, os primeiros lixeiros

Chamo-lhe lixo. Assumo. E não peço desculpa. Lixo é o reel que ensina meninas de 9 anos a fazer poses sensuais para ganhar seguidores. Lixo é o meme que ridiculariza a tristeza como “pieguice”. Lixo é o influencer de 12 anos a vender suplementos “para ficar magrinha”. Lixo é o algoritmo que, depois de um “estou triste”, sugere vídeos de automutilação. Ou que banaliza e rebaixa o outro sexo, a outra cor, a outra nacionalidade, maltratando-o, desrespeitando-o.

Se os pais não são os primeiros a varrer este lixo da porta da infância – quem o fará? A escola? Está a tentar salvar o que já foi contaminado. O Estado? Move-se em câmara lenta, enquanto os conteúdos tóxicos se multiplicam em segundos. As plataformas? O seu lucro está na retenção – não na proteção.

Resta-nos a nós – pais, mães, educadores, professores primeiros, aqueles que amam os seus filhos, os seus educandos, os seus formandos, os seus alunos – assumir o papel mais ingrato, mais invisível, mais essencial: o de cantoneiro da alma. De quem recolhe o que fere, o que confunde, o que envenena – antes que se instale.

A CONFAP tem razão
– Mas falta coragem aos pais

Enquanto o Ministério da Educação celebra a proibição de telemóveis nas escolas – e bem, pois os dados mostram redução de bullying e aumento da socialização –, a Confederação Nacional das Associações de Pais (CONFAP) lembra, com lucidez rara, que “a regulação do uso de smartphones nas escolas deve abranger todos os agentes da comunidade escolar – alunos, professores, assistentes operacionais e encarregados de educação – de forma a promover o exemplo e a responsabilidade coletiva.”

Vamos lá traduzir isto: não adianta a escola proibir se os pais normalizam. Não adianta o professor desligar o ecrã se o pai o liga no carro. Não adianta a diretora exigir presença se a mãe substitui o jantar por vídeos.

A CONFAP está a dizer, com outras palavras: a mudança começa em casa. O exemplo é a primeira lei.

Mas quantos pais estão dispostos a desligar o seu próprio telemóvel? A não filmar os filhos para o Instagram? A não usar o YouTube como ama-seca? A dizer “não” – mesmo quando todos dizem “sim”?

Manifesto para os 13
– e depois

Proponho, então, não uma regra – mas um pacto. Um pacto entre pais que ainda acreditam que a infância merece ser protegida: Até aos 13 anos, zero redes sociais. Não é castigo, não é punição. É neuroproteção. Conteúdos audiovisuais? Só após curadoria parental. Ver primeiro. Discutir depois. Nunca delegar. Os ecrãs não substituem o colo, a conversa, o silêncio, o tédio criativo – esse solo fértil onde nasce a imaginação. O exemplo dos pais é a regra mais poderosa. Se tu estás sempre no telemóvel, não adianta proibires o teu filho. Aos 13, não se entrega a chave do mundo digital – inicia-se um processo de literacia mediática, com regras, limites, diálogo e – acima de tudo – presença.

O que as minhas filhas não perderam
– E o que eu não me arrependo de lhes ter dado

Hoje, as minhas filhas – já adolescentes-mulheres – têm Instagram, têm Facebook, tudo o que quiserem no mundo digital. Mas entraram nelas com consciência. Sabem o que é um algoritmo. Sabem como os likes manipulam o humor, as suas vidas. Sabem que podem desligar – e que o mundo não acaba. São prudentes e seletivas.

Mas, mais importante: sabem que o amor dos pais não vem com notificações – vem com presença. Sabem que os melhores momentos não são os que se publicam – são os que se vivem: a rir no sofá a ver um filme escolhido a dedo, a discutir o final de uma série, a inventar histórias, a ler bons livros, a estudar, a construir-se e a viver a vida, o mundo lá fora – sem ecrãs, sem Wi-Fi, sem pressa.

Educar é, antes de tudo, resistir. Resistir à pressão do “tudo e já”. Resistir ao comodismo do “põe lá o YouTube que ele(a) entretém-se”. Resistir à ilusão de que “todos fazem” isso.

Nem todos fazem. E os que não o fazem estão a salvar a infância, os filhos, o amor e a assumir sabiamente a responsabilidade familiar. O Futuro.

Artigo escrito por um pai que disse “não” – e viu as filhas crescerem a dizer “obrigada”. Porque o melhor like que uma criança pode receber não vem de um ecrã – vem de um olhar atento, de um abraço sem pressa, de um “hoje não há telemóvel – hoje há nós”.

Quem leu o programa eleitoral da AD dificilmente poderia imaginar que o Governo de Luís Montenegro se preparava para apresentar uma reforma das leis laborais que altera cerca de 100 artigos do Código de Trabalho. O Programa do Governo, aliás, limitava-se a anunciar a intenção de promover “relações laborais estáveis e uma melhor conciliação da vida pessoal, familiar e profissional”. Um objetivo que parece estranho tendo em conta medidas que vão impossibilitar pais de filhos menores de 12 anos ou com deficiências de recusar trabalhar à noite ou aos fins de semana, vão tornar mais difícil conseguir ficar em teletrabalho (a menos que se tenha filhos com até 8 anos) e preveem o regresso dos bancos de horas (extintos em 2019), levando a que se possa trabalhar até mais duas horas por dia sem receber mais salário.

Para a ministra do Trabalho, Maria do Rosário Palma Ramalho, trata-se de incentivar a criação de “empregos de qualidade” e uma forma de “aumentar a competitividade” da economia portuguesa. Para os patrões, esta é uma “boa base de trabalho” e só peca por defeito. Armindo Monteiro, da CIP (Confederação da Indústria Portuguesa) defendeu que as mudanças deviam “consagrar a necessidade de renovação do quadro das empresas como fundamento objetivo para o despedimento” e que as faltas justificadas deixassem de ser pagas. Luís Mira, da CAP (Confederação dos Agricultores de Portugal), afirmou que “seria relevante que a proposta considerasse o aumento do período de trabalho fixado por lei” em setores que “enfrentam enorme escassez de recursos humanos”, sem especificar quais.

Mas se os patrões acham pouco, os sindicatos acham demais. A CGTP rejeita sequer falar sobre um anteprojeto que considera ser um enorme retrocesso em relação aos direitos dos trabalhadores e a UGT respondeu com um “rotundo não” às ideias do Governo. Aliás, até os Trabalhadores Sociais-Democratas (que fazem parte do PSD) vieram criticar a proposta. “Alguns dos nossos trabalhadores podem rever-se na posição da UGT de contestação à proposta legislativa do Governo e defender um cenário de luta concertada”, admitiu ao Expresso o social-democrata Pedro Roque, numa altura em que está em cima da mesa uma greve geral. Debaixo de fogo, a ministra do Trabalho diz que vai negociar, mas não abre mão da reforma. “O Governo está aberto a todas as soluções construtivas, mas devo dizer com toda a clareza: não vai querer a paz [social] a qualquer preço”, disse.

Contratos a prazo por mais tempo

O primeiro contrato a prazo passa a ser no mínimo de um ano e não de seis meses como atualmente. Caso o trabalhador nunca tenha tido um contrato sem termo na sua vida profissional, isso pode justificar que a empresa lhe apresente um contrato a prazo, mesmo para cumprir funções permanentes. A duração máxima destes contratos passa de dois para três anos. Os contratos a termo incerto passam de quatro para cinco anos.

“Falsos recibos verdes” mais fáceis

Até agora, presumia-se que um trabalhador era dependente caso 50% da sua faturação viesse da mesma entidade. Agora, é preciso que sejam 80% para que se considere estar perante um “falso recibo verde”. Nos últimos anos, a Autoridade para as Condições do Trabalho tinha apertado a fiscalização e requerido a integração nas empresas de dez mil trabalhadores.

Despedimentos mais fáceis

Os patrões deixam de ser obrigados a apresentar provas ou a ouvir testemunhas para comprovar a justa causa de despedimento nas empresas que tenham até 250 trabalhadores. Além disso, as empresas podem contratar em outsourcing para substituir trabalhadores logo após um despedimento coletivo ou depois de despedir alguém por extinção do posto de trabalho. Mesmo que o despedimento venha a ser considerado ilegal, o trabalhador deixa de ter o direito a ser reintegrado. E, quando assina o acordo para sair da empresa, prescinde de reclamar qualquer outro direito, mesmo que venha a constatar que as contas estavam mal feitas. Além disso, para ir para tribunal tem de dar como caução o valor da indemnização recebida.

Limitações à greve e à atividade sindical

O Governo alarga os setores a que se aplica a imposição de serviços mínimos, incluindo setores de cuidado (como creches e lares, embora não seja claro se as escolas estão incluídas) e até os setores do abastecimento alimentar e da segurança privada passam ser considerados necessidades sociais impreteríveis. Em vez de, como até agora, os serviços mínimos serem decretados através de um tribunal arbitral, passam a estar definidos por lei. Os sindicatos podem ser impedidos de entrar em locais de trabalho onde ainda não haja sindicalizados. E afixar informação sindical, só com autorização do patrão.

Contratação coletiva enfraquecida

Os contratos coletivos caducam ao fim de quatro anos e os patrões podem escolher qual o contrato coletivo que vigora na empresa. Os acordos assinados com os trabalhadores podem prever condições menos favoráveis do que as que estão na lei geral. E o patrão pode alterar condições acordadas se alegar “crise empresarial”.

Horários mais desregulados

Voltam os bancos de horas individuais, permitindo que se trabalhe até mais duas horas por dia sem aumento da retribuição. Os pais com filhos até 12 anos, deficiências ou doenças crónicas não podem invocar essa condição para recusar trabalhar à noite ou ao fim de semana. O horário reduzido para amamentação pode vigorar no máximo até a criança fazer 2 anos.

Mudanças nas quotas para deficientes

Passam a contar para as quotas de contratação de deficientes pessoas com incapacidade igual ou superior a 30%, em vez dos atuais 60%. E também entram nestas contas trabalhadores que estejam colocados através do centro de emprego ou de empresas de trabalho temporário.

Teletrabalho mais difícil

Os trabalhadores com filhos até 8 anos continuam a poder exigir ficar em teletrabalho caso tenham uma função compatível com esse regime. Mas é revogada a norma que diz que um empregador só pode recusar uma proposta de teletrabalho apresentada pelo trabalhador “por escrito e com a devida fundamentação”, desde que esta seja incompatível com a função desempenhada. Com esta alteração, será mais fácil ao empregador recusar teletrabalho. Também é revogada a norma que determina que a oposição do trabalhador ao teletrabalho proposto pelo empregador não tem de ser fundamentada nem pode levar ao seu despedimento ou a penalização.

O regresso dos duodécimos

Foi nos tempos da Troika que os trabalhadores começaram a poder receber os subsídios de férias e de Natal em duodécimos, como forma de aliviar os efeitos dos cortes salariais que muitos sofreram. O Governo quer que os trabalhadores possam voltar a requerer que estas retribuições sejam recebidas nesse sistema.

Trabalho não declarado deixa de ser crime

Se a proposta do Governo passar como está, deixa de ser crime o trabalho não declarado, o que faz cair por terra a obrigatoriedade de declarar à Segurança Social as trabalhadoras domésticas.

Enfraquecimento da ACT

A Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) perde peso. É extinta a norma que determina que o Inspetor do Trabalho, ao detetar indícios de um despedimento ilícito, notifica a entidade patronal e, na falta de regularização, comunica o facto ao Ministério Público.

Deu-se o caso esta semana. Henrique Raposo, um homem que já irritou a direita e a esquerda, os alentejanos e os lisboetas, conseguiu agora irritar os católicos. Mas calma: católicos há muitos. Até o Henrique é um deles. Os católicos que o Henrique escolheu para irritar são aqueles que se ajoelham e que se sentem perto do latim como língua litúrgica. Os deploráveis do catolicismo. O Henrique tem esta característica e é um superpoder, um dom sobrenatural, quase místico: o dom de irritar.

Evidentemente, começa por Trump. Como todos os que escrevem de cor e sem risco. Depois prossegue pela viragem à direita da nossa juventude, para ir desaguar no renascimento católico sobre o qual se tem escrito ultimamente. E eis que, como quem tira uma banana do bolso a fingir que é uma pistola, saca da sua velha tese: todo o católico que se ajoelha na missa é católico errado. Mais: é hipócrita. E ainda: pratica um gesto velho, árido, cujo único fito é a sinalização de virtude. “Um teatro beato”, escreveu.

Todavia, a birra não seria assim tão relevante se não viesse envolta numa ignorância histórica e teológica que não resiste a dois minutos de catecismo. Como se o Henrique, um recém-convertido, talvez pela sede de efeito, própria da juventude das coisas, pensasse ainda com a idade do tempo da sua conversão.

E lá vai ele, trapézio fora, pedalando um monociclo a arder, enquanto faz malabarismo. Ele é joelhos, o latim, voluntariado, missa tridentina: tudo a girar num círculo de simplificações grosseiras que fariam corar o Homer Simpson.

É preciso lembrar ao Henrique os Padres do Deserto. Homens secos; de silêncio, de jejum, de oração. Eles ensinaram que o demónio não seria capaz de ler pensamentos, mas adivinhá-los-ia pelos gestos do corpo. Por isso, em todos os tempos, se deu tanta importância ao comportamento exterior. Mas talvez Henrique ache que o demónio não exista; talvez ainda não tenha dado por ele.

Mas mais: ajoelhar não é só um um gesto simbólico. É o corpo inteiro a confessar-se diante da presença real de Cristo na Eucaristia. É uma antecipação da prostração cósmica que São Paulo descreve aos Filipenses: “ao nome de Jesus, todo o joelho se dobre nos céus, na terra e nos abismos”. Se até nos abismos…

Contudo, se o argumento espiritual ainda não bastar, fica o disciplinar: a Conferência Episcopal Portuguesa reviu há bem pouco tempo as disposições gerais sobre a posição do corpo durante a Missa. Apenas uma — uma — está ao critério do fiel: precisamente a comunhão. Em todos os outros momentos, a Igreja determina quando se está de pé, sentado ou de joelhos. Portanto, Henrique, deixe os seus irmãos comungarem em paz, que nisso não há birra, há liberdade.

Depois, como quem não quer a coisa, reduz o latim a uma “terceira camada”. Como se fosse pó. Uma excentricidade estética. É a malícia do costume: se há quem o venere por ser antigo, por que não grego ou aramaico, que estão ainda mais perto da fonte? É uma caricatura. E é desonesta. O ponto não está em procurar a língua mais antiga, como se de uma expedição arqueológica se tratasse. Trata-se, sim, de dar continuidade a uma tradição que os séculos amadureceram, que fez do latim a sua forma plena. Como se fosse uma catedral: distinto, universal, imutável. O amor ao latim representa a fidelidade a uma herança que a Igreja guardou durante séculos e que só foi (abruptamente) interrompida há meia dúzia de décadas. Outras religiões entendem-no: os judeus rezam em hebraico, os ortodoxos em grego bizantino ou eslavónico, línguas que também já não são correntes. E ninguém lhe chama ignorância. Pelo menos por enquanto.

E então vem o voluntariado. A métrica absoluta da fé calculada em escuteiros e bancos alimentares. Como se a Igreja fosse uma ONG de assistência social. Não me interpretem mal. Nada contra o voluntariado. O Henrique Raposo é que estabeleceu a relação entre piedade pomposa e baixa de números do voluntariado. Esquecendo aquele dia em casa de Lázaro. Maria de Betânia derramou um perfume caríssimo sobre os pés de Jesus. E Judas disse: “Por que razão não se vendeu esse bálsamo por trezentos denários e se deu aos pobres?” Repararam bem? Nada menos: parecia o Henrique a falar. Foi a primeira vez que alguém ousou reduzir a fé ao útil. E Cristo calou Judas. Respondeu que o gesto gratuito é que estava a valer. E, na noite seguinte, ajoelhou-se Ele próprio, lavando os pés dos discípulos. Do gesto supérfluo, inútil aos olhos de Judas, brotou o próprio sacramento.

Antes, já os Magos haviam procurado um Menino. Precisava de tudo e não Lhe levaram nada que servisse. Parece impossível: em vez de leite ou roupas, ouro, incenso e mirra; ínsígnias de Rei, Profeta e Sacerdote. É que nem o Deus pobre dispensaria a celebração da Sua glória. À luz de Raposo seria snobeira, pose; um equívoco. Pois foi aí que nasceu a liturgia.

O Henrique tem uma atracção fatal pelo apanhado genérico. E quando escreve estas coisas, desta maneira, desaparecem o historiador e o católico. Em seu lugar fica a professora de Geografia do oitavo ano: dedo em riste, voz aguda, aplicando um ralhete à turma, como se fosse um conteúdo programático.

Na escrita como na liturgia e, de resto, como em tudo na vida, não é tanto o que se faz, mas como se faz. Não é tanto o que se diz, mas como se diz. Ou, na feliz formulação de Cristina Campo, “não é a acção, mas a liturgia da acção”. Como eu, agora, escrevendo este texto. Podia ser mais acintoso ou mais suave. Estou a tentar ser fraterno.

Sei de quem se ajoelhe e de quem fique de pé, sei de quem receba a comunhão na mão e de quem escolha não comungar. Na Igreja, enquanto Deus quiser e o homem permitir, haverá lugar para toda a sorte de pecadores. Até para o Henrique. Até para mim.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

O debate sobre a situação degradada do SNS centra-se normalmente nas condições de acesso ao sistema, quer na rede de cuidados de saúde primários, com o número crescente de utentes sem médico de família, quer na rede hospitalar, com a saga das urgências encerradas e das cirurgias realizadas tarde demais que degradam a qualidade de vida ou fazem perder vidas.

Mas se entrar no sistema se tem revelado cada vez mais difícil, a saída do sistema e todos os apoios à recuperação do internamento são cada vez mais uma miragem penosa.

Este ano, calculava-se que estavam desnecessariamente internados nos hospitais do SNS cerca de duas mil pessoas por razões sociais, designadamente por não terem família para os acolher ou condições de habitação para recuperação domiciliária, por falta de vagas na rede de lares ou falta de condições económicas para suportar os encargos, ou pela inexistência de vagas na rede de cuidados continuados ou na quase inexistente rede de cuidados paliativos.

Os custos são elevadíssimos para o SNS para além da ocupação de camas que penaliza a assistência aos doentes necessitados. Por isso, é dramático verificar que também nesta área a situação da execução do PRR aponta para uma oportunidade irreversivelmente perdida.

A área mais evidente é a dos cuidados continuados em que até ao início de setembro se registava a desistência de projetos correspondentes a 876 das 6899 camas contratadas (cerca de 12,5%) por impossibilidade de conclusão até agosto de 2026, com a perda de cerca de 100 milhões de euros para o setor, segundo a Associação Nacional dos Cuidados Continuados. Estão igualmente apenas concluídos cerca de 5% dos 4135 lugares em lares contratados pelo PRR e asseguradas 70 das 11300 vagas previstas para apoio domiciliário.

Esta é parte da situação desastrosa da situação do PRR nas áreas de apoios sociais, das creches aos idosos passando pelas estruturas de apoio a pessoas portadoras de deficiência, cujos recursos podem ser transferidos para áreas empresariais pelo Banco de Fomento, como já está a ser anunciado por Castro Almeida como o estratagema da próxima reprogramação, mas que será uma oportunidade perdida para a área dos apoios sociais que seria decisiva num país em rápido envelhecimento.

Não é por falta de aviso, porque já em junho deste ano a Comissão de Acompanhamento do PRR, no seu quinto relatório regular, considerara a situação da área dos apoios sociais como muito preocupante carecendo de intenso acompanhamento técnico e empenhamento político com grande proximidade.

O mapa síntese global é confrangedor ao identificar que dos 44 615 lugares contratados para todos os tipos de apoios sociais, apenas 1667 estavam concluídos e só 40% tinham iniciado as obras. Em vez de estar tão empenhada na fragilização das relações laborais talvez a ministra Rosário Palma Ramalho devesse estar mais atenta a esta tragédia anunciada que penaliza o SNS e afeta desmesuradamente a qualidade de vida dos idosos, dos carentes de reabilitação e dos portadores de deficiência.

Pela prioridade dada à política de instabilidade laboral em detrimento da pasta da solidariedade social a ministra Rosário Palma Ramalho merece mais um prémio Laranja Amarga.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Há alguns dias, foi publicada uma notícia intitulada “Juízes no Norte dão mais razão aos estafetas”. Partindo da análise de um conjunto de decisões relativas aos novos fenómenos laborais decorrentes das plataformas digitais, concluiu-se, de forma perentória, que os juízes de uma determinada zona do País tendem a decidir certo tipo de casos de forma distinta do que sucede no resto do território. Ora, sendo o País todo o mesmo e a lei também ela igual, poderia ficar a ideia de que a disparidade de decisões em função da geografia poderia ser fruto de uma arbitrariedade interpretativa ou de que os tribunais, dependendo dos pontos cardeais onde se inserem, poderão ser mais favoráveis a trabalhadores ou a patrões. Pese embora se reconheça que o título em causa é apto a despertar natural curiosidade, as coisas não são assim tão lineares.

Vejamos a questão de base. Nos últimos tempos, tem crescido o número de ações interpostas obrigatoriamente pelo Ministério Público no sentido de apurar se determinadas relações de estafetas, por exemplo da Uber e da Glovo, com as respetivas plataformas digitais constituem ou não contratos de trabalho. Com efeito, a lei confere à ACT (Autoridade para as Condições de Trabalho) a competência para a verificação da existência de relações com as características de um contrato de trabalho, bem como para lavrar autos e notificar os empregadores para a regularização das situações em que ocorra uma inadequação do vínculo que titula a prestação em causa. Recebida a participação, incumbe ao Ministério Público, no prazo de 20 dias, intentar as chamadas “ações de reconhecimento da existência de contrato de trabalho”.

Ora, para além de estarmos perante um fenómeno relevante do ponto de vista laboral, mas também do ponto de vista da atividade económica das sociedades atuais, parece-nos também que o mesmo merece uma reflexão séria que vá para além de eventuais meras disparidades baseadas na localização dos tribunais. Na verdade, importa ir um pouco mais longe para que se possa compreender por que motivo determinadas ações foram decididas num ou noutro sentido, não limitando a análise jurisprudencial a uma redutora guerra regional de interpretações jurídicas.

Em primeiro lugar, é de salientar que a lei estabelece um conjunto vasto de características geradoras da presunção da existência de um contrato de trabalho (por exemplo, a fixação pela plataforma digital de uma retribuição para o trabalho; o exercício pela plataforma de poderes de direção e a determinação de regras específicas no exercício da atividade; a supervisão e controlo da atividade pela plataforma; etc.), pelo que, atendendo às peculiaridades de cada caso, bem como à prova que aí se produza, é perfeitamente possível que, independentemente da geografia, numas situações se tenham verificado aquelas características e noutras não. Isto é, dito de outra forma, os tribunais julgam com a lei e com os factos provados, sendo naturais as divergências de solução em casos relativos a um tema idêntico, em função do que se provar ou não se provar em julgamento.

Por outro lado, independentemente das particularidades dos casos concretos levados a tribunal, e que podem justificar soluções distintas, é de notar que a lei, neste caso, optou por uma redação bastante aberta, socorrendo-se de conceitos mais amplos (por exemplo: “poder de direção”, “fixação de regras específicas”, “controlo e supervisão”, “poderes laborais”) ou de terminologias que conferem uma maior liberdade interpretativa através do estabelecimento de exemplos meramente indicativos em catálogos não taxativos (por exemplo: “A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador da atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade” – artigo 12º-A do Código do Trabalho).

Deste modo, mais do que olhar para os números ou estatísticas por região, o que nos parece verdadeiramente importante é que, sobretudo em matéria de grande impacto social e económico, como inequivocamente é o caso do trabalho nas plataformas digitais, se reforce o papel da uniformização de jurisprudência, no âmbito da qual o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) tem um papel crucial. Com efeito, através dos Acórdãos Uniformizadores de Jurisprudência, o STJ tem a possibilidade de, em nome da segurança jurídica, pôr termo a uma divergência ou contradição entre decisões proferidas pelo próprio ou pelos Tribunais da Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito. A criação de condições legais que facilitem a sua prolação de modo mais frequente, sem prejuízo da independência dos tribunais e das particularidades dos casos concretos, constitui um poderoso e qualificado mecanismo de sustentação das decisões e, como tal, de reforço da confiança dos cidadãos no sistema de justiça. A jurisprudência uniformizada não significa a imposição de uma visão rígida sobre a realidade, mas antes pressupõe a criação de uma linha orientadora coerente, baseada na interpretação dos princípios fundamentais, no âmbito dos quais as divergências podem ser aplacadas e reconduzidas apenas às singularidades de cada processo.

Do mesmo modo, para um debate integral sobre esta matéria, importa também ponderar o modo como a legislação se encontra desenhada, podendo o legislador recorrer, em casos ponderosos de divergências mais amplas, às normas interpretativas que conferem ao julgador um sentido mais inequívoco sobre aquela que foi a intenção do poder legislativo ao criar uma determinada norma com uma determinada redação. Na verdade, no caso dos modelos de trabalho baseados em plataformas digitais, estamos perante setores muito vocacionados para entregas com intermediação tecnológica e aparente autonomia dos trabalhadores que, em muitos casos, poderão escapar às categorias tradicionais da “subordinação jurídica” que sustentam o reconhecimento típico e tradicional de um contrato de trabalho. Por conseguinte, o recurso à “lei interpretativa” tem a vantagem, desde logo, de respeitar a continuidade do ordenamento jurídico e, por outro lado, de conferir segurança jurídica às partes, tornando a aplicação do direito mais linear e compreensível. Em vez de se optar por revisões legislativas extensas ou por medidas avulsas, cremos que o legislador, nesta como noutras matérias, pode e deve intervir com a produção de normas que esclareçam o alcance das disposições existentes à luz das novas realidades, sejam elas laborais ou de outra natureza. Esta é uma via prudente e eficaz, especialmente quando estamos perante áreas de grande mutação tecnológica e social.

Enfatizar a proveniência geográfica das decisões tem o negativo condão de desfocar o cerne da questão, antes gerando incerteza e alimentando um certo sentimento de arbitrariedade que mina a confiança dos cidadãos nas instituições. Ao invés, cremos que o enfoque deste tipo de questões deve ser colocado nos pontos que realmente importam para a criação condições de segurança jurídica para trabalhadores e empresas, isto é, na necessidade de incremento da uniformização jurisprudencial e de maior proatividade na criação de legislação clara e compreensível. Esta é na verdade uma questão não privativa do setor laboral, mas que não pode continuar a ser ignorada, continuando-se muitas vezes a pretender que sejam os tribunais a suprir aquilo que o legislador, numa atividade mais voraz do que esclarecida, poderia resolver em poucas linhas de Diário da República.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Chego à noite. A escuridão não me deixa ainda ver os estragos. Mas o cheiro é intenso. A terra está coberta de cinzas e o cheiro entra, mesmo com os vidros do carro fechado, e entranha-se em tudo. A terra está queimada. Comprovo-o quando amanhece e vejo como a paisagem se transformou em carvão. As árvores e as vinhas de folhas castanhas, o chão preto. E o cheiro. O cheiro que entra em tudo. É isto que fica depois dos incêndios, é isto que resta depois de as câmaras de televisão se apagarem, depois de os diretos pararem, depois dos gritos e dos choros do desespero. É este abandono dorido que fica. Esta carne queimada, exposta, morta, esquecida.

“Foram 15 dias de desespero. Não sei como andámos aqui nesses dias. O fogo dançava à nossa volta. Passava daqui para ali. Baixei-me e passou por cima de mim. De mim e do meu marido. Pensei que morria. Nunca tive tanto medo na minha vida”, conta-me quem estava, quem ficou, quem agora olha para tudo o que ardeu e terá de esperar que a vida renasça e se refaça. E tudo demora muito tempo e é demasiado difícil. Só o fogo é que é fácil. Arde e queima, deixando cinza. O que fazer agora das cinzas?

Cada um tem uma história para contar de como foi e de como se escapou, mas sobretudo do que perdeu. A maioria perdeu alguma coisa. Nenhum ganhou para o susto. O medo é como o cheiro que fica. Também se entranha. E demora muito tempo a passar. Tudo demora muito tempo.

Contam-me como andam às voltas com papéis que não sabem como preencher. A perda tem uma métrica. Cada coisa vale alguma coisa, a não ser que não valha nada. E o difícil é saber o que cada coisa vale. “Perdi 150 oliveiras. Todas com mais de 50 anos. Dão-me 16 euros por cada oliveira”, explica-me um homem, que usa a mão para me fazer um gesto que lhe fica pelos joelhos enquanto me transmite a sua incompreensão. “Tanto faz que a oliveira seja desta altura”, e a mão detém-se pelos joelhos. “Como que tenha 50 ou 100 anos. Vale sempre 16 euros.”

Outro homem junta-se à conversa. Também perdeu oliveiras velhas. Tinha um telhado já meio desfeito pelo tempo que ardeu e perguntaram-lhe na câmara quanto valeria. Tentou saber. Disseram-lhe que cem euros por metro quadrado. “Dois mil euros. Vale mais o telhado do que as oliveiras”, constata de ombros encolhidos. Vai voltar a colocar as telhas no lugar. Talvez demore uns meses. Já não tem idade para ver as oliveiras chegarem à idade que tinham as que lhe arderam. Demora tudo muito tempo.

“As oliveiras explodiram. Nunca tinha visto nada assim”, conta-me uma mulher, que há poucos dias passou por um cedro que caiu depois de semanas a arder por dentro. “Ainda fumegava”, assegura-me, perante os meus olhos espantados, ela própria incrédula com a forma como o lume come as coisas devagar por dentro. Demora tudo muito tempo.

“Foram muitos dias sem ir à cama. O meu filho estava lá. Via os bombeiros cair para o lado de sono. Cair mesmo para o lado. Houve uma rapariga que esteve três dias sem dormir. Quando queria adormecer não conseguia, tal era o cansaço.” Foi como um pesadelo do qual não se consegue acordar. A terra está queimada, mas os corpos também. “O calor era tanto que passava pelos fatos dos bombeiros. Um rapaz ficou com as costas todas queimadas. O casaco não ardeu. Ficou impecável. Mas as costas ficaram queimadas quando se virou para apanhar um colega. O meu filho também tem queimaduras nas pernas”, diz-me a mãe enquanto desce a blusa para me mostrar a marca que lhe deixou no peito uma fagulha quando usava mangueiras de jardim para proteger o que é seu. “Tínhamos tudo molhado, à espera. E mesmo assim até o lameiro ardeu.” Ninguém sabe como.

Também ninguém sabe como preencher a papelada que é preciso para receber os dinheiros que virão de Lisboa. “O funcionário da câmara também não sabia. Ficámos os dois a olhar para aquilo.” Ninguém sabe se são de confiar as promessas de quem jura que virá dinheiro, que todos sabem que não será suficiente e que ninguém sabe se chegará a quem precisa. Na dúvida, pede-se e recebe-se o que vier. Talvez venha a mais para um telhado, a menos para um olival. Ninguém sabe. Mas não é isso que agora importa, porque qualquer coisa será melhor do que a cinza que agora cobre tudo. E talvez o dinheiro seja mesmo verde. Se vier, quando vier, para quem vier.

Por agora, está cá quem sempre cá fica. Habituado a estar longe dos holofotes quando as labaredas se extinguem e as luzes dos diretos se apagam. Quem todos os dias fica e trabalha e permanece, resistindo à ideia de que é tudo longe. Longe do médico, longe do tribunal, longe da universidade. Longe do que devia ser perto, mesmo com todas as estradas de asfalto brilhante que rasgaram os montes com a promessa de tornar tudo mais perto, mas que parecem agora vazadouros por onde se vão as gentes como numa hemorragia. Todos cada vez mais longe. E em breve longe também dos jornais e das revistas, já que a única distribuidora do País, a VASP, diz que andar a trazer a imprensa para o Interior é um luxo que alguém tem de pagar. E não se sabe quem ficará com a fatura. Em breve, talvez não haja mais como ler aqui um jornal e se perca para sempre nestas bandas a ideia do que era uma revista. As promessas do Governo, que ia garantir que os jornais não deixariam de cá chegar, um ano depois, ainda não deixaram de o ser. Promessas.

O Interior sabe bem o que são promessas. E sabe esperar. Não espera de braços cruzados, porque a vida demora muito tempo e é preciso trabalhar. Mas espera, farto não de ser Interior, mas de ser as traseiras do País. O lugar para onde se viram as costas, enquanto se olha melancolicamente para o mar, não se sabe também à espera de quê. Talvez só de partir, que este país precisava de ir para a psicanálise com tanto anseio de fuga e vontade de fugir ao que lhe está por dentro. No Interior temos as entranhas. E só quem tem a cabeça no ar e vive do vento pode acreditar que se pode ignorar o que nos está por dentro.

Palavras-chave:

Tiago Oliveira recebe-nos na sede da CGTP, um edifício no Chiado com vista sobre o Tejo, onde funciona a Escola Profissional Bento de Jesus Caraça, que pertence à central sindical. É hora de almoço e os alunos estão nos terraços do edifício que faria as delícias de qualquer promotor imobiliário de luxo, mas que foi comprado no início dos anos 90 graças à quotização dos trabalhadores.

A juventude é um público difícil de trazer para o mundo sindical, tantas vezes apresentado como ultrapassado e antigo. Mas a CGTP está a fazer uma aposta grande em vídeos curtos e mensagens fortes para as redes sociais. E Tiago Oliveira acredita que “a bofetada da realidade” fará com que os trabalhadores mais jovens ganhem consciência de classe e percebam a necessidade de ir à luta.

Para já, a luta faz-se contra o pacote do Governo Trabalho XXI, que o líder da CGTP acredita que fará regressar os trabalhadores portugueses às condições do século XIX. Com uma maioria de direita no Parlamento, só a rua poderá travar essas alterações. Oliveira aproveita a oportunidade para mostrar que o Chega está, afinal, completamente alinhado com o sistema que se aproveita da precariedade dos trabalhadores para os explorar. “O Chega é uma ferramenta do capital.”

Como é que estas questões do trabalho chegaram até si? Imagino que foi em casa.

Eu venho de uma família de cinco filhos. Quatro rapazes e uma rapariga. Eu sou o segundo mais velho. E venho de uma família que teve um percurso de muitas dificuldades. O meu pai é comunista. Comunista ferrenho. 

Comunista ainda antes do 25 de Abril?

Foto: José Carlos Carvalho

Ainda antes do 25 de Abril. Isso foi uma coisa que marcou muito a relação dentro de casa com a minha mãe. Ainda hoje é um tema difícil de discutir em casa. Ainda hoje, muitas vezes, quando discutimos política em casa, uma das coisas que a minha mãe traz sempre à conversa é a questão da dificuldade que teve em criar os filhos pela ausência do meu pai. Porque o meu pai tinha tarefas a fazer fora do sítio onde morávamos, que exigiam estar dias fora, o que fazia com que a minha mãe tomasse conta dos filhos durante muito tempo e em condições financeiras muito difíceis. Isso marcou um período na minha família.

Ficou uma mágoa relativamente a esse tempo? 

Ficou. Mas também permitiu passar uma mensagem para os filhos muito importante. Uma mensagem de luta, de resistência, de combatividade, de que era preciso fazer qualquer coisa para alcançar objetivos na vida. E acho que eu e os meus irmãos, passando por isto e conhecendo as dificuldades que existiam dentro da minha família, conseguimos sempre perceber o posicionamento e a razão… 

É a partir do trabalho que tudo se constrói, que tudo se determina, que há a divisão da riqueza produzida, a obtenção do lucro, que há a construção daquilo de que o capital se apropria para vender

Nunca ficaram magoados com o seu pai? 

Pelo contrário, o meu pai é muito valorizado por aquilo que fez. Porque sempre foi um homem de trabalho.

O seu pai era operário?

Era serralheiro soldador. Uma pessoa com uma entrega ao trabalho de uma dimensão enorme. Trabalhava sempre que podia. Aliás, porque era necessário também para buscar algum rendimento para cinco filhos, que não eram fáceis de aturar, mas que viam nele uma referência no trabalho. De entrega absoluta. Mesmo ao fim de semana, quando nós não tínhamos nada para fazer e queríamos brincar, o que o meu pai fazia era: pegava em nós – vivíamos num bairro de Leça do Balio – e obrigava-nos a ir com ele trabalhar para reparar as casas dos vizinhos, reparar um poço… Porque nós tínhamos um poço e tínhamos de dar à bomba para tirar a água. E o meu pai era o único que ia lá abaixo reparar o poço. Portanto, começámos a trabalhar desde muito cedo.

Que idade tinha quando fazia essas coisas? 

Foi durante toda a infância. Aliás, quando entrei para o trabalho mesmo, com 16 anos, fui para uma empresa de móveis. Depois, fui para uma empresa de quadros elétricos, como ajudante de pintores. 

Na empresa de móveis, o que é que fazia? 

Fazia tudo e mais alguma coisa. Era o que dava para fazer com 16 anos. Depois, quando abriu um concurso para entrar para a Auto Sueco, que é a empresa onde hoje trabalho, fizeram um pequeno teste logo no início para aferir conhecimentos e capacidades. Colocaram-nos um conjunto de ferramentas à frente e eu conhecia tudo de trás para a frente. 

Tinha o estágio feito desde criança? 

(Risos) Tinha o estágio completamente feito. O meu pai teve um percurso de vida bonito. Difícil, mas bonito. 

O seu pai foi alguma vez prejudicado por ser comunista, por ser sindicalista? 

Não tenho ideia disso. Tenho referência das histórias que ele me conta. De trabalhar numa empresa, que ficava num sítio que fazia mesmo fronteira com a Via Norte, e cortaram um pinheiro e atiraram-no para cima da estrada, para exigir da empresa o pagamento dos salários em atraso. São mensagens de unidade, de força, de disponibilidade para a luta, que me marcaram em todo o percurso.

Também já tinha do seu pai ensinamentos sobre a vida sindical?

Acho que isso sempre me acompanhou no processo de crescimento. É óbvio que depois, quando cheguei à Auto Sueco – entrei com 17 anos e fiz o percurso todo, desde praticante, aprendiz de segunda, aprendiz de primeira, oficial de terceira, oficial de segunda, oficial de primeira –, tive sorte, porque havia uma estrutura sindical muito forte na empresa. Toda a empresa era sindicalizada. E tive logo uma demonstração muito importante do sindicato. Primeiro, pela forma como nos acolheram e, depois, por causa de um episódio quando entrámos. Entrámos num conjunto de quatro ou cinco jovens e há logo um que chega ao fim do contrato e a empresa não renova, mas esquece-se de enviar o pré-aviso. Foi logo o primeiro exemplo próprio vivido quando o sindicato chama a atenção à empresa e a empresa tem de recuar, conseguindo-se efetivar um trabalhador que ia embora. Tive sorte neste percurso, no acompanhamento e no crescimento que tive. Tem sido sempre assim, com a ajuda de muita gente.

Quem diz que todos os problemas estão nos imigrantes refere-se sempre aos que recebem o rendimento mínimo e nunca a quem recebe os rendimentos máximos. Não referem uma única vez quem é que está a lucrar com a especulação imobiliária

O mundo em que o seu pai viveu a sua vida ativa e o mundo do trabalho de hoje são muito diferentes. Nos últimos 20 anos, houve políticas sucessivas de flexibilização das leis laborais e, simultaneamente, um enfraquecimento da força dos sindicatos. Neste momento, estamos com uma taxa de sindicalização muito baixa, à volta dos 15%. Como é que explica este processo de enfraquecimento? 

Entre nós, temos aquelas conversas de desabafo e dizemos muitas vezes que estamos num processo de resistência, e aqueles, como o meu pai, num tempo de muitas dificuldades, conseguiram passar por um processo transformador de uma dimensão enorme, um processo incrível. Viveram esse momento. Eles sabem o que é conquistar, sabem o que é transformar, sabem o que é estar numa situação de enorme dificuldade e conseguir alcançar. Nós estamos a atravessar um momento de enormes dificuldades, de pura resistência. 

Mas a resistência tem um problema: quando estamos numa luta para ganhar terreno, temos a força de imaginar uma coisa melhor e, portanto, corremos atrás do que é melhor. Será que o sindicalismo, hoje, perdeu essa capacidade e está só a garantir os mínimos?

Para fazer essa leitura, temos de perceber o quadro onde nos movimentamos. É diferente, historicamente, do quadro de há 40 anos. Não podemos estar aqui agora a fazer copy/paste daquilo que foram as medidas e o percurso que se seguiram há 40 anos. Quando dizemos que é um processo de resistência, é porque, de facto, aquilo que tem sido colocado, consistentemente, aos trabalhadores, são bloqueios constantes a essa capacidade que existiu de organização, de conhecimento, de perceção do que é que está a acontecer. Ter ferramentas até mentais para perceber as dinâmicas de luta social, por exemplo. Ter conhecimento de que são explorados até. Reconhecerem-se como classe trabalhadora.

Acha que hoje em dia há muito menos consciência de classe?

Hoje, a batalha que nos colocam pela frente é uma batalha ideológica, complicadíssima de ser trabalhada, em que nós vemos a discussão que é diariamente incutida na sociedade e que afasta completamente da discussão a questão central que é o trabalho. É a partir do trabalho que tudo se constrói, que tudo se determina. E daí as sucessivas revisões da organização laboral. Porque é a partir do trabalho que há a divisão da riqueza produzida, a obtenção do lucro, a construção daquilo de que o capital se apropria para vender. Ora, a retórica que nos é diariamente apresentada afasta-nos dessa perceção e leva-nos a colocar em terceiros as desculpas para as políticas que têm sido seguidas. Isso, obviamente, conduz a um afastamento daquilo que é a consciência de classe. 

Quem é que devia considerar-se classe trabalhadora? 

Todo aquele que trabalha por conta do outro e que é explorado nessa base. Hoje, infelizmente, tenta-se incutir na sociedade que a culpa de os salários serem baixos, a culpa da dificuldade do acesso à habitação, a culpa até do Serviço Nacional de Saúde e da sua capacidade de resposta, a culpa de não haver creches para os filhos, está naquele que é igual a nós.

O imigrante?

Isso é uma questão central que está a ser discutida na sociedade. Quem coloca essa discussão na sociedade fá-lo com um objetivo concreto. Quem diz que todos os problemas que estamos a viver estão nos imigrantes refere-se sempre aos que recebem o rendimento mínimo e nunca a quem recebe os rendimentos máximos. Não referem uma única vez quem é que ganha com a exploração do imigrante e que, através da exploração do imigrante, consegue explorar ainda mais o trabalhador português. Não referem uma única vez quem é que está a lucrar com o negócio da especulação imobiliária. Não referem uma única vez que a degradação do Serviço Nacional de Saúde é fruto de uma política de descapitalização, desvalorização, de falta de financiamento há décadas, com metade do Orçamento do Estado a ser conduzida para o setor privado.

Há pessoas que estão muito precarizadas em setores privados que veem quase com ressentimento quem está na Função Pública e que olham para essas pessoas como uns privilegiados e acham que os sindicatos, no fundo, servem para preservar direitos de uns poucos. Como é que responde a isto?

Não tenho ideia de que os sindicatos sejam vistos dessa forma.

Referência Américo Oliveira, o pai comunista e sindicalista foi uma inspiração para Tiago: “Era serralheiro soldador. Uma pessoa com uma entrega ao trabalho de uma dimensão enorme”

Não acha que os sindicatos têm uma má imagem? 

Primeiro, o pior erro que podemos fazer – e esta discussão agora em torno da legislação laboral vai provar isso – é estar sempre a pensar nos mínimos. Nesta discussão da legislação laboral, não contem com a CGTP para discutir mínimos, para encontrar uma forma que permita ao Governo ter o argumento necessário para levar avante aquilo que quer fazer, que é uma regressão nos direitos de quem trabalha. 

Ou seja, fazer umas mudanças cirúrgicas, como tirar a questão da amamentação ou do luto gestacional, e depois avançar com tudo o resto?

Nós dissemos isso várias vezes. O Governo não apresenta uma matéria avulso. Repare que vamos começar a discutir um documento que é pior do que a lei hoje permite. Mesmo que se consiga alterar uma ou outra vírgula, estamos sempre a piorar. A luta tem de ser total. Tivemos esse posicionamento de rejeição completa deste anteprojeto, sempre com o objetivo de não discutir os mínimos e discutir aquilo que, do nosso ponto de vista, é essencial.

Mas há uma má imagem dos sindicatos e uma quase competição entre quem está no privado e quem está no público, como se não fossem todos trabalhadores. Não há propriamente essa noção de que estamos no mesmo barco.

Isso não é uma questão de agora. É uma questão até bastante antiga, de se achar que os trabalhadores do setor público têm o seu posto de trabalho garantido, têm salários acima do setor privado, de que não precisam de fazer muito. Basta ver as declarações da Iniciativa Liberal sobre a questão de despedir 100 mil trabalhadores. Na perspetiva da Iniciativa Liberal, todos os problemas que existem na Administração Pública, pelos vistos, são fruto dos trabalhadores e não fruto das políticas que têm sido seguidas e do desinvestimento, ano após ano, nos serviços públicos. Ninguém diz, e era importante dizer, que temos uma fatia enorme de trabalhadores da Administração Pública cujo salário está dois euros acima do salário mínimo nacional. São trabalhadores com enormes dificuldades, tal como os do setor privado. Falta dizer que o Estado é o principal empregador de vínculos de trabalho precário. Temos milhares de trabalhadores no setor público nessa situação. Tenta construir-se uma retórica de divisão entre trabalhadores com o objetivo claro de seguir as políticas que eles querem que sejam seguidas. É uma retórica que diz ao trabalhador que a culpa é do outro que é igual a ele, que não é possível porque as empresas não podem pagar melhor, porque a economia não aguenta, porque as empresas têm de ser mais produtivas. Ou esta ideia de que o jovem hoje não quer trabalho certo para a vida toda, quer poder navegar entre empresas. Não há problema nenhum. Mas qual é o vínculo de trabalho estável que impede o trabalhador de fazer isso? Nenhum. O trabalhador hoje pode entrar para uma empresa, tendo o seu vínculo de trabalho estável, e amanhã pode decidir procurar outra coisa. O que é que eles estão a tentar fazer? Usando argumentos falsos, estão a tentar responder não à necessidade do trabalhador, mas à necessidade da empresa, que é de ter um trabalhador que, com esta proposta da legislação laboral que está em curso, possa estar até à reforma sem conseguir um vínculo de trabalho efetivo. É precariedade eterna.

Falta dizer que o Estado é o principal empregador de vínculos de trabalho precário. Temos milhares de trabalhadores no setor público nessa situação. Esta proposta da legislação laboral que está em curso quer uma precariedade eterna

A flexibilidade é vista como uma coisa positiva, que aumentará a produtividade e resultará em maiores ganhos salariais. O que é que a experiência dos últimos anos do mundo do trabalho mostra relativamente a este tipo de argumentos? 

Olhem para as últimas dezenas de anos e vejam os argumentos utilizados em cada mexida da legislação de trabalho, em cada medida que nos conduziu a uma situação de maior precariedade, de maior desregulação dos horários de trabalho, de salários cada vez mais baixos… e perguntem a si próprios se alguma destas mexidas alterou substancialmente para melhor a sua condição de vida. Se nós estivermos a falar com um trabalhador sobre os serviços públicos, e perguntarmos: “Olhem para a vossa região e digam-me lá quantos centros de saúde abriram? Quantos hospitais públicos abriram? E agora olhem para os últimos anos e digam-me lá quantas clínicas privadas abriram. Quantos hospitais privados abriram? Façam uma avaliação. Quanto tempo é que vocês demoram hoje a marcar uma consulta com o médico de família, a ter acesso a uma cirurgia, a ter acesso a uma consulta de especialidade?” Os trabalhadores vão perceber perfeitamente a mensagem que estamos a tentar transmitir.

Também há uma mensagem muito forte de que se fazem sempre greves à sexta-feira ou coladas ao feriado. Como é que responde a essas críticas?

Nesse aspeto, erguemos bem a cabeça. Sabemos aquilo que fazemos, como é que fazemos, porque é que fazemos. A greve é um dia de salário perdido pelo trabalhador. Isto marca logo a diferença de tudo o resto. O Governo apresentou um conjunto de propostas de alteração à lei da greve, baseado em ideias falsas, de que na greve dos trabalhadores da CP houve aproveitamento político-partidário. Isto é fazer dos trabalhadores burros. Não há nenhum trabalhador que, perdendo o seu dia de salário e tendo uma adesão à greve de 100%, como aconteceu na greve da CP, seja conduzido de forma oportunista. Quem faz greve é porque sente a razão da greve. A greve tem o objetivo de o trabalhador causar impacto, dano à empresa. É a oportunidade que o trabalhador tem de dizer à entidade patronal: “Sem mim tudo para, se eu não estiver aqui, tu não fazes nada. Eu sou a parte fundamental, por isso tu vais sentir que eu preciso de ser valorizado.” E se este impacto é à sexta-feira, que seja à sexta-feira. Se é à segunda-feira, que seja à segunda-feira. Que não se olhe para o trabalhador como sendo sempre o culpado de tudo, porque é de facto o trabalhador que põe tudo a andar para a frente.

Está nas redes sociais da Iniciativa Liberal um vídeo com a líder do partido, Mariana Leitão, junto a uma paragem, com gente a entrar num autocarro lotado, durante o dia de greve do metro. No vídeo, Mariana Leitão diz que aquelas são as vítimas da greve. É dessa ideia que eu estou a falar.

Em vez de Mariana Leitão, em vez de André Ventura, em vez de Luís Montenegro e outros que por aí andam estarem sempre a apontar o dedo ao trabalhador, nas dificuldades que existem, seja nos transportes, seja em que setor for, era bom que apontassem o dedo às reais razões para a degradação constante dos serviços. 

Ou seja, as vítimas que ali estavam são vítimas todos os dias, não são só no dia da greve.

Não há nenhuma greve, seja ela no setor dos transportes, da educação ou da saúde, em que uma das reivindicações não seja a melhoria dos serviços aos utentes. No setor dos transportes, por exemplo, pedindo o reforço do serviço, das linhas, a melhoria da qualidade do transporte. Vou dar um exemplo concreto: fui fazer, há mais de um ano, um plenário a um centro de distribuição postal dos CTT. Os CTT, fruto da falta de trabalhadores, alargaram os percursos de cada carteiro. Então, cada carteiro, em vez de ter um percurso, vamos supor, de cinco quilómetros por dia, passou a ter um percurso de sete. E eles não aguentam. Nós dissemos: “Temos de assumir a luta. Os CTT têm de contratar mais trabalhadores. E vocês têm de chegar à vossa horinha, às cinco horas, e o que conseguiram fazer, fizeram. O que não conseguiram fazer, não fizeram. A culpa não é vossa.” Nenhum deles consegue fazer isto. Porquê? Só depois de muito esforço é que consegui perceber: porque há a pessoa que está em casa, à espera que chegue a pensão, a pessoa à espera da carta do hospital, para ir à consulta, ou à espera que chegue a carta do filho, que está não sei onde. Os primeiros a defender os serviços públicos são os trabalhadores.

Porque há agora esta iniciativa de restringir a greve?

Olhando a composição da Assembleia da República e percebendo a correlação de forças, o Governo sente que tem a autoestrada toda aberta, porque Chega e IL são extensões do mesmo projeto. Mas não se preocupam com o porquê de estes trabalhadores recorrerem à luta. Porque é que os trabalhadores do setor social são colocados agora nas necessidades sociais impreteríveis? Trabalhadores, quase todos eles agregados ao salário mínimo nacional, quase todos com horários de trabalho completamente desregulados, porque não podem deixar as crianças, os idosos, aqueles que mais precisam. Já hoje, quando há greve, não é preciso haver serviços mínimos, porque estes serviços já estão praticamente nos mínimos. Há serviços mínimos decretados que conseguem ultrapassar o serviço normal diário! Houve um cemitério em que foram decretados serviços mínimos de cinco coveiros onde só trabalham três.

A CGTP declara guerra total a esta reforma?

Não há aqui margem para dúvida. Todas as formas de luta estão em cima da mesa, incluindo a greve geral e tudo aquilo que for preciso fazer para que esta legislação não vá para a frente.

O Chega dizia que ia formar uma central sindical. Tem alguma notícia de movimentações no terreno nesse sentido?

Que eu saiba, não. O que sabemos é a divisão que está a procurar fazer-se entre trabalhadores. O Chega é um instrumento para isso também, é uma ferramenta do capital, para continuar a perpetuar a política que está a ser seguida. Eles não surgiram do nada, não são financiados do nada. Existem com um objetivo concreto.

Este é um momento historicamente raro, com a CGTP e a UGT alinhadas. Isso é simbólico?

Mostra a dimensão do ataque que está em curso. O que eu quero reforçar é que o posicionamento tem de ser firme de todas as partes, do princípio até o fim. 

A primeira batalha é manter a unidade entre as duas principais centrais e ninguém assinar um acordo na concertação social?

A primeira batalha está no posicionamento firme na concertação social. Não estamos a discutir propostas avulso. Estamos a discutir mais de 100 propostas e, se cedermos à tentação de discutir propostas avulso, vamos começar a discutir sobre uma base que é pior do que a que já hoje existe. Precisávamos era de começar a discutir aquilo que existe para melhorar. 

“Caducidade”, “contratação coletiva”. Não há um jargão que é difícil o trabalhador compreender? Como é que explicam a necessidade desta luta?

Temos de fazer esse esforço de adaptar a nossa forma de comunicar com os trabalhadores. Uma das questões que estão neste anteprojeto é a de que o pagamento do trabalho suplementar e as normas do teletrabalho sejam retiradas dos regimes de proteção. Isso quer dizer que podem ser discutidos valores de trabalho suplementar inferiores àquilo que está na lei – é ir abaixo dos mínimos.

Mas a economia aguenta pagar melhores salários e dar mais condições aos trabalhadores?

A questão é que a economia nunca aguenta para o mesmo lado. Os salários médios estão estagnados, subiram por via do aumento do salário mínimo nacional. E o Governo tem uma perspetiva de atingir os dois mil euros de salário médio em 2030. O Governo legalmente legisla aquilo que é o salário mínimo. Tudo o que está para cima, das duas uma: ou é fruto da luta dos trabalhadores ou da capacidade negocial da luta dos trabalhadores. Se se retira a capacidade negocial aos sindicatos, só nos resta a luta dos trabalhadores. Porque, tirando isso, o que temos observado é que o salário mínimo tem crescido, mas os restantes salários não acompanham esse crescimento. Isso está relacionado com as ferramentas que são dadas às empresas. Temos no nosso país cinco milhões de trabalhadores ativos e, desses, um milhão e 300 mil têm vínculos de trabalho precário. Somos o segundo país da União Europeia onde a precariedade é maior, onde 54% dos jovens têm vínculo de trabalho precário. Temos cerca de 800 mil trabalhadores com o salário mínimo nacional, 2,4 milhões com salários de até mil euros. Se não conseguirmos perceber que tudo isto são ferramentas utilizadas para condicionar a luta, a organização, a força e a unidade dos trabalhadores nos locais de trabalho, então não estamos a ver as coisas pelo prisma certo.

Se tiver de convencer um trabalhador a aderir à luta contra estas leis, o que lhe diz?

A quem serve limitar o direito à greve? A quem serve facilitar os despedimentos? A quem serve a precariedade? A quem serve a desregulação dos horários de trabalho? A quem serve apresentar o setor privado como uma resposta àquilo que o setor público supostamente não consegue fazer? São perguntas simples a que o trabalhador vai saber responder.

Tinham objetivos de crescimento no número de sindicalizados no último congresso da CGTP. Como é que está a correr esse trabalho?

Estamos a ultrapassar as metas definidas, o que é positivo.

Há mais jovens a aderir ou ainda não?

Não é fácil. Temos as associações patronais que têm dito que o trabalhador não quer salário, quer variáveis. Sabemos qual é o objetivo: os encargos são menores para as empresas. Mas isto dito para um jovem que sabe que, pela tabela, vai ganhar mil, mas com variáveis pode chegar aos dois mil, ele fica todo contente. Só que depois leva uma bofetada da realidade, que são horários indeterminados no setor da hotelaria e restauração, são vínculos de trabalho completamente precários, são ameaças e pressões constantes. Vai haver um momento em que esse confronto se vai dar e o trabalhador vai sentir exatamente aquilo que é a tal consciência de classe. Vai sentir quem é que está de um lado e quem é que está do outro.

Se esta reforma laboral passar, isso será ainda mais visível?

Será um enorme passo atrás nas condições de vida e de trabalho de todos nós. Este Governo apresenta este pacote laboral como Trabalho XXI, mas é um pacote rumo ao trabalho do século XIX. E é a isso que temos de dar combate. Dizem que os sindicatos têm sempre a mesma cassete, só sabem dizer a mesma coisa… Mas podem ter a certeza de que a cassete é a mesma e vai continuar a ser. Apenas iremos mudar de cassete quando os patrões mudarem a deles.

No domingo, 25 de Fevereiro de 2024, um homem chamado Aaron Bushnell dirigiu-se aos portões da embaixada de Israel em Washington, D.C., e imolou-se pelo fogo. As suas últimas palavras foram: “Libertem a Palestina.”

Nos momentos que antecederam a sua morte, Bushnell falou com mais lucidez e maior clareza moral do que quase qualquer político ocidental. Não é pouca coisa desvalorizar o acto de um homem assim, um homem cuja morte deixa um abismo de dor, não apenas pela natureza do que fez, mas pelo facto irrefutável de que o mundo, no decorrer dessa acção, perde uma voz rara, inabalável na sua orientação para a justiça.

E, no entanto, há quem tente

Num instante e sem necessidade de qualquer prova, alguns dos mesmos comentadores cuja tolerância para com o protesto interno foi sempre nula lançarão a ideia de que Bushnell sofria de uma doença mental. Na mentalidade do centrista moderno, onde cada acto social tem de ser transaccional, a navalha de Occam [princípio filosófico que sugere que, entre várias explicações possíveis para um fenómeno, a mais simples é provavelmente a verdadeira] elimina qualquer outra explicação: Não nos podemos magoar em prol de outra pessoa; acreditamos ser capazes disso em abstracto, sem dúvida, mas apenas porque essa crença também é transaccional, sendo a recompensa uma ablução moral superficial. Mas ver alguém – um soldado do exército mais poderoso do mundo – fazer isto fora do abstracto, ao serviço de princípios muito reais e em honra de mortos e moribundos reais, apresenta, perante uma visão do mundo vacuamente liberal, o equivalente ético a dividir um número por zero. O propósito, o resultado, a lógica de tal acto, tudo isto é indefinido. Quem quer que o faça tem de estar equivocado, ser insidioso ou doente mental. Quando, em 2010, o vendedor de rua tunisino Mohamed Bouazizi se imolou pelo fogo num protesto hoje amplamente reconhecido como o momento instigador da Primavera Árabe, um desfile dos mesmos comentadores e políticos elogiou-o como um heroísmo da mais alta ordem. Vejam o que estas nobres pessoas são capazes de fazer em busca da sua própria liberdade. Mas, aqui, o homem no centro das chamas não pode ser venerado de uma distância tão segura. Ele veste a farda do país que serviu, o país cuja liderança financia o genocídio ao qual ele se opõe com o sacrifício da sua vida. Não há aqui transacção alguma.

O poder sem ética assenta numa capacidade e num desejo inabaláveis de punir a resistência activa – de espancar, prender e tentar arruinar a vida das pessoas que bloqueiam auto-estradas, montam acampamentos e confrontam os legisladores. Mas esse poder não sabe o que fazer contra a resistência negativa, contra alguém que se recusa a comprar, a comparecer ou a alinhar-se, que simplesmente diz: “Não farei parte disto.” Contra aquele que se vai embora.

A arte de governar

Em meados de Fevereiro de 2024, os EUA vetam mais uma vez uma resolução que apela a um cessar-fogo em Gaza. Quase toda a gente o antecipa e, apesar da reacção retórica generalizada que se seguiu, ninguém acredita verdadeiramente que a administração que apoia este genocídio de súbito participe numa manifestação de preocupação, nem que seja em surdina. A imagem que mais uma vez ilustra a maioria dos artigos sobre o veto é a da embaixadora dos EUA nas Nações Unidas, Linda Thomas-Greenfield, a levantar a mão. Não é a primeira vez que o faz, chumbando uma resolução de cessar-fogo sob o pretexto de que poderia comprometer os esforços dos EUA para alcançar uma paz duradoura na região. Como é hábito, as autoridades ocidentais em geral não se incomodam quando dizem coisas como esta, que uma resolução de cessar-fogo representa uma ameaça maior à paz duradoura do que o extermínio contínuo de um povo inteiro.

(Nos últimos 75 anos, houve perto de 900 resoluções da Assembleia Geral da ONU relacionadas com “a questão da Palestina”. Resoluções sobre o estatuto dos refugiados, a autodeterminação, a independência, o direito de regresso, condenações, sessões de emergência, exigências, negociações de paz…)

A meio da minha década no jornalismo, passei um ano principalmente como repórter político. Entre essa área de cobertura e as minhas viagens frequentes a Gitmo, fui construindo lentamente relações com vários porta-vozes do Pentágono. Há coisas que se aprendem, imerso neste submundo da governação, que, em retrospectiva, podem parecer óbvias, mas que, testemunhadas de perto, têm em si uma sensação desconfortável do fantasmagórico. Os políticos eleitos, cujos nomes e rostos são elementos omnipresentes da esfera pública, dissolvem-se numa hidra de parasitas: pessoas que nunca se candidatarão a um cargo público, mas que encontraram a sua vocação na periferia de alguém elegível. Quase todos os sistemas políticos funcionam graças aos esforços de pessoas como estas, pessoas que conduzem, vão buscar a roupa à lavandaria e escrevem os comunicados de imprensa sem a mais pequena pontada de preocupação sobre que relação, se é que alguma, essas declarações possam ter com a realidade.

Penso nesta comitiva agora, enquanto vejo a embaixadora Thomas-Greenfield a trabalhar. Imagino o motorista e o carro oficial que a transporta rapidamente para outro lugar. Imagino um gabinete, um conjunto de gabinetes, cheios de assistentes e secretários e dos apetrechos vivos do poder institucional: café que aparece por magia, comunicados ditados, os pequenos aborrecimentos da vida quotidiana tratados por uma frota de subalternos para que esta pessoa, esta pessoa profundamente importante e, no entanto, instantaneamente substituível, possa dedicar-se à tarefa de ser conduzida a uma sala ampla para se sentar a uma grande secretária curva em frente a uma placa que diz Estados Unidos e levantar a mão, como lhe foi instruído, para vetar uma resolução desprovida de força que apela ao fim do genocídio.

Imagino o interior silencioso desse carro oficial, antes e depois de esta pessoa ter seguido as ordens que tem de seguir. Pergunto-me se, nesse silêncio momentâneo, a ver pela janela o mundo reles do quotidiano a passar, profundamente insignificante, esta pessoa se interrogará, nem que seja por breves instantes, se era isto que queria para a sua vida. E depois vejo uma entrevista com uma criança palestiniana a quem perguntam do que sente mais falta e que responde: “Pão.”

Relato cru. Um Dia, Sempre Teremos Sido Todos Contra Isto (Tinta-da-China, 160 págs., €16,90), um livro que questiona os crimes na Palestina e as contradições do Ocidente

A negação – o poder de virar as costas – é uma coisa perigosa, e a narrativa muda radicalmente dependendo de quem a pratica. Quando a administração exibe um dos seus funcionários para vetar uma resolução de cessar-fogo ou põe um qualquer secretário de imprensa a debitar presunçosamente não-respostas a perguntas sobre a intenção claramente declarada, por parte de um aliado, de cometer uma atrocidade, está em causa apenas o modo como a arte de governar se pratica. Mas se os indivíduos optarem por não comprar um produto fabricado por uma empresa cúmplice de tal atrocidade, então trata-se de um acto de terrorismo económico. Vastas parcelas das liberdades fundadoras do mundo ocidental têm de ser temporariamente postas de lado para se aprovarem leis que proíbam este tipo de coisas. (Mais de 35 estados norte-americanos aprovaram leis que ou restringem a capacidade de boicotar bens relacionados com Israel ou tornam ilegal que as empresas e os indivíduos que o fazem trabalhem para o Estado ou com ele.) Quando as nações mais ricas do mundo decidem, sob o pretexto mais frágil, cortar o financiamento à única agência que se interpõe entre milhares de civis e uma morte lenta e hedionda por inanição, trata-se de uma medida prudente de combate ao terrorismo. Mas quando os eleitores decidem que não podem, em consciência, participar na reeleição de quem permite que esta fome aconteça, são rotulados, na melhor das hipóteses, de simplórios, se não mesmo de potenciais facilitadores de uma tomada de poder fascista da democracia ocidental. Porque ao indivíduo não pode ser permitido ir-se embora, não lhe pode ser concedido um direito absoluto de não-participação. Não quando todo o sistema depende, num sentido profundamente existencial, da participação contínua, da participação cada vez maior.

Dizem-nos diariamente que não há nada melhor do que isto. As nossas placas gráficas e os nossos mocassins chegam à nossa porta no mesmo dia em que os encomendamos – o que mais se pode querer? Precipitamo-nos de choque em choque, de bolha em bolha, orientados na direcção do colapso ecológico total e de um futuro hipotecado para lá de qualquer esperança de recomposição. No entanto, dizem-nos que o mais assustador não é este caos crescente, mas sim a possibilidade de que qualquer outro rumo possa terminar num cenário em que temos polícias secretas e filas para o pão. Diariamente, toda a esfera da direita e um número alarmante de liberais preocupam-se com uma geração de jovens iludida pelo marxismo ou por outro papão ideológico qualquer. Quando estudantes das mais prestigiadas universidades da América do Norte protestam em solidariedade com a Palestina, é difícil acreditar que a resposta institucional não esteja tingida por um sentimento de traição. A estes jovens concedeu-se a entrada no coração do sistema, com todos os privilégios que isso acarreta. Para uma ideologia fixada no interesse próprio, que eles deitem fora tal privilégio a favor de um povo do outro lado do planeta que nada pode oferecer em troca deve parecer uma aceitação do niilismo.

Na realidade, o que está a acontecer é o oposto de uma aceitação. É um afastamento do sistema actual, um sistema que torna cada vez mais claro que não há futuro, nem comunidade, para esta ou qualquer outra geração vindoura. Apenas um tirar sem fim – e se estes jovens tiverem de pagar por isso abdicando da esperança, da possibilidade, do ar puro ou de um planeta habitável, que seja. Um sistema mais petulante e intransigente do que qualquer manifestante alguma vez existente. Um sistema que apenas consegue dizer: “Não há nada melhor do que isto.”

Drones sobrevoaram e permaneceram, durante horas, em vários aeroportos de países nórdicos, como a Suécia, a Dinamarca e a Noruega. Qual a razão para serem estes membros da NATO e não outros, mais próximos da Rússia, como, por exemplo, Helsínquia? A Dinamarca fala em ataques híbridos, destinados a assustar, e prepara-se para invocar o artigo 4.º do Tratado da Aliança.

Será uma histeria coletiva? Serão drones lançados a partir da Rússia ou da Bielorrússia? Ou atos praticados por russos infiltrados nesses países? Sim, não, talvez. Já se percebeu que não estão armados, que só voam a determinadas horas e que parecem controlados pela mesma IA. Estarão a ser lançados e comandados a partir de Kaliningrado?

Todas as hipóteses são admissíveis, mas, antes de se tratar de um problema militar grave provocado por Moscovo, seria muito importante descartar hipóteses internas de tentativas de aproveitamento da instabilidade entre os aliados do Norte. Tudo é diferente quando caças e drones russos, facilmente identificáveis, violam as fronteiras da NATO, como aconteceu na Polónia.

As provocações de Moscovo merecem um aviso sério, mas não o que fez Trump na ONU: “Sim, podem abater os aviões”, em jeito de conversa lateral e de café. Razão tem Donald Tusk, primeiro-ministro da Polónia, que alertou para a falta de credibilidade dessa resposta de Trump. Abate-se e, depois, os EUA fazem de conta que não é nada com eles. Tudo isto é inquietante e preocupante. Os nervos estão à flor da pele.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.